terça-feira, 31 de julho de 2012

A FUGA DO REI


A fuga do Rei

Uma noite de Junho, em 1791, entre onze horas e meia-noite, o rei, a rainha e as suas duas crianças escaparam, disfarçados, das Tulherias, fizeram uma travessia palpitante através de Paris, rodearam a cidade no norte para leste e atingiram, afinal, uma carruagem de viagem, que os estava esperando na estrada de Châlons. Fugiam para o exército do leste.

O exército do leste era “leal”, isto é, os seus generais e oficiais estavam, pelo menos, preparados para trair a França em favor do rei e da corte. Eis afinal um pouco de aventura ao gosto da rainha! Pode-se figurar a deliciosa excitação do pequeno grupo, à medida que os quilômetros passavam e a distância aumentava entre eles e Paris.

Adiante, sobre as colinas, estavam a reverência, as curvaturas profundas e os solenes
beija-mãos.

Depois, a volta para Versalhes. Alguns tiros sobre a turbamulta de Paris – artilharia, se necessário. Algumas execuções – não, porém, da espécie de gente que afinal importa. Um Terror Branco, por alguns meses. Depois, tudo, de novo, estaria bem.

Talvez Calonne pudesse também voltar, com expedientes financeiros novos. Não estava ele, agora mesmo, trabalhando por conseguir o apoio dos príncipes
alemães? Havia uma porção de castelos a reedificar, mas o povo, que os queimara, dificilmente se poderia queixar se a tarefa de sua reconstrução lhe pesasse um pouco mais opressivamente sobre os seus ombros sujos...

Todas estas brilhantes antecipações foram cruelmente destruídas, aquelas. O rei fora reconhecido proprietário da estação em Sainte-Menehould pelo proprietário
da estação de muda e , enquanto descia a noite, as estradas de leste ressoavam sob o galope dos mensageiros que acordavam a população das zonas circunvizinhas
e procuravam interceptar os fugitivos.

Na aldeia de Varennes de Cima haviam sido reservados cavalos novos para o descanso das parelhas – o jovem oficial encarregado havia, porém, desistido de esperar o rei, durante a noite, e tinha ido dormir – e nesse ínterim, por uma meia hora, o pobre rei, disfarçado de criado, discutia em Varennes de Baixo com os seus postilhões, os quais, esperando encontrar as mudas para os cavalos nesta aldeia, recusavam-se a seguir adiante.

Afinal consentiram em partir. Mas era muito tarde. O pequeno grupo encontrou o proprietário da muda de Sainte-Menehould – que havia passado a cavalo, enquanto os postilhões discutiam – acompanhado de certo número de valorosos republicanos de Varennes a esperá-lo na ponte, entre as duas partes da vila. A ponte estava defendida por barricadas. Os mosquetes foram apontados para a carruagem: “Os vossos
passaportes!” O rei rendeu-se sem luta. O pequeno grupo foi levado para a casa de certo funcionário da vila. “Bem”, disse o rei, “aqui me tendes!” Observou também que estava com fome. No jantar, louvou o vinho, “excelente vinho”. O que disse a rainha, não foi registado.

Havia tropas realistas nas proximidades, mas não houve tentativa de libertar o rei. Os sinos começaram a tocar e a vila, para guardar-se contra qualquer surpresa, reacendeu a sua iluminação pública...

Um carro carregado de realeza, mas em profundo desalento, voltou a Paris e foi recebido por imensa multidão – em silêncio. Fizera-se correr entre a multidão
que seria castigado todo aquele que insultasse o rei, e morto qualquer um que o aplaudisse...

Foi somente depois dessa proeza louca que a idéia de república apossou-se do espírito francês.


Wells, H.G In: História Universal, vol7. Cia. Ed. Nacional, São Paulo, 1968.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A BURGUESINHA NUA


Na vida tem certas coisas que parecem que são, você jura ... mas não são.

Quem nunca confundiu abacaxi com ananás?

