domingo, 10 de março de 2013

CUBA E SUA LUTA




Podemos discordar do regime político de Cuba, que se mantém sob o domínio de um partido único. Mas é preciso seguir o conselho de Spinoza: não lisonjear, não detestar, mas entender. Entender, ou procurar entender. A história de Cuba – como, de resto, de quase todo o arquipélago do Caribe e da América Latina – tem sido a de saqueio dos bens naturais e do trabalho dos nativos, em benefício dos colonizadores europeus, substituídos depois pelos anglo-saxões.

E, nessa crônica, destaca-se a resistência e a luta pela soberania de seu povo não só contra os dominadores estrangeiros, mas também contra seus vassalos internos.

Já se tornou lugar-comum lembrar que, sob os governos títeres, Havana se tornara o maior e mais procurado bordel norte-americano. A legislação, feita a propósito, era mais leniente, não só com o lenocínio, e também com o jogo, e os mais audazes gângsteres de Chicago e de Nova Iorque tinham ali seus negócios e seus retiros de lazer. E mais: as mestiças cubanas, com sua beleza e natural sensualidade, eram a atração irresistível para os entediados homens de negócios dos Estados Unidos.

A Revolução Cubana foi, em sua origem, o que os marxistas identificam como movimento pequeno burguês. Fidel e seus companheiros, no assalto ao Quartel Moncada – em 1953, já há quase 60 anos – pretendiam apenas derrocar o governo ditatorial de Fulgêncio Batista, que mantinha o país sob cruel regime policial, torturava os prisioneiros e submetia a imprensa a censura férrea. A corrupção grassava no Estado, dos contínuos aos ministros. O enriquecimento de Batista, de seus familiares e amigos, era do conhecimento da classe média, que deu apoio à tentativa insurrecional de Fidel, derrotada então, para converter-se em vitória menos de seis anos depois. Os ricos eram todos associados à exploração, direta ou indireta, da prostituição, disfarçada no turismo, e do trabalho brutal dos trabalhadores na indústria açucareira.

Foi a arrogância norte-americana, na defesa de suas empresas petrolíferas, que se negaram a aceitar as novas regras, que empurrou o advogado Fidel Castro e seus companheiros, nos dois primeiros anos da vitória do movimento, ao ensaio de socialismo. A partir de então, só restava à Ilha encampar as refinarias e aliar-se à União Soviética.

Os norte-americanos, sob o festejado Kennedy – que o reexame da História não deixa tão honrado assim –, insistiram nos erros. A tentativa de invasão de Cuba, pela Baía dos Porcos, com o fiasco conhecido, tornou a Ilha ainda mais dependente de Moscou, que se aproveitou do episódio para livrar-se de uma bateria norte-americana de foguetes com cargas atômicas instalada na Turquia, ao colocar seus mísseis a 100 milhas da Flórida, no território cubano.

A solução do conflito, que chegou a assustar o mundo com uma guerra atômica, foi negociada pelo hábil Mikoyan: Kruschev retirou os mísseis de Cuba, e os Estados Unidos desmantelaram sua bateria turca, ao mesmo tempo em que assumiram o compromisso de não invadir Cuba, mas mantiveram o bloqueio econômico e político contra Havana. Enfim, ganharam Moscou e Washington, com a proteção recíproca de seus espaços soberanos – e Cuba pagou a fatura com o bloqueio.

O malogro do socialismo cubano nasceu desse imbróglio de origem. Tal como ocorrera com a Rússia Imperial e com a China, em movimentos contemporâneos, o marxismo serviu como doutrina de empréstimo a uma revolução nacional. O nacionalismo esteve no âmago dos revolucionários cubanos, tal como estivera entre os social-democratas russos, chefiados por Lênin e os companheiros de Mao.

Os cubanos iniciaram reformas econômicas recentes, premidos, entre outras razões, pelo fim do sistema socialista. Ao mesmo tempo tomaram medidas liberalizantes, permitindo as viagens ao exterior de quem cumprir as normas habituais. É assim que visita o país a dissidente Yoani Sanchez (que mantém seu blog na internet de oposição ao governo cubano) e é reverenciada pelos setores de direita. Ocorre que ela não é tão perseguida em Havana como proclama e proclamam seus admiradores.

Tanto assim é que, em momento delicado para a Ilha, quando só pessoas de confiança do regime viajavam para o exterior, ela viveu dois anos na Suíça, e voltou tranquilamente para Havana.

É seu direito dizer o que quiser, mas não podemos tolerar que exija do Brasil defender os direitos humanos, tal como ela os vê, em Cuba ou alhures. Um dos princípios históricos do Brasil é o da não interferência nos assuntos internos dos outros países.

O problema de Cuba é dos cubanos, que irão resolvê-lo, no dia em que não estiverem mais obrigados a se defender da intervenção dos estrangeiros, que vêm sofrendo desde que os espanhóis, ainda no século 16, ali se instalaram. Foram substituídos pelos Estados Unidos, depois da guerra vitoriosa de Washington contra o frágil governo da regente Maria Cristina, da Espanha. Enfim, o generoso povo cubano, tão parecido com o nosso, não teve, ainda, a oportunidade de realizar o seu próprio destino, sem as pressões dos colonizadores e seus sucessores.

Dispensamos os conselhos da senhora Sanchez. Aqui tratamos, prioritariamente, dos direitos humanos dos brasileiros, que são os de viver em paz, em paz educar-se e em paz trabalhar, e esses são os direitos de todos os povos do mundo. Ela, não sendo cidadã de nosso país, não deve, nem pode, exigir nada de nosso governo ou de nosso povo. Dispensamos seus avisos mal-educados e prepotentes, e esperamos que seja festejada pela direita de todos os países que visitará, à custa de seus patrocinadores – como o Instituto Millenium –, iludidos pelo seu falso prestígio entre os cubanos.

Por Mauro Santayana, via Jornal do Brasil

quarta-feira, 6 de março de 2013

HUGO CHAVES, NASCE O MITO



Gostaria de acreditar que enquanto a maioria absoluta dos venezuelanos chora copiosamente a “morte” de Hugo Rafael Chávez Frías não existe quem a esteja comemorando. Entretanto, não me iludo. Apesar de ser um homem de paz que nunca revidou com violência a violência que sofreu nos idos de abril de 2002, Chávez era odiado com fervor por uma minoria.

Seus inimigos não o combateram por seus defeitos, que, como qualquer ser humano, deveria ter muitos. Não, não. Ele foi combatido por suas qualidades, porque sua obra – que ultrapassou as fronteiras de seu país – tornou o mundo mais justo e a vida dos compatriotas desvalidos menos penosa.

Foi chamado de “ditador”, mas nenhum governante das três Américas jamais se apresentou tantas vezes ao voto popular limpo e inquestionável quanto ele. De 1999 até o ano passado, incontáveis foram as eleições que venceu sem que nunca um só questionamento à lisura dos processos eleitorais que lhe deram as vitórias tenha sido sequer levado a sério.

Chávez logrou fazer da Venezuela a campeã das Américas em redução da pobreza e da desigualdade social. Sua obra social, como não podia ser atacada por conta de êxitos como o de tornar o seu país o segundo da América Latina, ao lado de Cuba, a extirpar a chaga do analfabetismo, foi ignorada pela mídia internacional e até pela venezuelana.

Nunca me esquecerei de uma viagem que fiz à Venezuela em 2007, quando fui a um dos morros que cercam Caracas e, em visita ao uma unidade do programa social de Chávez que acabou com o analfabetismo, vi adolescentes e até adultos recém-alfabetizados estudando a constituição do país.

Mas a obra de Chávez extrapolou as fronteiras de seu país natal. A revolução bolivariana se espalhou pela América Latina. Sua influência mais forte tem sido sentida na Argentina, na Bolívia e no Equador, com um modelo revolucionário que reformou constituições e democratizou a comunicação de massas.

Perto da redução da pobreza, da miséria e da desigualdade que Chávez promoveu, a que conseguimos no Brasil, em comparação proporcional, não lhe chega nem aos pés. Isso porque, com risco da própria vida e sacrificando a paz pessoal, ele comprou brigas com poderes imensuráveis que, se não tivesse comprado, teria tido uma vida mais fácil no poder.

Dolorosamente, a morte física de Chávez será explorada de forma nauseabunda por multibilionários das mídias de ultradireita que infestam esta parte do mundo. Tentarão culpa-lo pela própria morte. Em lugar de destacarem sua obra, destacarão o processo sucessório na Venezuela.

A esses, digo que se antes tinham poucas chances de derrotar esse herói latino-americano, esse verdadeiro patrimônio da humanidade, agora suas chances são nulas, morreram fisicamente com ele, que acaba de renascer. Hugo Rafael Chávez Frias renasceu, chacais da miséria humana. Tornou-se um mito que os assombrará até o fim dos tempos.

Morto fisicamente, Chávez adquiriu poderes que nem todos os editoriais, colunas, telejornais ou reportagens mal-acabadas da Terra conseguirão equiparar. Sua verdadeira história só agora começará a ser contada às gerações futuras, mostrando que quando um homem devota sua vida ao bem comum como ele fez, torna-se imortal.

Descanse em paz, Hugo.

Por Eduardo Guimarães
Pátria Latina – 06/03/2013

segunda-feira, 4 de março de 2013

HABEMUS PAPAM



Estamos vivendo aquela expectativa natural, na escolha de um novo Papa.

Agora vem o isolamento, a espera, a nuvem negra quando ainda não escolheram, e branca quando já foi escolhido o novo Papa.

Muita gente anda dando seus “chutes” e fazendo suas apostas na nacionalidade do futuro Pontífice e eu entrei na onda.

Imagina, por exemplo, se o Papa for brasileiro.

Dezenas de brazucas enrolados na bandeira do Brasil, alguns segurando um cartaz “Eu Já Sabia”. Hino nacional brasileiro a todo pulmão na Praça de São Pedro.

Antes mesmo de receber o Anel do Pescador o novo papa aparece no programa “E Agora papa?”.

Aliás, a televisão iria protagonizar os momentos mais emocionantes.

Já pensou a Globo querendo adquirir os direitos exclusivos da Missa do Galo...

Xuxa fazendo carinha de sofrida cantando uma música emocionante (e irritante) acompanhada por um coral de crianças contra a pedofilia...

Pedro Bial promovendo o primeiro BBB direto da Basílica de São Pedro chamando os cardeais de “meus heróis”.

Na música, com certeza, apareceriam “As Papetes” nova banda de Funck composta de gostosas seminuas cantando “Excomunga, excomunga a Vagabunda”.

Claro que haveria o uso político do Papa brasileiro.

Os conservadores diriam que o Papa é a cara da tradicional família brasileira e dos valores cristãos contra esses “esquerdistas” admiradores de Cuba e de Chaves.

A galera progressista convidaria o companheiro Papa para distribuir pessoalmente os recursos da Bolsa Família entre os mais necessitados, com transmissão ao vivo, claro.

Com certeza não faltariam boatos de que o Papa iria virar símbolo de algum partido nanico.

Quer saber? Melhor não pensar nessa possibilidade. Um papa brasileiro não!!