Quem nunca chamou alguém pelo nome pra verificar, sem graça, que a pessoa era outra?

Quem nunca trocou a data de aniversário das namoradas?

Pois, quem vivia na França na segunda metade do século XVIII, e assistiu os momentos dramáticos da Revolução Francesa, com certeza, poderia jurar que se tratava de um movimento dos pobres, dos oprimidos, em busca de igualdade e da liberdade.

Afinal, quem empunhava aquele porrete não era o moço funcionário do armazém? E aquele senhor lá na frente, exaltado, não era o agricultor humilde da fazendola próxima?

Igualdade, Liberdade, Fraternidade!

A emoção de ver homens e mulheres, jovens e velhos nas ruas, armando barricadas e lutando contra as forças do Rei fizeram circular histórias, como a da misteriosa e linda mulher de seios nus (depois identificada como a Liberdade) lutando lado a lado com o povo.

Centenas juravam tê-la visto.

Quando os habitantes de Marselha chegaram a Paris para se juntar à luta, parecia, poderia jurar que parecia, a união de pobres em busca da sua vez.

Parecia, mas não era.

Na verdade, quem chegava ao poder a partir dessas lutas emocionantes, era a burguesia, que, naquele momento histórico, pertencia a um status menor, um status de terceiro estado, sendo explorada pela nobreza no andar de cima.

Foram 10 loucos anos revolucionários em que, logo após galgar o poder a mais alta burguesia tratou de limitar o espaço dos mais pobres, urbanos ou dos campo.

A Reforma agrária jamais aconteceu de fato. A reforma fiscal beneficiou apenas os que tinham dinheiro e a igualdade deve ter morrido na guilhotina em alguma noite escura, sem testemunhas.

Quando sonhadores como Gracchus Babeuf, lideranças da ralé, perceberam, a cortina já havia se fechado, o show havia terminado e o povo ficado de fora.

Quando os canhões de Napoleão impuseram o fim da revolução, a única mudança social fora a mudança de inquilinos do andar de cima.

A Igualdade e a fraternidade permaneceram belas palavras, sedutoras e ilusórias, e muitos morreram velhinhos sem entender onde elas haviam se perdido.

A moça dos seios nus? Não era a Liberdade coisa nenhuma... era uma burguesinha assanhada, prometendo o que não daria e que só existia na imaginação dos iludidos.

Prof. Péricles

terça-feira, 24 de julho de 2012

SÉCULO XVIII, A VEZ DA BURGUESIA



O século XVIII foi o século da consolidação do capitalismo.

Depois de uma fase pré-capitalista em que a unificação nacional centralizada na figura do Rei deu origem a um Estado Nacional aristocrático, a burguesia assumiria efetivamente o poder político, deixando de ser uma mera coadjuvante para, realmente se tornar o ator principal.

Para isso foi necessário desmantelar a ordem do chamado “Antigo Regime”, destruindo as bases da monarquia absolutista e, em seu lugar, estruturar a democracia burguesa.

Por estarem juntos no andar debaixo, povo trabalhador e burguesia, a queda da aristocracia através de processos revolucionários, trouxe a ilusão do povo no poder, através da ordem democrática. Mas, apenas ilusão, pois na verdade, quem se assentou no andar de cima foi apenas, e tão somente a burguesia.

Na ordem econômica o Mercantilismo, economia clássica do estado absolutista foi substituído pelo liberalismo, onde a livre iniciativa e a busca do lucro através da concorrência de mercado seriam os elementos determinantes.

Dessa forma teremos a consolidação do iluminismo como fonte dos novos valores culturais e sociais.

São fatos históricos intrínsecos a esse contexto: o apogeu das idéias iluministas cujo lema liberdade, igualdade e fraternidade é representativo; a Revolução Francesa e a primeira fase da Revolução Industrial.

Sobre a Revolução Industrial é importante ressaltar que ela ocorreu exclusivamente na Inglaterra devido, principalmente, ao pioneirismo de sua burguesia ao se livrar dos entulhos feudais ainda no século XVII nas chamadas Revoluções Inglesas (Puritana e Gloriosa).

O Brasil, por estar submetido ao colonialismo português que adota o mercantilismo colonial com ortodoxia, explorando suas colônias de forma radical e autoritária, ficou à margem dessas mudanças. Mesmo assim, ocorre durante o ciclo da Mineração uma verdadeira queda de braço com a Metrópole representada pela política fiscal massacrante da metrópole e a sonegação da colônia.

É nesse contexto que teremos a primeira revolta de fundo contra a exploração fiscal (A Revolta de Vila Rica ou de Felipe dos Santos, em 1720) e, principalmente, a primeira inconfidência (Minas Gerais, 1789).

O Rio Grande do Sul, pela primeira vez será reconhecido como território brasileiro, com o Tratado de Madri de 1750. Teremos também, como conseqüência desse Tratado, a primeira resistência indígena pela terra, as Guerras Guaraníticas, de 1750 a 1756.

Prof. Péricles

domingo, 22 de julho de 2012

DONA EUROPA E SUAS FILHAS

Dona Europa livrou-se, há séculos, da tutela do Senhor Feudal, ao qual esteve submetida ao longo de mil anos. Cabeça feita por Copérnico, Galileu e Descartes, casou-se com o Senhor Moderno Liberal e montou casa no bairro da Democracia.

Dona Europa puxou o tapete dos nobres, deu um chega pra lá no papa e elegeu governos constitucionais que trocaram a permuta pela moeda, evitaram fazer uso de mão de obra escrava, transformaram antigos camponeses em operários merecedores de salários.

Dona Europa passou a nutrir ambições desmedidas. Fitou com olho gordo o imenso mapa-múndi que enfeitava a sala de sua casa. Quantas riquezas naquelas terras habitadas por nativos ignorantes! Quantas áreas cultiváveis cobertas pela exuberância paradisíaca da natureza!

Dona Europa lançou ao mar sua frota em busca de ricas prendas situadas em terras alheias. Os navegantes invadiram territórios, saquearam aldeias, disseminaram epidemias, extraíram minerais preciosos, estenderam cercas onde tudo, até então, era de uso comum.

Dona Europa praticou, em outros povos, o que se negava a fazer na própria casa: impôs impérios, reinados e ditadores; inibiu o acesso à cultura letrada; implantou o trabalho escravo; proibiu a industrialização; internacionalizou normas econômicas que lhe eram favoráveis, em detrimento dos povos alhures.

Um dos povos de além-mar dominados por Dona Europa ousou rebelar-se em 1776, emancipou-se da tutela e se tornou mais poderoso do que ela – o Tio Sam.

O professor Maquiavel ensinou à Dona Europa que, quando não se pode vencer o inimigo, é melhor aliar-se a ele. Assim, ela associou-se a Tio Sam para exercer domínio sobre o mundo.

Dona Europa e Tio Sam acumularam tão espantosa riqueza, que cederam à ilusão de que seriam eternos o luxo e a ostentação em que viviam. Tudo em suas casas era maravilhoso. E suas moedas reluziam acima de todas as outras.

Ora, não há casa sem alicerce, árvore sem raiz, riqueza sem lastro. Para manter o estilo de vida a que se acostumaram, Dona Europa e Tio Sam gastavam mais do que podiam. E, de repente, constataram que se encontravam esmagados sob dívidas astronômicas. O que fazer?

A primeira medida foi a adotada em turbulência de viagem de avião: apertar os cintos. Não deles, óbvio. Mas de seus empregados: despediram alguns, reduziram os salários de outros, deixaram de consumir produtos importados. Assim, a crise da dupla se alastrou mundo afora.