Seria mais interessante que o novo Papa fosse da África. O candidato de Gana está bem cotado, mas isso não quer dizer muita coisa. Um Papa africano seria o primeiro Papa negro da história e isso daria voz a inúmeras comunidades que jamais passaram da sala de espera do Vaticano.

Um Papa do Líbano, único país majoritariamente católico do Oriente Médio ou do Egito copta, seria bem representativo.

Não sei... mas depois de dois papas não italianos, se fosse apostar eu apostaria que o próximo papa será da Itália.

Qualquer que seja a nacionalidade, que seja um Papa progressista, capaz de levar a Igreja pelos caminhos necessários da mudança, da modernidade e principalmente, da democratização.

Um Papa que faça a Igreja Católica ouvir o clamor de seus fiéis que esperam por novos ares em sua fé.

Mas um papa brasileiro não, por favor... Galvão Bueno narrando a via-sacra, Nãããão!

Prof. Péricles




sábado, 2 de março de 2013

O TREM DAS ESTRELAS



Estavam todos suavemente acomodados. Alguns olhavam para o lado de fora como a catar recordações perdidas. Outros conversavam no balanço das horas.

Num espaço mais a frente aquele senhor muito magro, calvo, de óculos de lentes redondas, e de trajes longos, pacientemente falava a um grupinho, sobre a importância da não-agressão, mesmo quando se é agredido.

- “Principalmente nessas horas, dizia Gandhi, devemos manter a serenidade. Não é preciso aniquilar pela força com o invasor, basta não obedecê-lo para tornar inviável a dominação dos brutos”.

O que o senhor acha presidente? – alguém perguntou.

Lincoln, até então muito compenetrado, ajeitou a cartola, que mesmo assim permaneceu torta, e esfregando a barba respondeu:

- “Bem, no meu caso para manter a paz eu tive que ir a Guerra. Não se tratava de lutar contra a dominação e sim de impedir uma divisão. Também tive que trapacear para aprovar a 13ª Emenda, coisa que nosso Gandhi, claro que não concordaria, mas, às vezes é assim mesmo, temos que ter força para manter a paz”.

Ao ouvir essas palavras, um homem negro, o mais jovem do grupo, se aproximou e com um sorriso franco no rosto, Martim Luther King pôs um braço sobre os ombros de Lincoln, que acabara de silenciar, e complementou:

- “Verdade meu Presidente, às vezes é preciso pressionar, como fizemos com mais de 300 mil participantes na Marcha Sobre Washington, mas também concordo com nosso Mahatma quando afirma que a paz, a não-agressão também possui seus resultados inquestionáveis. Enfim, pela paz e pela liberdade temos todos nossas razões e nossos sonhos. Eu pelo menos tenho um sonho”. E todos riram gostosamente com a sacada do Pastor King.

Inclusive aqueles dois que não param de tagarelar, apontou o Gandhi negro.

Quem são perguntou alguém.

- Ithzak Rabin e Yasser Arafat.

- “Claro disse Lincoln, eles representavam dois povos que se odeiam visceralmente e estavam praticamente selando a paz quando foram assassinados. Talvez por isso não parem de falar ao infinito, sobre a violência que poderia ser evitada e como seria possível construir um Oriente Médio pacífico.”

Mais barulhento ainda é aquele grupo comenta um anjinho gorducho que estava calado... estão no fundo do vagão como se fossem clandestinos fazendo uma espécie de reunião.

- “E é uma Reunião disse Chico Mendes... são meus compatriotas do PCB – Partido Comunista Brasileiro... gente que sempre foi contra a luta armada e defendeu a luta política pacífica contra a Ditadura Militar brasileira, mas que foi impiedosamente perseguida e morta por uma tal de Operação Radar dos órgãos da Repressão.”

Puxa cochichou um anjinho com a asa amassada, todos nesse trem defendiam a paz e por isso foram mortos...

Sim, sussurrou outro anjo, com um colar de hippie, todos foram assassinados, todos vítimas da violência que combatiam.

É mesmo disse o asinha amassada. O mundo teima em matar os que defendem a paz. Eliminam a tiros e de todas as formas os pacíficos enquanto tornam heróis os agentes da guerra e da violência.

- "Sim, retornou o do colar de hippie, isso faz parte da estúpida história humana e de sua ânsia de exploração da própria espécie. Os que morrem dessa forma absurda acabam vindo pra cá, para esse trem da paz entre as estrelas para que continuem brilhando pois a mensagem da paz jamais acaba, ela apenas se transforma... A vitória da violência é apenas aparente, pois mesmo matando os homens jamais se matará a idéia e outros homens empunharam a bandeira... Mas o que é que você olha tanto criatura?"

Bem, fala o gorduchinho, sem virar o rosto, é que estou tentando lembrar de onde conheço o maquinista, aquele moço cabeludo e de barbas com aquelas enormes feridas nas mãos.

Passageiros Ilustres:

- Mohandas Karamchand Gandhi: Morto a tiros em 30 de janeiro de 1948 por um hindu radical. Gandhi fez uma revolução sem violência e libertou seu país, a Índia.

- Abraham Lincoln: Morto com um tiro na cabeça por um ator e espião confederado em 14 de abril de 1865. Presidente que estancou a violência da escravidão nos EUA.

- Martim Luther King: Morto a tiros em 04 de abril de 1968 quando se encontrava na sacada de seu quarto de hotel por um racista fanático, em Memphis. Na luta pelo fim da segregação racial em seu país, King superou os líderes que defendiam o uso da violência.

- Itzak Rabin: herói de guerra e premiê israelense assassinado por um radical de direita contrário à paz com os palestinos, no dia 4 de novembro de 1995, minutos antes participara de um comício pela paz na Praça dos Reis, em Israel.

- Yasser Arafat: Líder maior do povo palestino, junto com Rabin ganhou o prêmio Nobel da Paz de 1994. Morto em 11 de Novembro de 2004, sabe-se hoje, em decorrência de anos de contínuo envenenamento realizado pelos serviços secretos israelenses.

- Francisco Alves Mendes Filho (Chico Mendes): ativista que lutava pela preservação da floresta Amazônica e pela manutenção da paz entre seringueiros e grileiros no Acre, morto em 22 de dezembro de 1988, com tiros de escopeta no peito na porta dos fundos de sua casa.

Prof. Péricles

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

EU TENHO UM SONHO




A situação racial nos Estados Unidos permaneceu uma chaga aberta por muitas décadas desde a guerra da secessão e o fim da escravidão, especialmente nos estados do sul. Nesses estados a derrota militar acompanhada da derrocada econômica e fim abrupto do seu modo de vida reverteram num grande ódio dos brancos para com os negros.

De certa forma, na mente do cidadão médio do sul dos Estados Unidos, tudo havia sido culpa dos negros. Toda sua tragédia pessoal e econômica era culpa do fim da escravidão.

O ódio daí resultante, fez crescer uma legislação injusta e violenta, um verdadeiro apartheid nas Américas.

Devido à aprovação da 13ª Emenda, era impossível manter a escravidão nos antigos estados da Confederação, mas graças ao federalismo, que desde a criação dos Estados Unidos, predominou na relação entre os estados, várias Leis injustas e agressivas puderam ser aprovadas.

Assim, por exemplo: no Alabama era proibido aos negros sentar nos bancos da frente dos ônibus; no Arkansas crianças negras não podiam estudar nas melhores escolas, reservadas apenas às estudantes brancos; no Mississipi negros não podiam utilizar bebedouros públicos, reservados apenas aos brancos e havia calçadas permitidas o trânsito apenas de brancos, e muitas outras leis segregacionistas.

A luta pela igualdade e pelo fim das leis segregacionistas no país que sempre se propõem a ensinar democracia ao mundo foi árdua e dolorosa. Chamamos de Movimento dos Direitos Civis e se estende do período de 1954 a 1980.

Envolveu rebeliões populares, crises, mortes e atentados, particularmente entre 1955 e 1968.

Nesse momento mais difícil dois caminhos se apresentaram aos negros em busca dos seus direitos: o caminho do confronto e da violência, proposto por grupos como Black Power e líderes como Malcolm X e o caminho da luta através da resistência pacífica, liderado por Martim Luther King.

Chamado por muitos de “O Gandhi Negro”, Martin Luther King, Jr. Era um Pastor Protestante (batista) tornou-se ativista político e uma das maiores lideranças na luta dos negros que ele defendia fosse feita com a não violência e amor ao próximo.

Em 28 de agosto de 1963, cerca de 300 mil pessoas, negras e brancas vindas de todas as partes dos Estados Unidos realizaram a chamada “Marcha Sobre Washington” para pressionar com propósitos de integração racial, direito de moradia digna, pleno emprego, direito ao voto e educação integrada.

Nesse dia, Martim Luther King pronunciou um dos mais belos discursos da história que foi denominado de "I Have a Dream" (eu tenho um sonho). Reproduzimos a seguir trechos desse discurso extraordinário:




"Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.

Cem anos atrás, um grande americano, na qual estamos sob sua simbólica sombra (Lincoln), assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre.
Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação. (...)

Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. (...) não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar só. (...)

Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade. (...)

Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!

Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje! (...)

"Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto.

Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos,
De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!"
E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.
E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire.
Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York.
Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania.
Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado.
Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.
Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.
Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee.
Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi.
Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.

E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho espiritual negro:

"Livre afinal, livre afinal.

Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal."

Martim Luther King foi assassinado com um tiro de rifle disparado por um racista fanático, na noite de 4 de abril de 1968. Tinha 39 anos. Segundo alguns anjos, ele continua sonhando por nós, num mundo mais justo e livre.

Prof. Péricles

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

LINCOLN




A proclamação de independência dos Estados Unidos da América do Norte, de 04 de julho de 1789, é uma ode à liberdade.

Escrita em sua maior parte pelo iluminista Thomas Jefferson, a declaração enaltece o direito dos livres e se rebela contra a servidão a que a Inglaterra e suas Leis Intoleráveis queriam submeter os americanos.

Tudo muito bonito. Porém, muito hipócrita.

A hipocrisia está na raiz da visão de mundo livre que eles defendiam simplesmente porque mantinha a escravidão negra no novo país (os Estados Unidos assim como o Brasil recebeu grande quantidade de mão de obra escrava africana para trabalhar principalmente nas áreas rurais).

Os “heróis da liberdade” eram também proprietários de escravos e por isso, bem, esquece isso de abolição.

As conseqüências dessa deliberada covardia seriam nefastas.

Ao longo dos anos seguintes, os Estados Unidos ampliaram drasticamente seu território com as Guerras contra o México e a Marcha para o Oeste.

O capital acumulado (apenas Estados Unidos pode criar um mercado próprio ao longo no colonialismo), o crescimento populacional e a política externa fizeram nascer uma pujante indústria na região e com isso surgiram “dois Estados Unidos”.

Um era composto pelos estados do sul, onde a economia era basicamente agrária, quase um plantation como no Brasil, sustentada pela mão-de-obra escrava.

Outro era formado pelos estados do norte, em avassalador processo industrial, precisando cada vez mais de consumidores e de assalariados para mover a engrenagem.

O resultado foi uma guerra terrível, a Guerra de Secessão, entre os do norte (chamados de União, capital Washington) e os do Sul (chamados de Confederados, capital Richmond, Virginia) que sangrou esse país entre 1860 e 1865.

O presidente da união era Abraham Lincoln, político do Partido Republicano que desde o início de sua carreira posicionara-se a favor da abolição da escravatura.

Em 1863, aproveitando que a sorte da guerra começava a lhe sorrir, Lincoln proclamou o fim da escravidão nos estados do norte e áreas conquistadas do inimigo.

Seu temor, porém, era que os estados do sul vendo-se militarmente perdidos, negociassem a paz impondo a manutenção da escravidão nos seus territórios como condição.

Para acabar com essa possibilidade Lincoln propõem uma mudança na Constituição norte-americana, a 13ª Emenda, que decretaria o fim da escravidão em todo o território nacional.

A corrida desesperada pela aprovação dessa emenda na Câmara de Deputados, nos quatro últimos meses da guerra é retratada no Filme “Lincoln”.

Dirigido por Steven Spielberg com uma interpretação extraordinária, quase mediúnica de Daniel Day-Lewis, no papel principal, o filme narra a guerra de bastidores entre os homens do presidente que tentam convencer deputados a apoiar a aprovação da Emenda, e os contrários ao fim da escravidão.

O filme não se dedica a falar da Guerra de Secessão, atendo-se basicamente a aprovação da Emenda.

Interessante reparar que, de forma sutil, o cineasta que utilizou como roteiro o Livro Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln de Doris Kearns Goodwin, mostra que para a aprovação da Emenda Lincoln, não titubeia em recorrer a um mensalão, para “convencer os indecisos”.

Os esforços do presidente e de seu mensalão atingem pleno sucesso em sessão parlamentar de janeiro de 1865.

Vale à pena conferir no cinema.

Quanto ao presidente Lincoln, após a vitória, deu andamento a medidas que buscavam a emancipação dos negros recém libertos visando integrá-los plenamente ao mercado de trabalho e a vida civil da nação (coisa que nunca aconteceu no Brasil). Mas, infelizmente suas medidas e idéias acabaram silenciadas pela ignorância e violência que o atingiram em 14 de abril daquele ano de 1865, quando foi assassinado a tiros nas dependências do Teatro Ford.


Prof. Péricles

sábado, 23 de fevereiro de 2013

CACHORRO VIRA LATA



Somos jovens traumatizados.

Na nossa infância, o período colonial, aprendemos que éramos o pior tipo de colônia, o mais desprezível. Não tínhamos ouro como no México, ou prata como no Peru. Nossos índios andavam nus ou com apetrechos diversos, mas sem nenhum resquício de qualquer metal precioso. Fomos o que chamamos hoje de “colônia de exploração”.

Sim, éramos uma colônia revoltante, distante, suja, doente, que devia agradecer à Metrópole por cada moeda investida no nosso povoamento.

Naquela época um grama de ouro e um grama de açúcar tinham quase o mesmo valor e o Brasil produziu toneladas e toneladas incalculáveis. Apenas 5% dos lucros ficavam aqui, mas, não importa, éramos o patinho feio do grande império português.

Quando saímos de casa, proclamando a independência, o fizemos quase sem querer, com um grito tímido que mal e mal foi percebido além do pequeno riacho Ipiranga. Tanto que após a independência e antes da independência mantivemos o mesmo caráter: monarquia escravagista de economia primário-exportador. O que mudou na vida dos escravos com a independência?

No período imperial, fomos adolescentes problemáticos e cheios de complexos. Usávamos uma roupa totalmente fora da moda, uma roupa que não tinha nada a ver conosco, a monarquia. Única monarquia da América do Sul. Pobre se denominando Império. Até na Guerra (do Paraguai) o inimigo zoava dos militares brasileiros perguntando se gostavam de beijar a mão de um homem. Nosso Imperador e nossa corte do Rio de janeiro eram como um baile de carnaval constante e fora de hora. Além disso, a ferida fétida da escravidão nos marcava a carne com a vergonha da exploração humana.

Na idade adulta, mantivemos nossas dificuldades e nossas múltiplas carências.

Primeiro, na República Velha, carência de democracia, de exercício livre do voto e da prática partidária. Acabamos com a escravidão, mas continuamos massacrando os mais pobres como em Canudos e no Contestado.

Na Era Vargas, especialmente no Estado Novo carentes de liberdade e de cidadania.

Nos anos pós a Vargas carentes de paz e de respeito pelas inúmeras tentativas de golpes, grandes e pequenos, da UDN.

E na Ditadura Militar, carentes de tudo.

Talvez por tudo isso desenvolvemos no íntimo da nação aquilo que poderíamos chamar de “Complexo de Vira lata”.

Ninguém fala pior do Brasil do que os próprios brasileiros. Ninguém descrê mais de nosso futuro e de nossa história do que nós mesmos.

O brasileiro não acredita na possibilidade do Brasil criar asas e voar. Persiste entre muitos a idéia de que somos apenas aquela colônia metida à besta, uma monarquia ridícula e ultrapassada e ai meu Deus tomara que não saia no Times.

Nosso povo se constrange em vez de se orgulhar, quando mecanismos econômicos internacionais afirmam que nosso Produto interno Bruto é o 6º ou 5º do mundo. As pessoas não acreditam quando se noticia que estamos em pleno emprego enquanto na Europa o desemprego é uma verdadeira tragédia.

Não é possível um ex-metalúrgico governar direito se a “obrigação” do metalúrgico um simples representante do proletariado é ser um pobre obediente e agradecido, um figurante, jamais o protagonista. Não pode uma mulher (uma mulher, meu Deus!) governar o país e ele progredir. Algo deve estar errado. Cadê meu privilégio que estava aqui? Estão roubando, mentindo, iludindo, não é possível. Onde está os Estados Unidos que não vê uma coisa dessas?

A corrupção é fenômeno e problema no mundo inteiro, mas no Brasil é maior. Ninguém rouba mais do que nosso corrupto, não senhor!

Lateja em nossa mente que somos apenas uma nação de mestiços e de escravos. De negros que não embranqueceram como deveriam e que agora querem até fazer faculdade, de mulheres que parem pobres desavergonhadamente, de plantadores de cana, da Casa Grande e da Senzala. Não merecemos a riqueza e o desenvolvimento é uma ilusão que deverá terminar já no próximo governo.

Enquanto os Europeus e os Estados Unidos nos causam inveja e posam de cachorro de raça, nós insistimos em ser um cachorro vira-lata.

Insistimos em ver nossas crianças mais burras do que a dos outros, nossas mulheres mais vulgares do que as outras e nosso destino mais determinado à pobreza do que qualquer um.

Talvez esteja na hora de acreditar na possibilidade de diminuir as desigualdades sociais. A distância abismal entre ricos e pobres não obedece a um mandamento determinista. Nosso pobre pode deixar de ser pobre e o nosso abandonado, pode sim, ser acolhido.

Talvez esse seja o momento de deixar de ser colônia moral.

Talvez esteja na hora de respeitar nossa cultura, que não é nem melhor, nem pior do que a dos outros, mas digna e moldada na lágrima de dor e esperança do escravo martirizado, na perplexidade e coragem do índio violado, na saudade do imigrante e na brasilidade de tudo isso misturado.

Não, definitivamente, não somos um cachorro vira lata.


Prof. Péricles

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

O SEGREDO DE ATLÂNTIDA



Quando o velho vulcão, tão conhecido, rugiu mais alto do que jamais havia sido ouvido, nuvens sombrias cobriram os olhos surpresos de todos. Mal podiam imaginar que o vulcão estivesse apenas limpando a garganta.

Aquela sociedade desenvolvida como nenhuma outra, havia se acostumado a ter o controle de tudo e algo tão surpreendente como aquele rugido assustou como um pressentimento de morte.

Assim, num tempo em que as cidades-estados gregas ainda não existiam, todas as atenções voltaram-se para a maior autoridade daquele mundo – a sacerdotisa.

A Ilha de Thera, a poucos quilômetros de Creta, era o centro orgulhoso da cultura minóica. Centro comercial dos quatro cantos da civilização. As leis desenvolvidas e o humanismo eram valorizados. Um oásis entre o inóspito mundo da força bruta. As mulheres eram protegidas pela lei diante de qualquer abuso masculino e valorizadas como somente dali a 4 mil anos seriam valorizadas no ocidente. Dessa forma, não é de estranhar que a maior autoridade religiosa, com poder equivalente ao poder político, fosse uma mulher, sendo sua sociedade essencialmente matriarcal.

Ao cair da tarde daquele dia, seguida por olhares aflitos, precedido por mais dois fortes abalos, a sacerdotisa dirigiu culto e oferendas à Posseidon, o deus protetor da cidade.

Mas, durante a noite e a madrugada, o mau humor do vulcão piorou e as erupções se seguiram espalhando o pânico e tornando impossível adormecer.

Nos primeiros raios de sol, a pedra pome, quente e ácida, passou a cair em quantidade. Mas, o pior eram as cinzas. Invadindo silenciosamente as vias aéreas e tomando o pulmão, as cinzas vulcânicas foram capazes de matar por asfixia, aos milhares.

Pela manhã o povo de Thera não veria o sol, tendo a impressão, devido às cinzas na atmosfera, que a noite havia se tornado eterna.

A população passou a guardar seus bens em poços e buracos, nas paredes das grutas e residências, com a intenção de recuperar tudo novamente quando o pesadelo passasse.

Muitos desses bens só seriam descobertos pela arqueologia, recentemente, nos anos 2000.
Um novo abalo perto do meio dia destruiu a parte norte da montanha vulcânica causando um barulho tão forte que pôde ser ouvido a quilômetros de distância provocando a surdes de várias pessoas. A partir desse instante o mar começou a deslocar-se em direção as lavas.

No início da tarde, enquanto a desmoralizada Sacerdotisa fazia solitariamente um último apelo a Posseidon, os primeiros barcos levando parte da população.

As 16 hs. as lavas incandescentes e as águas do mar se encontraram produzindo uma cortina de fumaça e ácido sulfuroso, verdadeiro fluído mortal que se espalhou em todas as direções. Esse fluído “caminhante” passou a deslizar sobre as terras da ilha e depois sobre as águas indo alcançando os navios que haviam partido em busca da salvação.

À tardinha, 24 horas depois de limpar a garganta, o vulcão explodiu no maior fenômeno sísmico da história da humanidade.

A explosão lançou material até na estratosfera. Por meses o sol não conseguiria romper as nuvens negras produzidas. O barulho da explosão foi tão grande que chegou a ser ouvido a milhares de quilômetros, no Egito. Quatro vezes pior que a explosão de Cracatoa, 40 mil vezes pior que a explosão de Hiroshima.

O tsunami de ondas gigantes foi tão destruidor que em muitas culturas foi descrito como o dilúvio do fim do mundo.

Nem Thera, nem Creta, nem a própria cultua minóica sobreviveram.

A destruição abalou de tal forma o mundo desenvolvido e precoce que, por milhares de anos deixaria sem respostas perguntas que fizeram crescer o mistério em torno de sua Armageddon. Embora a falta de registros e o atraso de qualquer cultura contemporânea, a recordação dolorosa permaneceu na forma de lendas e de histórias incompletas.