Dona Europa e Tio Sam não são burros. Sabem onde mora o dinheiro: nos bancos. Tio Sam, ao ver o rombo em sua economia, tratou de rodar a maquininha da Casa da Moeda e socorreu os bancos com pelo menos US$ 18 trilhões.

Dona Europa tem várias filhas. Segundo ela, algumas não souberam administrar bem suas fortunas. A formosa Grécia parece ter perdido a sabedoria. Gastou muito mais do que podia. Os mesmo aconteceu com a sedutora Itália, a encantadora Espanha e a inibida Irlanda.

Como o cofre da família é de uso comum, Dona Europa se cobriu de aflições. Puniu as filhas gastadoras e apelou à mais rica de todas, a severa Alemanha, para ajudá-la a socorrer as endividadas.

A Alemanha é manhosa. Disse que só socorre as irmãs se puder controlar os gastos delas. O que significa cortar as asinhas das moças – o que em política equivale a anular a soberania.

Soberana hoje, na casa de Dona Europa, só a pudica Alemanha. O resto da família é dependente e está de castigo. A mais cheirosa das filhas, a França, anda rebelde. Após aparecer de mãos dadas com a Alemanha, agora que arrumou namorado novo encara a irmã com desconfiança.

Nós, aqui do sul do mundo, que ainda não cortamos o cordão umbilical com Tio Sam e Dona Europa, corremos o risco de ficar gripados se Dona Europa continuar a espirrar tanto, alérgica ao espectro de um futuro tenebroso: a agonia e morte do deus Mercado, cujos fiéis devotos mergulharam em profunda crise de descrença.

Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais
Adital

quinta-feira, 19 de julho de 2012

HUGO CHAVES



No ocidente, a Venezuela pode parecer um país folclórico com as suas crises e o seu presidente carismático que desafia os Estados Unidos à custa do seu petróleo. Mas para além das imagens fáceis, não devemos ignorar que este país está a viver um profundo processo de transformação social e os resultados positivos estão à vista.

(...)
Desde a sua eleição em 1998, Hugo Chaves levou a cabo uma transformação econômica e social que melhorou em muito o nível de vida de uma população que cultivava o paradoxo de ser um dos países mais ricos do continente americano e de viver na pobreza.

Digam o que disserem, o presidente é apreciado pelo seu povo. Três eleições presidenciais, em 1998, 2000 e 2006 com 60% de votação. Esta popularidade explica-se em parte pelas reformas econômicas e sociais que permitiram melhorar o nível de vida da população. No entanto, nem tudo foi fácil. Foi vítima de um golpe de estado planeado pelos Estados Unidos em abril de 2002. tendo sido "salvo" pela extraordinária mobilização popular.

Em 2003, o governo toma o controlo da empresa de Estado de Petróleos da Venezuela (PDVSA) nacionalizando este setor. Atualmente detém 60% de participações no petróleo venezuelano. Em maio de 2007, nacionaliza a Orenoque, que possui as maiores reservas mundiais de petróleo.

Antes, a multinacionais extraíam o barril de petróleo com um custo de produção de 4 dólares e vendiam-no ao estado da Venezuela ao preço de 25 dólares. Com este novo sistema, o estado poupa 3 mil milhares de dólares. O governo também decidiu aumentar o imposto sobre os lucros de 34% para 50%, após ter constatado que várias empresas fugiam ao fisco.

O governo nacionalizou várias empresas de eletricidade e de telecomunicações que detinham um verdadeiro monopólio. Assim, as empresas Companhia Anônima Nacional Telefones de Venezuela S. A. (CANTV) e Electicidad de Caracas, detidas por capitais americanos passaram para controlo do estado venezuelano.

O governo de Hugo Chavez recuperou cerca de 3 milhões de hectares, ou seja, 28,74% de terras produtivas aos latifundiários. No total, cerca de 6.5 milhões deverão ser nacionalizados. O objetivo é obter a independência agrícola. 49% das terras recuperadas foram redistribuídas aos camponeses com apoio de meios técnicos e financeiros, até então esses camponeses eram escravos dos grandes proprietários. Estas reformas permitiram à Venezuela um crescimento nos últimos dois anos de 11,2%, neste sector.