Muitos anos depois o filósofo ateniense Platão registraria a morte desse mundo fascinante e desenvolvido, engolido pelo mar em uma só noite.

Platão não deu maiores explicações (provavelmente porque não as tivesse) e seu relato passaria para a história como um estranho e misterioso relato.

Teria o discípulo de Sócrates tomado umas a mais?

Enquanto Platão a chamou simplesmente de Atlântida, nenhum outro pensador clássico fez qualquer citação ao fato.

Onde ficava essa terra exatamente? No Oceano Atlântico? No Caribe, no chamado Triângulo das Bermudas? No Egito ou até na Antártida, abaixo da camada de gelo.

Eles conheciam o avião, computador, armas de fogo? Imaginações dedicaram vidas inteiras a essas buscas.

Mas, agora sabemos que as testemunhas da extensão da destruição cataclísmica repousa em Thera, bela ilha que Posseidon, um dia, abandonou.

Finalmente, o mundo encontrou Atlântida.


Prof. Péricles

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

ASSIM NASCEU A IGREJA



O homem sentado no meio da sala vazia estava muito preocupado. E sobravam razões para sua carranca.

O Homem era o Imperador Constantino, um político latino de visão larga e que percebia que o grande, o extraordinário Império agonizava.

Além de ter que enfrentar Licínio, outro candidato ao trono, Constantino se amargurava pela constante desvalorização da moeda, pelo desemprego urbano causado pelo excesso de escravos nas cidades e da baixa produtividade agrícola pela falta desses mesmos escravos no campo e ainda, pelas dificuldades naturais de administrar um Império de dimensões continentais cuja população não parava de crescer.

Constantino foi dormir naquela noite com a amarga sensação de fim de festa.

Durante a noite o imperador teve sonhos agitados e confusos, e ao despertar, um plano começava a tomar força em sua mente.

Usando a própria esposa como ouvinte-teste ele argumentou: “Nesse momento de crise intestina o que eu mais preciso para derrotar Licinio e para normalizar a vida do Império? Apoios. Mais que isso, dinheiro. Existe algum grupo hoje, em todo império que possa apoiar mais e contribuir mais? Existe claro que existe. Os cristãos”.

Fausta, a esposa, ansiosa para parecer mais inteligente que ex, Minervina, ousa levantar a mão (com a qual segurava a tiara) e contrapor: “mas o cristianismo não é proibido no Império? Não é por causa disso que eles se escondem nas catacumbas?”

“Eureka (como havia dito Arquimedes), isso mesmo!” Brada Constantino I, “devemos deixar de fazer de conta que não percebemos o crescimento do cristianismo, e os trazermos para a luz da legalidade (e da taxação)”.

“Mas você já ouviu falar no mestre deles?”, disse o secretário Calixtos entrando no salão, “É um homem que não concorda que Cezar seja também um deus. Nega a existência de nossos deuses e diz haver apenas um deus. Além do mais, fala em perdoar os inimigos e nosso império é um império guerreiro... E o pior de tudo, prega que todos são iguais, servos, nobres e imperador. Poderemos aceitar essas coisas?”

Constantino se ergueu e disse: “depende, meu caro Calixtos, se for ou não vantajoso. Iremos nos unir aos cristãos. Mas alteraremos o cristianismo. Faremos uma aliança com sua alta liderança (clero) e estabelecer que Cristo é esse, e quais os fundamentos do Cristianismo que nos interesse, claro”.

Em 313 Constantino assinou o Edito de Milão. O documento final afirmava que o Império Romano seria neutro em relação ao credo religioso acabando oficialmente com toda e qualquer perseguição ao cristianismo. As propriedades que haviam sido confiscadas, anteriormente, foram devolvidas aos cristãos.

Doze anos depois, em 325, após muitas negociações, Constantino e os líderes da Igreja (já chamados de Papas desde o século II) reúnem-se na cidade de Nicéia (atualmente área da Turquia) para estabelecer o Cristianismo que o Estado e a nobreza poderiam suportar.

É em Nicéia que se define a questão cristológica, isso é, quem deveria ser Jesus e quais dos seus ensinamentos deveriam ser ressaltados. Foi então que a figura de Jesus se afastou do homem comum e revolucionário, morto sob tortura, para se tornar o próprio Deus, fundindo Pai e Filho num só. É construído um credo (conjunto de pontos a serem aceitos), fixada a data da Páscoa, necessariamente uma Páscoa separada da Páscoa dos judeus, apagado o conceito de reencarnação e ocorre a promulgação da lei canônica que estabelece o jogo hierárquico e legal do clero (os degraus até chegar a Papa).

O plano de Constantino funcionou e ele pode morrer imperador de um Império inteiro e compacto.

Finalmente, em 27 de fevereiro de 380, foi decretado o Édito de Tessalônica, pequena cidade da Grécia (Província Romana) pelo imperador Teodósio, seguidor da política de Constantino. A religião Católica tornava-se a religião oficial e exclusiva do estado, sendo abolidas todas as praticas politeístas dentro do Império Romano e fechados todos os templos pagãos.

E foi assim que uma pequena religião do oriente se tornou a maior religião do ocidente. E atravessaria o tempo moldando destinos

Dessa forma surgiu uma igreja fortemente centralizada e hierarquizada. Estruturada umbilicalmente com o poder político e com as classes dominantes. Uma Igreja afastada dos excluídos e próxima do poder.

Foi dessa maneira que a forma se tornou mais importante que o conteúdo, a interpretação exclusividade do clero e o pobre perdeu Jesus para ganhar seu Papa.

O final dessa história? Bem, ela ainda não terminou.

Ela continua hoje com a renúncia anunciada de Bento XVI.

Num mundo em tremendas transformações que apresentam questões cruciais como homofobia e cidadania, células tronco e avanços da genética, a Igreja irá definir seus caminhos.

Ou elege o terceiro Papa ultra-conservador seguido e escolhe o caminho reacionário continuando a fingir não existir casos de pedofilia e nem escândalos financeiros, ou cingi um Papa da ala mais progressista que signifique discutir velhos dogmas e tabus e optar por mudanças corajosas.

O caminho escolhido poderá levar, ou não, ao maior racha que a Igreja já conheceu em tempos modernos ou o reencontro da Igreja com seu povo.


Prof. Péricles

domingo, 17 de fevereiro de 2013

JÁ VAI TARDE




Por Márcia Denser

Inspirada em várias fontes, eis algumas reflexões (e revelações para quem não sabe) sobre a renúncia de Beto XVI: um mix de dinheiro, poder e sabotagens, corrupção, espionagem, escândalos sexuais – a presença ostensiva desses ingredientes de filme de terror no noticiário constituía o dia-a-dia do Vaticano.

Tal frequência e a intensidade anunciavam algo nem sempre inteligível ao mundo exterior: o acirramento da disputa sucessória de Bento XVI nos bastidores da Santa Sé. Desta vez, mais do que nunca, a fumaça que anunciará o “habemus papam” refletirá o desfecho de uma fritura política de vida ou morte entre grupos radicais de direita na alta burocracia católica.

Mais que de saúde, razões de Estado teriam levado Bento XVI a anunciar a renúncia de seu papado. (...)

Sua desistência oficializa a entrega de um comando de que já não dispunha. Devorado pelos grupos dos quais inicialmente tentou ser o porta-voz e controlar, Bento XVI jogou a toalha. (...)

Quadro ecumênico da teologia, inicialmente um simpatizante das elaborações reformistas de pensadores como Hans Küng, Joseph Ratzinger escolheu o apoio da direita para galgar os degraus do poder interno no Vaticano.

Em meados dos anos 70/80, ele consolidaria essa comunhão emprestando seu vigor intelectual para se transformar em uma espécie de Joseph McCarthy do fundamentalismo católico. Foi assim que exerceu o comando da temível Congregação para a Doutrina da Fé. À frente desse arremedo da Santa Inquisição, Ratzinger foi diretamente responsável pelo desmonte da Teologia da Libertação.

O teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos intelectuais mais prestigiados desse grupo, dentro e fora da igreja, foi um dos seus alvos: advertido, punido e desautorizado, seus textos foram interditados e proscritos. Por ordem direta do futuro papa. Antes de assumir o cargo supremo da hierarquia, Ratzinger “entregou o serviço” cobrado pelo conservadorismo. (...)

E dá-lhe pedofilia por debaixo dos paramentos sacrossantos!

Sob a inspiração de Ratzinger, seu antecessor, João Paulo II, liquidou a rede de dioceses progressistas no Brasil, por exemplo. As pastorais católicas de forte presença no movimento de massas foram emasculadas em sua agenda “profana”. A capilaridade das comunidades eclesiais de base da igreja ficou restrita ao catecismo convencional e, naturalmente, à Nova Carismática e o nunca por demais esquecido Padre Marcelo Rossi (cruzes!).

Ratzinger recebeu o Anel do Pescador em 2005, no apogeu do ciclo histórico que ajudou a implantar. Durou pouco. Três anos depois, em setembro de 2008, as finanças do conservadorismo sofreriam um abalo do qual não mais se recuperaram. (...)

Fome, exclusão social, desolação juvenil não são mais ecos de um mundo distante. Formam a realidade cotidiana no quintal do Vaticano, em uma UE destroçada para a qual a Igreja Católica não tem mais nada a dizer há séculos. Sua tentativa de dar uma dimensão terrena ao credo conservador perdeu qualquer sentido perante a crise social devastadora.

Será lembrado (ou esquecido) como o Papa dos ricos e pedófilos.

Vade retro!

Ou melhor: já vai tarde.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

ESPAÇO AÉREO DE PORTO ALEGRE




O espaço aéreo de Porto Alegre sempre foi foco de atenção, expectativas e encantos.

Em agosto de 1961, durante os momentos mais críticos da Campanha pela Legalidade, que impediu o golpe militar que só ocorreria em março de 1964, olhava-se para o céu de Porto Alegre com grande aflição. Notícias desencontradas davam conta de um provável bombardeio ao centro da cidade, ao Palácio Piratini e arredores, onde a população armada pelo Governador Brizola transitava, disposta à luta. O bombardeio não veio, sabe-se hoje, graças a uma heróica resistência de militares gaúchos na Base Aérea de Canoas.

Antes, em 1923, os céus de Porto Alegre já haviam assistido gaúchos rumando para bombardear gaúchos, quando aviões do governador Borges de Medeiros atacaram forças de Assis Brasil, na chamada Revolução Assisista.

Hoje, felizmente, não se observam vôos de guerra mas, o espaço aéreo de Porto Alegre ainda apresenta seus mistérios.

Por exemplo: é conhecida de todos a presença de uma perigosa gang de papagaios na cidade.

Todos os dias eles partem da Praça da Alfândega, cruzam o centro histórico e se jogam debochadamente nas árvores do Parque Farroupilha (Redenção). Passam o dia por lá, matraqueando o tempo todo, discutindo política, a situação da dupla Grenal e, claro, falando das papagaias. À tardinha, retornam barulhentos para as Árvores da Praça da Alfândega e adjacências, onde fazem amor despudoradamente e dormem com as últimas luzes da cidade.