As nacionalizações de vários sectores da economia trouxeram uma mais-valia que permitiu uma verdadeira revolução social. Senão vejamos: o programa Fonden, criado para financiar os mais necessitados.

O nível de pobreza passou de 20%, em 1998, para 9,5%. O desemprego passou, nesse mesmo período de 16% para 7%. O nível de desigualdade regrediu em 13%. Os beneficiários de pensão de reforma aumentaram em 218%.

O PIB da Venezuela passou de 88 mil milhões de dólares, em 1998, para 257 mil milhões em 2008. 98% da população têm agora água potável.

O novo acesso à educação permitiu que 1,5 milhões de venezuelanos aprendessem a ler, isto à custa de uma grande campanha de alfabetização. A própria UNESCO declarou que o iletrismo estava erradicado na Venezuela. Essa organização declarou também, que a Venezuela era o quinto país do mundo com mais universitários.

Todo o ensino é gratuito, incluindo o acesso ao ensino superior. Praticamente 100% das crianças estão escolarizadas, sendo que na primária os alunos beneficiam de três refeições por dia.

Apesar da Venezuela ser palco de um grande tráfico de droga, em 2010 foram apanhados 64 000 kg de droga, 17 chefes de organizações criminosas presos e 18 laboratórios de droga desmantelados, sendo que a Venezuela foi um dos países do mundo que mais lutou contra a droga.

O sistema nacional de saúde foi criado para permitir o acesso aos cuidados de saúde a todos os venezuelanos de uma forma totalmente gratuita. Este permitiu que a taxa de mortalidade infantil descesse para números inferiores a 10 por mil.

Para eliminar os problemas de mal-nutrição, o governo criou a chamada "Missão Alimentar". São lojas estatais, as "Mercal" cujos artigos são subvencionados pelo estado em 30%. 14 000 pontos de venda e metade da população faz aqui as suas compras. 4 milhões de crianças recebem alimentação gratuita através do programa de alimentação escolar, eram 250 000 em 1998.
(...)

Textos consultados:

http://risal.collectifs.net/spip.php?article2121

http://www.cbparis.net/article-29363856.html

domingo, 15 de julho de 2012

A AVÓ, O TORTURADOR E A JUSTIÇA


Da jornalista Tatiana Merlino (foto), sobrinha de Luiz Eduardo Merlino, um texto sobre a luta de sua família por Justiça e Verdade a pedido do blogueiro Leonardo Sakamoto, Jornalista e doutor em Ciência Política.

19 de julho de 1971- "Foi suicídio”. Essa foi a notícia que chegou para Iracema Merlino, minha avó, quatro dias depois de três homens armados terem levado seu filho, Luiz Eduardo, de sua casa em Santos para o DOI-Codi, centro de tortura da ditadura militar em São Paulo. O corpo, por pouco não pôde enterrar. Estava no IML da cidade, com marcas de tortura, sem identificação. Foi o genro delegado, Adalberto, meu pai, que o encontrou. O caixão veio lacrado. Na missa de sétimo dia, na Catedral da Sé, os mesmos três homens que foram buscar o filho vieram dar-lhe os pêsames.

1988 ou 1989- Aproveito uma saída de minha avó e vou escondido até seu quarto. Mexo numa pasta azul royal com uma etiqueta escrito "Guido Rocha”. Sei que não devo mexer ali. Leio rápido, para não ser vista. Embora saiba que meu tio foi assassinado porque "defendia um Brasil com saúde e educação para todos”, eu não sei em quais condições havia morrido. São três ou quatro páginas datilografadas. É uma entrevista de Guido Rocha, companheiro de cela de Luiz Eduardo no DOI-Codi e um dos últimos a vê-lo com vida. Um calor me sobe o rosto, sinto um aperto no estômago e um nó na garganta. As lágrimas caem. Corro ao banheiro e choro longamente. O horror relatado por Guido marcou meus doze anos. E me acompanhou por muito tempo, em muitas noites mal dormidas.