Já as centenas de pombos, mais antigos, são presença obrigatória em qualquer fotografia tirada na Praça Montevideo e do Mercado Público. E não adianta reclamar e pedir que se retirem pois, estranhamente, eles se sentem mais donos da cidade do que qualquer outro porto-alegrense.

Dia desses, um filhote apareceu no “fumódromo” localizado no 12º andar do prédio onde trabalho. Nasceu com a pata atrofiada e, sem poder voar, foi abandonada pela mãe. Foi adotada pelos freqüentadores daquele antro de perdição. Cuidamos dele com zelo, água, pão e carinho, talvez porque fumante saiba bem o que é ser discriminado. Duas semanas depois, crescido, ele finalmente conseguiu voar e se foi a povoar nosso céu, o que provou duas coisas: fumante também tem coração e pombinhas são mal agradecidas, pois se foi sem nem dizer adeus.

Porém, existem novidades nos céus de Porto Alegre.

Recentemente um casal de abutres aderiu ao cenário.

Esqueça o urubu, aquele bicho sinistro. Esses são abutres altivos, orgulhosos, cabeças erguidas e ar solene. Voam com estilo e olham pombos, papagaios e pessoas, literalmente de cima. Dão vôos longos (acho que apostam quem chega primeiro a próxima nuvem), descrevem curvas sinuosas e largas. Um menino e uma menina. Únicos. Sem bando. Provavelmente personagens de um amor não compreendido entre os abutres, que resolveram abandonar tudo, menos um ao outro e escolheram Porto Alegre como sua Verona.

Os biólogos e urbanistas não sabem explicar, pois não tem sentido biológico o que os dois fazem aqui. Fui um dos primeiros, mesmo antes dos jornais, a percebê-los enquanto queimava a vida no fumódromo aquele. Inclusive quando dei a notícia exultante, recebi frieza e ainda fui acusado de estar fumando outra coisa além do cigarro lá no12. Tudo bem, dessa vez eles estavam errados, mas não guardo rancor.

Tudo isso somado à presença inexplicável de alguns pequenos gaviões perdidos (provavelmente bêbados) fazem do espaço aéreo de Porto Alegre, moldurado pelo Guaíba que cerca a cidade como um caminho de prata brilhante, um espaço de encantos e de mistérios. Enquanto cidadãos apressados arrastam suas rotinas sem tempo de erguerem os olhos aos céus, seres alados, de outros tempos e de outros espaços, trazem beleza à vida, até mesmo de fumantes.

Prof. Péricles



segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A TRAGÉDIA DE SANTA MARIA

Dizem, na Sala dos Professores, que ensinar é um fato compartilhado e que quando transferimos conhecimento, um pouco de nós passa a fazer parte de quem conosco aprendeu.

Essa afirmação é totalmente procedente e ao longo de nossa carreira aprendemos ser impossível ensinar sem aprender junto, assim como é impossível educar sem doar uma boa parte de si mesmo.

Sendo isso verdadeiro, uma boa parte de mim morreu em Santa Maria na madrugada do dia 27 desse mês de janeiro.

Foram muitos os ex-alunos de pré-vestibular incluídos entre as vítimas da tragédia da boate Kiss.

Diante de tanta dor que vitimou tantos jovens e sabendo que muitos levaram consigo um pouco de nós, nos perguntamos se não é uma ilusão a morte por inteira e se na verdade não morremos por partes.

Se pedaços inteiros partiram, não partimos também?

O mesmo, evidentemente, ocorre com os pais, os primeiros e principais educadores de seus filhos.

Quando começamos a morrer de fato? Certamente antes, bem antes do nosso último suspiro.

Morremos, talvez nas pequenas tragédias do dia a dia, as vezes imperceptíveis, assim como nos grandes holocaustos como esse do dia 27.

Mas também renascemos. Talvez viver seja apenas uma continuidade infinita de mortes e renascimentos.

Fiquei com a sensação que o Brasil renasceu também nesse dia.

Milhões de pessoas, em todos os quadrantes desse país, foram capazes de sofrer e de chorar por pessoas que jamais conheceram pessoalmente.

Se somos capazes de sofrer sem segundas intenções e se somos capazes de chorar sem com isso negociar recompensas futuras, é porque, apesar de tudo, das crises econômicas, políticas, sociais, morais, midiáticas, etc, apesar de tudo isso, ainda não perdemos a nossa humanidade.

Deu para perceber que morremos por parte e em cada parte, formando uma só unidade. No altruísmo da dor renascemos como pais, mães, amigos, colegas.

E aí está mais uma verdade discutida nas Salas dos Professores: quem ensina é o primeiro a aprender e nossos jovens acabaram expondo esse Brasil renascido. Aprendemos também.

Dos nosso alunos que partiram restou a certeza de ter valido à pena cada parte doada.

Aos seus pais cuja dor intensa é imensurável, a certeza de que é necessária a resignação para poder continuar, sempre lembrando que resignar não implica em não sofrer, mas sim acreditar que tudo isso, um dia, fará sentido.

Dizem os poetas que, quando damos flores o melhor do perfume fica em nossas mãos.

Da mesma forma, quando produzimos filhos ao mundo ficamos eternamente com o brilho de seus sonhos.


Prof. Péricles



quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O SOLDADO BRADLEY MANNING


O soldado Bradley Manning pode, finalmente, falar publicamente em sua defesa, em uma audiência preliminar ao conselho de guerra a que será submetido esse ano. Manning é a suposta fonte do maior vazamento de inteligência na história dos Estados Unidos. Ele trabalhava como analista de inteligência no Exército dos Estados Unidos e tinha acesso á informação ultra-secreta, foi enviado ao Iraque. Em abril de 2010, Wikileaks publicou um vídeo onde um helicóptero Apache, das Forças Armadas estadunidenses, dispara contra uma dezena de civis.

Um mês depois da publicação do vídeo, Manning foi preso no Iraque e acusado de ter vazado o vídeo e outras centenas de milhares de documentos. Assim começou seu calvário de encarceramento em confinamento solitário, em condições cruéis e degradantes que muitos sustentam equivaler à tortura, desde sua detenção no Kuwait até os meses de detenção na base militar Quantico, na Virgínia, Estados Unidos.

O advogado constitucionalista de longa trajetória, Michael Ratner, encontrava-se na sala de audiências em Fort Meade, Maryland, no dia em que Manning prestou seu depoimento. Ratner descreveu a cena: “Foi uma das cenas mais dramáticas que já vi em uma sala de audiências. Quando Bradley começou a falar não estava nervoso. Seu testemunho foi extremamente comovedor, realmente emotivo para todos nós, mas especialmente, como é evidente, para o próprio Bradley pelo que teve que suportar. Foi terrível o que aconteceu em dois anos, mas ele descreveu tudo com riqueza de detalhes, de um modo eloqüente, inteligente e consciente”.

Ratner disse que Manning descreveu como ficou detido em uma jaula no Kuwait: “Havia duas jaulas. Disse que eram como jaulas para animais. Estavam sob uma tenda, só estas duas jaulas, uma ao lado da outra. Uma delas continha alguns dos pertences de Manning, na outra, onde ele estava, havia uma pequena cama, uma estante e um vaso sanitário. Ele permaneceu nesta jaula escura durante quase dois meses. Ele foi retirado dela por curto espaço de tempo e depois, sem dar explicações, voltaram a colocá-lo na jaula (...) Bradley disse sobre esse período: “Creio que perdi a noção do tempo. Não sabia se era dia ou noite. Meu mundo se tornou muito pequeno. Converteu-se nessas duas jaulas”. Ratner acrescentou: “Isso quase o destruiu”.

Depois de sua detenção no Kuwait, Manning foi transferido para uma base militar em Quantico. Seu advogado, David Coombs, disse: “O modo pelo qual trataram Brad em Quantico ficará gravado para sempre na história de nosso país como um momento lamentável. Não foi somente estúpido e contraproducente. Foi criminoso.

Bradley contou como era estar nessa cela, na qual deve dormir em uma pequena cama, com uma luz frontal apontada na sua direção, que deixavam acesa para poder observá-lo. Se ele se movia para evitar a luz iam acordá-lo. Isso acontecia pela noite. Durante o dia, passava de 23 a 23 horas e meia na cela. Às vezes, tinha 20 minutos do que chamavam de “exercício ao sol”, o que não é nada. O que ele podia fazer? Porque supostamente está em serviço, devendo ou estar em pé ou sentado nesta cama de metal com os pés no solo e sem poder apoiar-se em nada. Isso durante 10 ou 15 horas por dia, o que deve se chamar de privação dos sentidos”.

O relator especial das Nações Unidas sobre a tortura, Juan Méndez, tentou visitar Manning, mas acabou se negando quando as forças armadas disseram que iriam vigiar e gravar a visita. Méndez informou: “A detenção em confinamento solitário é uma medida severa que pode provocar grave dano psicológico e fisiológico aos indivíduos, independentemente de sua situação específica”.

Os oficiais do exército descreverem o tratamento cruel aplicado a Manning como necessário, devido ao fato de que, segundo afirmaram, havia risco de que ele tentasse o suicídio. No entanto, o capitão da Marinha, William Hocter, um psiquiatra forense de Quantico, disse que não existia tal risco, mas que não o escutaram. “Sou médico chefe há 24 anos e nunca vi algo igual”, declarou Hocter. “Estava claro que estavam decididos a tomar um determinado curso de ação e pouco importavam minhas recomendações”.

A primeira etapa do conselho de guerra, que Coombs denomina “a etapa das moções de castigo ilícito antes do julgamento”, considerou uma moção da defesa pedindo o fim do caso. Embora seja improvável que isso aconteça, aqueles que seguem o caso sustentam que a defesa solicitou, como alternativa, que o conselho de guerra considere reduzir a pena de Manning resultante do julgamento a uma razão de dez dias por cada dia que teve que suportar o trato cruel e degradante no Kuwait e em Quantico, o que, em tese, poderia significar uma redução de seis anos em sua condenação à prisão.

Manning é acusado de vazar uma série de documentos para Wikileaks, que incluem o vídeo do massacre de Bagdá, duas grandes séries de documentos relacionados com os registros militares estadunidenses das guerras do Iraque e do Afeganistão e, talvez o mais importante, o vazamento de mais de 250 mil telegramas do Departamento de Estado dos EUA, conhecida como “Cablegate” (em referência a Watergate). Após uma avaliação realizada em agosto de 2010, o então Secretário de Defesa, Robert Gates, sustentou que a publicação dos documentos “não revelou fontes nem métodos de inteligência importantes”.

Ele concordou em se declarar culpado pelo vazamento dos documentos, mas não pelas acusações mais graves de espionagem e nem de ter ajudado o inimigo.

Bradley Manning completou 25 anos dia 17 de dezembro na prisão, data que também marcou o segundo aniversário da morte do jovem tunisiano que se imolou em protesto contra o governo corrupto de seu país, dando início à Primavera Árabe. Há um ano, quando a revista Time nomeou o “manifestante”, em termos genéricos, como Personagem do Ano, o lendário informante dos Documentos do Pentágono, Daniel Ellsberg, elogiou essa decisão em uma declaração que também se aplica à realidade atual: “A capa da revista Time nomeia o manifestante, um manifestante anônimo, o “Personagem do Ano”, mas é possível colocar um rosto e um nome nesta foto do “Personagem do Ano”. O rosto estadunidense que apareceria nesta capa seria o do soldado Bradley Manning”.

Amy Goodman - Democracy Now
Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.
Tradução: Katarina Peixoto

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

TENSÕES INTERNACIONAIS



Nesse início de 2013 algumas áreas de tensão, que trazem preocupação à paz mundial, são bem visíveis. A fronteira Índia/Paquistão, a instabilidade na Península da Coréia, e o Oriente Médio, são as mais preocupantes ameaças à paz no mundo.
Quando a Índia tornou-se independente do Império Britânico, num processo impar de não violência liderado pelo Mahatma Ghandi, as divergências entre hindus e muçulmanos produziam as mortes que o Mahatma conseguira evitar contra os ingleses. Em grande maioria, os hindus ocupariam o governo do país, com facilidade. Devido antagonismos ancestrais os muçulmanos temiam perseguições por parte dos Hindus e as lideranças muçulmanas impuseram após lutas sangrentas, a secção de parte do país dando origem a um novo Estado, o Paquistão. Assim, a Índia seria dos hindus e o Paquistão dos muçulmanos. Na partilha territorial, porém, uma importante região chamada Caxemira, apesar de habitada quase que totalmente por muçulmanos ficou para o estado hindu. De lá pra cá, essa fronteira tem sido uma das mais tormentosas do planeta. Já ocorreram guerras convencionais devido o surgimento de grupos separatistas caxemires que lutam contra as autoridades da Índia para anexar a região ao mapa paquistanês. Segundo o governo da Índia, os rebeldes caxemires são financiados pelo Paquistão. Detalhe importante, ambos os países possuem armamento nuclear, o que torna a ameaça de uma guerra entre os dois um perigo global e não apenas regional.

A Guerra da Coréia foi um dos capítulos mais marcantes da primeira fase da Guerra Fria. Aconteceu entre 1950 e 1953 e dividiu o país, como se tornaria clássico naquela Ordem Internacional. A parte Norte apoiada pela China Comunista (fazem fronteira) e a porção sul apoiada militarmente por forças dos Estados Unidos. A Guerra chegou a uma espécie de empate técnico entre eles foi assinado o cessar fogo de Piongang. Por se tratar de um cessar fogo e não de um acordo de paz, teoricamente os dois países irmãos ainda estão em guerra. A Coréia do Norte adotou o socialismo e após a crise do socialismo e fim da URSS em 1990 entrou em profunda depressão econômica, já a Coréia do Sul adotou o modelo capitalista e graças a profundos investimentos norte-americanos desfruta hoje de uma cômoda situação financeira, sendo um dos países mais modernos da Ásia. Inconformados com a situação, a Coréia do Norte nos últimos anos tem trazido apreensões à região com testes de mísseis e outros armamentos que colocam em risco, além da Coréia do Sul, o Japão, tradicional inimigo coreano. A Coréia do Norte também possui armamento nuclear e o medo maior é que, para sobreviver à crise econômica use métodos radicais para forçar acordos com seus vizinhos.

O Oriente Médio possuí mais de um foco de crise. O Irã que a mais de ano iniciou um programa nuclear (segundo os iranianos apenas para fins pacíficos) mais uma vez está no olho do furacão. Segundo os governos de Israel, Estados Unidos e da maioria dos países da Europa Ocidental, o Irã busca construir armamentos nucleares que colocariam, não só Israel, mas toda a região em risco. Além disso, os investimentos em armas feitos por seu governo fazem desse país, o detentor de um dos mais poderosos exércitos da região. O mundo ocidental divide-se hoje entre os que defendem uma ação militar imediata contra Teerã e os que consideram melhor insistir nas negociações diplomáticas. Outro país que tem tirado o sono dos pacifistas é a Síria. País de inúmeras divisões internas, a Síria é governada desde 2000 pelo político Bashar AL-Assad. Envolto nos movimentos da Primavera árabe Assad enfrenta há vários meses uma verdadeira guerra civil para derrubá-lo do poder. Segundo o Presidente, os rebeldes são apenas aliados dos norte-americanos e israelenses que desejam dominar a Síria para que sirva de trampolim a um ataque ao Irã. Segundo os EUA e a OTAN, Assad é um ditador cruel que tem usado armamento militar contra populações civis. O problema torna-se mais grave ao entendermos a Síria como a mais importante aliada da Rússia e da China na região, tendo esses governos deixado claro que não irão tolerar uma nova intervenção militar no Oriente Médio, pois que, enfraqueceria sobremaneira suas posições políticas na zona estratégica do petróleo.

Finalmente importa lembrar a interminável questão árabe-israelense. No ano passado a Autoridade Nacional Palestina conseguiu status de Estado reconhecido pela ONU. Isso provocou turbulências e ameaças por parte de Israel e dos Estados Unidos (o governo norte-americano deixou de repassar alguns milhões de dólares na UNESCO como retaliação). Israel acompanha a questão do Irã e da Síria muito atentamente. Em 2012, alegando que mísseis palestinos do Hamas partiam da Faixa de Gaza, Israel apertou o cerco na região, acelerou a construção do muro da vergonha e bombardeou algumas cidades palestinas matando civis. Depois, num recuo surpreendente, aceitou um cessar fogo. Segundo analistas mais pessimistas, esse recuo pode ter sido estratégico, apenas para preparar um lance mais ousado, como, por exemplo, um bombardeio no Irã. Um conflito no Oriente Médio ameaça extrapolar as fronteiras da região, envolver OTAN, China e Rússia, e provavelmente originar um confronto de características muito mais graves do que os últimos desencontros na região.

Fique atento. A situação hoje é muito, muito mais grave do que qualquer predição dos Maias ou comentários que se faça nos telejornais.

Prof. Péricles

sábado, 12 de janeiro de 2013

DIGA-ME COM QUEM ANDAS



Você conhece o “João de Barro”?

É um pássaro que faz uma verdadeira obra de engenharia a partir da argila.

Ele faz sua “casa” não de folhas e galhos, mas de barro, e com ela atrai a fêmea na época do acasalamento. Um verdadeiro artista da natureza.

Pois conheço um João de Barro que, apaixonado resolveu construir sua casa no poste mais central na praça central da cidade (sabe como são os João de Barro apaixonados, querem aparecer).

Negociou com o prefeito, explicando que dessa forma poderia fazer a casa de João de Barro mais vista da cidade.

O prefeito, de um partido conservador, aceitou os argumentos da ave, mas com condições. O João de Barro não poderia usar barro e sim areia fina, um material superfaturado que o prefeito queria vender e, claro, uma parte da verba da construção iria para ele, prefeito.

João de barro ficou triste, mas, pensou, melhor assim do que sem casa nenhuma. E topou a parceria.

Por falta de experiência nesse tipo de material João de Barro se confundiu todo e resolveu pedir uma consultoria com o engenheiro mais famoso da cidade.

O engenheiro explicou que poderia usar água para endurecer a areia, porém, teria que pagar um por fora ao jardineiro da praça central, o dono da mangueira municipal e, uma beira pra ele, engenheiro.

Nosso herói não encontrou outra solução. Sua vontade de construir a melhor casa de João de Barro da cidade era imensa, precisava conquistar não apenas uma parceira, mas a Joana de barro mais gata da floresta. Mais uma vez, topou o negócio. Então, negociou com o jardineiro, pagou unzinho por fora e teve sua areia fina umedecida.
A água, entretanto, era pouca, parte da areia virou barro, e outra não.

As pessoas que admiravam sua enorme habilidade natural para a engenharia e arquitetura, seu ideal instintivo de grande construtor, aos poucos iam se decepcionando e já não o chamava de João de barro e sim “João areia fina” além de não acreditavam em seus discursos explicativos.

De um jeito ou de outro a casa finalmente ficou pronta e João de Barro se pôs a cantar para atrair a fêmea, mas atraiu mesmo foi o fiscal da prefeitura que ameaçou autuá-lo por perturbação da ordem e desrespeito ao horário de silêncio.

- Mas com atrairei as fêmeas? perguntou o pobre e a resposta do fiscal foi “faça mímica", forme uma banda, invista na serenata ou simplesmente cale-se.

Quando o período de acasalamento começou a realidade de João de Barro era completamente diferente da que imaginara.

Ele que queria fazer a melhor casa de barro no poste mais central da praça central e atrair a mulherada, ou a passarada, e a Joana de Barro mais gata da floresta, era agora chamado de João areia-fina, tinha apenas uma meia casa grudada ao poste e chamava as fêmeas com mímica. Nenhuma delas o percebeu e ele ficou sozinho, iludido e com enorme sentimento de fracasso.

Ascendeu ao poste mais alto, mas para isso negociara todas as suas mais essenciais qualidades. Morreu solteiro.

Coisa muito semelhante acontece com os partidos que cultuam a chama da mudança e da justiça social, que atraem milhões para os seus sonhos, que prometem um governo diferente de tudo que já foi visto, íntegro e fiel.

São partidos cuja natureza social é latente e sua mais forte característica.
Para chegar ao poder, porém, necessitam da tal governabilidade que é como chamam a parceria entre partidos, independentemente dos sonhos ou interesses, para ter espaço na propaganda eleitoral e votos aliados no Congresso.

Em nome da tal governabilidade. Negociam tudo.

Assim como o João de Barro negociou até o barro, partidos ditos ideológicos, negociam até suas ideologias e quando percebem, estão no alto do poste mais alto, mas nus de seus antigos sonhos. Mantém a estrela, mas perdem seu brilho.

Quase nada resta do sonho original e o que representam é apenas uma pálida lembrança do que fora sua utopia um dia.

Aprendem tarde demais, como Fausto, que não é possível barganhar com o capeta depois de vender sua alma.

Hoje, entre um cafezinho e outro na lanchonete do Congresso, políticos outrora ligados à resistência democrática contra o autoritarismo, se acotovelam com coronéis desse mesmo poder que combatiam. Trocam afagos e planejam estratégias.

Diga-me com quem andas que te direi quem és.

De que vale governabilidade se o seu preço for esquecer os velhos princípios? Sempre chegará o dia em que as diferenças que antes demarcavam claramente diferentes visões darão lugar à semelhanças, conservadoras e corruptas.

De seus projetos de construção de uma sociedade mais justa, de seus desvarios adolescentes e de suas velhas utopias, quase nada resta, muito menos o canto que antes atraía os verdadeiros sonhadores.


Prof. Péricles

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

OPERAÇÃO CONDOR



A Operação Condor foi uma aliança estabelecida formalmente, em 1975, entre as ditaduras militares da América Latina. O acordo consistiu no apoio político-militar entre os governos da região, visando perseguir os que se opunham aos regimes autoritários. Na prática, a aliança apagou as fronteiras nacionais entre seus signatários, que se articularam na repressão aos adversários políticos.