1991 ou 1992-"Carlos Alberto Brilhante Ustra.” É a primeira vez que ouço esse nome, durante uma reunião na Comissão de Direitos Humanos na Assembléia Legislativa de São Paulo. Ex-presos políticos denunciam torturas sofridas nos aparelhos repressivos. Eleonora Menicucci, companheira de militância de Merlino e hoje ministra da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, pede a palavra e relata a tortura que sofrera, lado a lado de Merlino. Ela, na cadeira do dragão. Ele, no pau de arara. O comandante da casa de torturas era Brilhante Ustra. A denúncia não era nova. Eleonora e ex-presos políticos já a haviam feito muitos anos antes. Anoto o nome, olho para minha avó… ela está muito, muito vermelha, impassível. Só quem a conhecia bem entendia que era um sinal de tristeza e nervosismo.

Iracema era uma mulher muito calma, bonita, delicada. E muito forte. Nunca desistiu de lutar para que o Estado reconhecesse que seu filho fora assassinado. Ainda durante a ditadura, em 79, moveu uma ação contra a União, extinta na Justiça Federal por prescrição. A ação foi motivo de preocupação do regime militar, conforme documento de 31 de julho de 1971 que consta no acervo da Abin (Agência Brasileira de Inteligência Nacional), assinado pelo então comandante do Dops, Romeu Tuma, relatando um ato público em homenagem a Merlino. Quando morreu, em 31 de março de 1995, minha avó não tinha desistido de responsabilizar o Estado pelo assassinato de seu filho.

26 de junho 2012-Como faço todas as manhãs, checo meus e-mails. Um deles diz que Brilhante Ustra foi condenado. A mensagem é de Angela Mendes de Almeida, ex-companheira de Merlino e autora, junto com minha mãe, Regina Merlino, de uma ação por danos morais contra o coronel reformado do Exército. Na ação, a juíza Cláudia Menge, do TJ-SP, o condena a pagar R$ 50 mil a cada uma das autoras do processo.
A primeira coisa que faço é ligar para minha mãe. "Vocês ganharam a ação, mãe! Ganhamos!”. E, claro, logo lembramos e falamos de minha avó. Passei esse e os dias seguintes pensando nela. Fiquei imaginando-a vivendo esse momento. Lendo, 41 anos após o assassinato do filho, a sentença que afirma que são "evidentes os excessos cometidos pelo requerido, diante dos depoimentos no sentido de que, na maior parte das vezes, o requerido participava das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes”. E o trecho em que a juíza reconhece que "as autoras sofreram danos morais como decorrência dos atos de tortura praticados pelo réu e que resultaram na morte daquele que era, respectivamente, companheiro e irmão”.

Até chegar à sentença da ação por danos morais, a família percorreu um longo caminho. Estava impossibilitada de mover processos judiciais criminais, bloqueados pelo atual entendimento do Poder Judiciário sobre a extensão da anistia aos torturadores, e havia visto frustrada uma tentativa de uma "ação declaratória” na área cível.
Talvez nessas horas seja mais difícil para os ateus. Não acho que minha avó esteja vendo essa vitória do céu. Mas converso com ela em pensamentos. Imagino-a sentada num sofá, cabelos loiros arrumados, os óculos escuros grandes que sempre usava, um vestido elegante, colar e brinco de pérolas. E lhe digo: "Ai, vó, ainda falta derrubar a anistia aos torturadores, processá-los na área penal e fazer justiça de verdade. Mas essa é uma vitória nossa”. E ela responde com um sorriso, mordendo uma parte da língua. Só quem a conhecia bem entendia que esse era um sinal de satisfação.