O nome do acordo era uma alusão ao condor, ave típica dos Andes e símbolo do Chile. Trata-se de uma ave extremamente sagaz na caça às suas presas. Nada mais simbólico, portanto, que batizar a aliança entre as ditaduras de Operação Condor. Não à toa, foi justamente o Chile, sob os auspícios do governo de Augusto Pinochet, quem assumiu a dianteira da operação.

Além do Chile, fizeram parte da aliança: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Nos anos 1980, o Peru, já sob uma ditadura militar, também juntou-se ao grupo. Pode-se dizer que a operação teve três fases. A primeira consistiu na troca de informações entre os países-membros. A segunda caracterizou-se pelas trocas e execuções de opositores nos territórios dos países que formavam a aliança. A terceira fase ficou marcada pela perseguição e assassinato de inimigos políticos no exterior - muitas vezes no próprio exílio.

Calcula-se que, apenas nos anos 1970, o número de mortos e "desaparecidos" políticos tenha chegado a aproximadamente 290 no Uruguai, 360 no Brasil, 2 mil no Paraguai, 3.100 no Chile e impressionantes 30 mil na Argentina - a ditadura latino-americana que mais vítimas deixou em seu caminho. Estimativas menos conservadoras dão conta de que a Operação Condor teria chegado ao saldo total de 50 mil mortos, 30 mil desaparecidos e 400 mil presos.

O Brasil participou ativamente das duas primeiras fases da Operação Condor. Não há, contudo, evidências que comprovem seu envolvimento com o extermínio de adversários políticos fora da América Latina. O Brasil apoiou os golpes militares em pelo menos três países da região: Bolívia, em 1971; Uruguai, em 1973; e Chile, no mesmo ano. Já existiam, portanto, estreitas ligações entre as ditaduras latino-americanas.

A Operação Condor veio apenas reforçar os laços políticos e militares, reorientando a aliança entre os governos da região para a perseguição a seus opositores. Nesse sentido, um caso emblemático foi o episódio envolvendo o seqüestro de uruguaios em Porto Alegre, em 1978. Militares daquele país atravessaram a fronteira com o Brasil, com a anuência do governo brasileiro, para seqüestrar um casal de militantes de oposição ao governo uruguaio que estavam na capital gaúcha.

A operação teria sido um sucesso - como tantas outras - não fosse o fato de dois jornalistas brasileiros, após serem alertados por um telefonema anônimo, terem ido até o apartamento onde o casal morava. O envolvimento dos jornalistas acabou revelando a ação conjunta do Uruguai e do Brasil - e repercutindo internacionalmente o episódio. Em 1991, o governo gaúcho indenizou as vítimas daquela ação militar. No ano seguinte, o Uruguai também tomou a decisão de reparar os seqüestrados.


Até hoje, uma das maiores controvérsias da Operação Condor em relação ao Brasil é a morte dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, e do ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Embora não existam provas que atestem o envolvimento do governo brasileiro na morte dos três políticos, os familiares de JK e Jango freqüentemente acusaram a participação da ditadura na morte dos ex-presidentes.

De tempos em tempos, parentes de Jango voltam aos jornais para acusar o governo militar de ter planejado e executado seu assassinato. Em 2008, o ex-agente do serviço de inteligência do governo uruguaio, Mario Neira Barreiro, disse em entrevista exclusiva à Folha de S.Paulo que espionou durante quatro anos João Goulart, e que ele foi morto por envenenamento a pedido do governo brasileiro.

Para investigar a morte dos dois ex-presidentes, o Legislativo chegou, inclusive, a instalar comissões especiais, que nunca conseguiram comprovar as teorias conspiratórias. Muito pelo contrário, os indícios, até agora, vão no sentido de comprovar que o Brasil não teve qualquer envolvimento com a morte de seus ex-presidentes, embora os dois episódios tenham ocorrido em circunstâncias estranhas na opinião de alguns observadores.

JK, Jango e Lacerda faleceram no espaço de menos de um ano. Em 1966, eles integraram a chamada "Frente Ampla", movimento de resistência à ditadura militar. Também por sua ativa participação no movimento oposicionista contra a ditadura, a morte dos três até hoje gera discussões quanto ao fato de terem ocorrido, ou não, sob as asas da Operação Condor.

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Vitor Amorim de Angelo
historiador, mestre e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos.

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segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

OS VÔOS DA MORTE



Floreal Avellaneda achava que não suportaria mais tanta dor.

Desde que fora preso na cidade de Vicente López e depois de trazido arrastado para a ESMA (Escola de Mecânica da Armada argentina) já passara por verdadeiro suplício.

Pancadas foram tantas que já se tornara dormente e nem mais ligava para elas.

O que doía mesmo eram os choques elétricos, principalmente nos testículos, ou na língua, que lhe faziam saltar além de sua vontade, como se toda a musculatura de seu corpo tivesse vontade própria.

Incomodava também, o hábito dos torturadores de apagar os cigarros em sua pele. Queimaduras de cigarro ardem muito especialmente quando vários cigarros são apagados no mesmo lugar.

Caíra em abril de 1976, mas não sabia mais em que mês estava pois sua cabeça não conseguia organizar os pensamentos, embora o esforço para não perder a lucidez. Percebera a transferência para o Campo de Mayo, mas isso, não alterou em nada sua agonia.

Na última sessão de tortura, dois dias atrás, eles, os seus carrascos, exageraram. Um choque fora tão forte que lhe cortara um pedaço enorme da língua. Sentiu vontade vomitar mas as pancadas em sua cabeça foram tão repetidas que ele sufocara com o próprio vômito, não morrendo por um detalhe.

Agora, encolhido no canto da cela permanecia com os olhos fechados não só pela dor e pelo cansaço de dias sem dormir, mas porque, se abrisse os olhos veria Maria Rosa Mora, companheira de militância, presa junto com ele, estirada na cela ao lado. Ele fora obrigado a assistir as torturas em Maria Rosa, os estupros seguidos e seus gritos que foram diminuindo de intensidade até tornarem-se apenas sussurros.

Quando ouviu os passos que se aproximam da cela ele imaginou que iria para a última sessão. Dificilmente sobreviveria mais uma vez.

Floreal Avellaneda tinha apenas 17 anos, mais o sofrimento o envelhecera rapidamente, e, como um veterano da dor, respirou fundo, esperando o suplício final. Havia decidido morrer sem dizer nada, sem entregar nenhum companheiro à mesma sanha assassina e dessa decisão não se afastaria.

Para a sua surpresa, a primeira figura que reconheceu na frente de sua cela, foi um padre. Por segundos se sentiu aliviado. Padres representam Deus e certamente são contra as torturas. Com um padre por perto talvez sobrevivesse.

O torturador-mor entrou em seguida.

Maria Rosa Mora abrira também os olhos, embora não fizesse o menor ruído.

Sem rodeios o “general”, como gostava de ser chamado, disse com sua voz aguda que os dois, Floreal e Maria Rosa, eram pessoas de muita sorte. Recebera ordens para solta-los, com a condição de que abandonassem o país imediatamente e para sempre. Por mim, dizia o General, eu matava os dois, mas ordens são ordens.

Enquanto dois homens se aproximavam dos prisioneiros e aplicavam uma injeção em cada um, o padre dizia que estava ali para garantir suas seguranças, que as injeções eram para aliviar as dores e que os acompanhariam até o outro lado da fronteira, no Chile, de onde poderiam ir para onde quisessem.

Floreal percebeu que chorava quando não mais enxergava o padre próximo falando. Sua lágrima de felicidade turvava a visão. Mas, a injeção, maravilhosa, lhe tirava bastante as dores, deixando uma sensação agradável e alguma tontura.

Com algum esforço ergueu os braços alcançando as mãos do padre e beijo-as com enorme alívio.

A partir daí sua rota foi entremeada de vigília com sono, como se estivesse sonhando um sonho prolongado e vagaroso.

Viu-se numa maca sendo colocado num avião, ao lado de Maria Rosa. Depois, despertou com a voz do padre que rezava uma daquelas preces conhecidas que sua mãe ensinara. Depois viu que alguns homens tentavam erguê-lo. Viu o mar, estranhamente belo e infinitamente azul, que como um manto celeste lhe prometia abrigo. Sorriu, compreendendo estar próximo da liberdade...

Em meados de Maio de 1976, os corpos de Floreal Avellaneda e de Maria Rosa Mora foram encontrados, com as mãos amarradas, no Balneário de Rochas, no Uruguai.

O método de arremessar pessoas a partir de aviões e helicópteros, conhecidos como Vôos da Morte, foi aplicado pelos três ramos das forças armadas argentinas e por várias forças de segurança, durante a ditadura militar daquele país.

Sabe-se que os prisioneiros políticos condenados eram enganados com a promessa de que teriam a liberdade. Eram dopados antes do embarque para evitar qualquer tipo de reação e levados para alto mar.

O coronel Albino Zimmermann, chefe de polícia de Antonio Bussi, chegou a gabar-se em reuniões familiares de ter atirado vários guerrilheiros para a morte e fazia piada imaginando a surpresa dos infelizes.

Calcula-se em mais de 5 mil vítimas nos vôos da morte, alguns com a anuência e colaboração de padres que chegavam a dar a extrema-unção dentro das aeronaves.

A principal pista sobre os executores diretos foi dada em 1995 pelo ex gendarme Federico Talavera, que admitiu que a cada vinte dias transportava seqüestrados adormecidos num caminhão Mercedes-Benz rumo à base de El Palomar, onde eram carregados num Hércules da Força Aérea.

Em dezembro iniciou-se na Argentina, o julgamento de pilotos dos “vôos da morte”, que promete envolver lágrimas, revolta e muita emoção em todo o país.

Ao contrário do Brasil, a Argentina busca cicatrizar suas feridas punindo os culpados desse passado tenebroso para que fatos assim não voltem a ocorrer no país.

A todos que entendem o respeito aos direitos humanos como pressuposto da democracia, cabe acompanhar esse caso por mais doloroso que seja.

É o mínimo que se pode fazer em memória de suas vítimas.


Prof. Péricles

domingo, 6 de janeiro de 2013

A VEJA E O ESCARAVELHO


Com a morte de Oscar Niemeyer aos 104 anos de idade ouviram-se vozes do mundo inteiro cheias de admiração, respeito e reverência face a sua obra genial, absolutamente inovadora e inspiradora de novas formas de leveza, simplicidade e elegância na arquitetura. Oscar Niemeyer foi e é uma pessoa que o Brasil e a humanidade podem se orgulhar.

E o fazemos por duas razões principais: a primeira, porque Oscar humildemente nunca considerou a arquitetura a coisa principal da vida; ela pertence ao campo da fantasia, da invenção e do lúdico. Para ele era um jogo das formas, jogado com a seriedade com que as crianças jogam.

A segunda, para Oscar, o principal era a vida. Ela é apenas um sopro, passageira e contraditória. Feliz para alguns mas para as grandes maiorias cruel e sem piedade. Por isso, a vida impõe uma tarefa que ele assumiu com coragem e com sérios riscos pessoais: a da transformação. E para transformar a vida e torná-la menos perversa, dizia, devemos nos dar as mãos, sermos solidários uns para com os outros, criarmos laços de afeto e de amorosidade entre todos. Numa palavra, nós humanos devemos aprender a nos tratar humanamente, sem considerar as classes, a cor da pele e o nível de sua instrução.

Isso foi que alimentou de sentido e de esperança a vida desse gênio brasileiro. Por aí se entende que escolheu o comunismo como a forma e o caminho para dar corpo a este sonho, pois, o comunismo, em seu ideário generoso, sempre se propôs a transformação social a partir das vítimas e dos mais invisíveis. Oscar Niemeyer foi um fiel militante comunista.

Mas seu comunismo era singular: no meu modo de ver, próximo dos cristãos originários, pois era um comunismo ético, humanitário, solidário, doce, jocoso, alegre e leve. Foi fiel a esse sonho a vida inteira, para além de todos os avatares passados pelas várias formas de socialismo e de marxismo.

Na medida em que pudemos observar, a grande maioria da opinião pública mundial, foi unânime na celebração de sua arte e do significado humanista de sua vida. Curiosamente a revista VEJA de domingo, dedica-lhe 10 belas páginas. Outra coisa, porém, é a revista VEJA online de 7 de dezembro com um artigo do blog do jornalista Reinado Azevedo que a revista abriga.

Ele foi a voz destoante e de reles mau gosto. Até agora a VEJA não se distanciou daquele conteúdo, totalmente, contraditório àquele da edição impressa de domingo. Entende-se porque a ideologia de um é a ideologia do outro. Pouco importa que o jornalista Azevedo, de forma confusa, face às críticas vindas de todos os lados, procure se explicar. Ora se identifica com a revista, ora se distancia, mas finalmente seu blog é por ela publicado.

Notoriamente, VEJA se compraz em desfazer as figuras que melhor mostram nossa cultura e que mais penetraram na alma do povo brasileiro. Essa revista parece se envergonhar do Brasil, porque gostaria que ele fosse aquilo que não é e não quer ser: um xerox distorcido da cultura norte-americana. Ela dá a impressão de não amar os brasileiros, ao contrário expõe ao ridículo o que eles são e o que criam. Já o titulo da matéria referente a Oscar Niemeyer da autoria de Azevedo, revela seu caráter viciado e malevolente: "Para instruir a canalha ignorante. O gênio e o idiota em imagens".

Seu texto piora mais ainda quando, se esforça, titubeante, em responder às críticas em seu blog do dia 8/12 também na VEJA online com um título que revela seu caráter despectivo e anti-democrático: "Metade gênio e metade idiota- Niemeyer na capa da VEJA com todas as honras! O que o bloco dos Sujos diz agora?" Sujo é ele que quer contaminar os outros com a própria sujeira de uma matéria tendenciosa e injusta.

O que se quer insinuar com os tipos de formulação usados? Que brasileiro não pode ser gênio; os gênios estão lá fora; se for gênio, porque lá fora assim o reconhecem, é apenas em sua terceira parte e, se melhor analisarmos, apenas numa quarta parte. Vamos e venhamos: Quem diz ser Oscar Niemeyer um idiota apenas revela que ele mesmo é um idiota consumado. Seguramente Azevedo está inscrito no número bem definido por Albert Einstein: "conheço dois infinitos: o infinito do universo e o infinito dos idiotas; do primeiro tenho dúvidas, do segundo certeza". O articulista nos deu a certeza que ele e a revista que o abriga possuem um lugar de honra no altar da idiotice.

O que não tolera em Oscar Niemeyer que, sendo comunista, se mostra solidário, compassivo com os que sofrem, que celebra a vida, exalta a amizade e glorifica o amor. Tais valores não cabem na ideologia capitalista de mercado, defendida por VEJA e seu albergado, que só sabe de concorrência, de "greed is good" (cobiça é coisa boa), de acumulação à custa da exploração ou da especulação, da falta de solidariedade e de justiça em nível internacional.

Mas não nos causa surpresa; a revista assim fez com Paulo Freire, Cândido Portinari, Lula, Dom Helder Câmara, Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto, frei Betto, João Pedro Stédile, comigo mesmo e com tantos outros. Ela é um monumento à razão cínica. Segue desavergonhadamente a lógica hegeliana do senhor e do servo; internalizou o senhor que está lá no Norte opulento e o serve como servo submisso, condenado a viver na periferia. Por isso tanto a revista quanto o articulista revelam um completo descompromisso com a verdade daqui, da cultura brasileira.

A figura que me ocorre deste articulista e da revista semanal, em versão online, é a do escaravelho, popularmente chamado de rola-bosta. O escaravelho é um besouro que vive dos excrementos de animais herbívoros, fazendo rolinhos deles com os quais, em sua toca, se alimenta. Pois algo semelhante fez o blog de Azevedo na VEJA online: foi buscar excrementos de 60 e 70 anos atrás, deslocou-os de seu contexto (ela é hábil neste método) e lançou-os contra Oscar Niemeyer. Ela o faz com naturalidade e prazer, pois, é o meio no qual vive e se realimenta continuamente. Nada de surpreendente, portanto.

Paro por aqui. Mas quero apenas registrar minha indignação contra esta revista, em versão online, travestida de escaravelho por ter cometido um crime lesa-fama. Reproduzo igualmente dois testemunhos indignados de duas pessoas respeitáveis: Antonio Veronese, artista plástico vivendo em Paris e João Cândido Portinari, filho do genial pintor Cândido Portinari, cujas telas grandiosas estão na entrada do edifício da ONU em Nova York e cuja imagem foi desfigurada e deturpada, repetidas vezes, pela revista-escaravelho.

De Leonardo Boff

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

MENINA DA ÍNDIA


Eu choro por ti, menina sem nome,

Menina que jamais vi embora te conheça por outras.

Eu choro pela violência da qual fosse vítima.

Pela dor impiedosa que te fizeram passar.

Eu choro por ti, filha da Índia, terra de Gandhi, que tanto lutou contra a violência.

Eu choro por ti, garota bonita, estudante de 23 anos, morta pela estupidez primitiva dos homens.

As aulas que assistias de medicina estarão mais vazias, sem ti.

O ônibus eternamente mais vazio e vagaroso.

Que direito tinham teus carrascos de tocarem teu corpo para apagarem teu sorriso e teus sonhos?

Eu choro por tantas outras meninas sem nome vítimas da mesma abominação, na Índia, na África, nos vários Brasis, e em todo o planeta.

Somos todos culpados, embora por ti, sejamos também as vítimas.

Consequências de uma sociedade subumana, subnutrida, sub-informada, sub-sensível.

Uma sociedade que permite que a mulher seja violada todos os dias de todas as formas.

Eu choro por ti menina da Índia e por nós todos filhos desse mundo de distância tão curta entre a razão e a bestialidade.

Chore por nós, menina da Índia, que morremos um pouco mais com tua morte.




Morreu dia 29 em um hospital de Cingapura, onde tinha sido levada para tratamento especializado, a jovem de 23 anos de idade, vítima de violência sexual na Índia.

Ela já havia passado por três cirurgias em Nova Déli antes de ser transferida para Cingapura. De acordo com os médicos, a causa da morte foi dada como falência múltipla dos órgãos causada por severos ferimentos ao corpo e ao cérebro além de hemorragia interna por introdução de uma barra de ferro.

Seu corpo deverá ser levado de volta para a Índia.

O ataque realizado no dia 16 de Dezembro desencadeou violentos protestos de rua na Índia.

Os líderes dos protestos afirmam que casos assim são comuns na Índia não havendo punição aos agressores.

Seis homens foram presos em conexão com o estupro e dois policiais foram suspensos.
A equipe do Hospital Mount Elizabeth, em Cingapura, onde a jovem estava internada, disse que ela ”faleceu em paz”, neste sábado, tendo sua família a seu lado.

Seu quadro era extremamente delicado, ela sofrera uma parada cardíaca, uma infecção no pulmão e no abdômen, além de dano cerebral.

Ela havia pegado um ônibus com seu amigo na região de Dwarka, no sudoeste de Nova Delhi. Dentro do ônibus ela foi violentada durante uma hora por diversos homens (no mínimo 6, incluindo o motorista). Depois, ela e o amigo foram lançados para fora do ônibus nus e com o veículo em movimento.

Somente neste ano, mais de 630 casos de estupro já foram registrados em Nova Delhi, conhecida no país como “capital do estupro”.


Prof. Péricles

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

ORAÇÕES DO ANO NOVO



Saudamos o ano novo com as orações de Frei Betto:


Pai-nosso que estais no céu,
e sois nossa Mãe na Terra,
amorosa orgia trinitária,
criador da aurora boreal e dos olhos enamorados
que enternecem o coração.
Senhor avesso ao moralismo desvirtuado
e guia da trilha peregrina das formigas do meu jardim,

Santificado seja o vosso nome
gravado nos girassóis de imensos olhos de ouro,
no enlaço do abraço e no sorriso cúmplice,
nas partículas elementares e na candura da avó ao servir sopa.

Venha a nós o vosso Reino
para saciar-nos a fome de beleza
e semear partilha onde há acúmulo,
alegria onde irrompeu a dor,
gosto de festa onde campeia desolação,

Seja feita a vossa vontade
nas sendas desgovernadas de nossos passos,
nos rios profundos de nossas intuições,
no vôo suave das garças e no beijo voraz dos amantes,
na respiração ofegante dos aflitos
e na fúria dos ventos subvertidos em furacões,

Assim na Terra como no céu,
e também no âmago da matéria escura
e na garganta abissal dos buracos negros,
no grito inaudível da mulher aguilhoada
e no próximo encarado como dessemelhante,
nos arsenais da hipocrisia
e nos cárceres que congelam vidas.

O pão nosso de cada dia nos dai hoje,
e também o vinho inebriante da mística alucinada,
a coragem de dizer não ao próprio ego,
o domínio vagabundo do tempo,
o cuidado dos deserdados e o destemor dos profetas,

Perdoai as nossas ofensas e dívidas,
a altivez da razão e a acidez da língua,
a cobiça desmesurada e a máscara a encobrir-nos a identidade,
a indiferença ofensiva e a reverencial bajulação,
a cegueira perante o horizonte despido de futuro
e a inércia que nos impede fazê-lo melhor,

Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido
e aos nossos devedores, aos que nos esgarçam o orgulho
e imprimem inveja em nossa tristeza de não possuir o bem alheio,
e a quem, alheio à nossa suposta importância,
fecha-se à inconveniente intromissão,

E não nos deixeis cair em tentação
frente ao porte suntuoso dos tigres de nossas cavernas interiores,
às serpentes atentas às nossas indecisões,
aos abutres predadores da ética,

Mas livrai-nos do mal,
do desalento, da desesperança, do ego inflado
e da vanglória insensata, da dessolidariedade
e da flacidez do caráter,
da noite desenluada de sonhos
e da obesidade de convicções inconsúteis.


Ave Maria grávida das aspirações de nossos pobres,
o Senhor é convosco,
bendita sois vós entre os oprimidos,
benditos os frutos de libertação do vosso ventre.

Santa Maria, mãe latino-americana
rogai por nós, para que confiemos no Espírito de Deus,
agora que o nosso povo assume a luta por justiça
e na hora de realizá-la em liberdade,
para um tempo de paz.

Amém!