Parabéns, vó

quarta-feira, 11 de julho de 2012

A FORÇA DA INDIGNAÇÃO


Mohandas Karamchand era um recém formado advogado. Contratado por uma empresa britânica não revelou muito talento, sendo inclusive criticado pela extrema timidez para falar em público. Foi, então, enviado para a África do Sul, onde deveria se incorporar ao escritório da tal empresa.

Segundo relato seu, durante a viagem foi abordado pelos funcionários da segurança do trem, pois estava ocupando um acento no vagão dos brancos e ele, apesar de não ser negro, tinha a cor da pela escurecida, típica dos indianos.

Anos depois desse fato, ao rememorá-lo ainda sentia a enorme humilhação que foi ser retirado aos empurrões e jogado no vagão dos negros, mesmo tendo nas mãos o bilhete referente à poltrona do vagão privado.

Sua indignação foi tremenda. Um vulcão em seu peito parecia querer explodir.
Humilhado, indignado, Mohandas, o homem jogado ao chão pelos “gentis” funcionários, morreria ali. E o que se ergueu, sob os cacos da dignidade partida, se tornaria o grande Mahatma Gandi, líder político de milhões de criaturas que conseguiu, de forma impressionante, mover o processo de independência de seu país, a Índia, sem usar a violência.

O advogado frustrado pela dificuldade em falar em público, sob a força da indignação se tornaria o líder de milhões e milhões, ouvido e respeitado por reis e presidentes, e até hoje admirado pelos amantes da paz.

O povo brasileiro, assim como Gandhi, ao longo dos séculos tem sido colocado no vagão dos excluídos. Os vagões luxuosos sempre reservados aos senhores do poder econômico, os senhores de engenho, os barões do café, os senhores do capital.

Acostumou assistir a marcha do trem através das frestas da história, espremido como gado e sem respeito, nem mesmo ao bilhete adquirido.

Talvez, por isso, hoje provoque tanta irritação nos homens do vagão de luxo, o fato dos excluídos da última classe estarem subindo para uma nova classe média cada vez mais politizada.

Na verdade, o medo dos barões, é que, finalmente o povo brasileiro use a força da indignação, não mais para justificar sua alienação, mas para tomar conta, definitivamente, do seu destino, da sua vida e do trem. Como Gandhi.


Prof. Péricles

domingo, 8 de julho de 2012

UM GOLPE DE MUITOS AUTORES

O objeto da Comissão da Verdade deve sim, tratar dos crimes e dos desaparecimentos perpetrados pelos agentes do Estado ditatorial. É sua tarefa precípua e estatutária. Mas não pode se reduzir a estes fatos. Há o risco de os juízos serem pontuais. Precisa-se analisar o contexto maior que permite entender a lógica da violência estatal e que explica a sistemática produção de vítimas. Mais ainda, deixa claro o trauma nacional que significou viver sob suspeitas, denúncias, espionagem e medo paralisador.

Neste sentido, vítimas não foram apenas os que sentiram em seus corpos e nas suas mentes a truculência dos agentes do Estado. Vítimas foram todos os cidadãos. Foi toda a nação brasileira. Para que a missão da Comissão da Verdade seja completa e satisfatória, caberia a ela fazer um juízo ético-político sobre todo o período do regime militar.

Importa assinalar claramente que o assalto ao poder foi um crime contra a constituição. Configurou uma ocupação violenta de todos os aparelhos de Estado para, a partir deles, montar uma ordem regida por atos institucionais, pela repressão e pelo estado de terror.

Bastava a suspeita de alguém ser subversivo para ser tratado como tal. Mesmo detidos e seqüestrados por engano como inocentes camponeses, para logo serem seviciados e torturados. Muitos não resistiram e sua morte equivale a um assassinato. Não devemos deixar passar ao largo, os esquecidos dos esquecidos que foram os 246 camponeses mortos ou desaparecidos entre 1964-1979.

(...) Em nome do combate ao perigo comunista, se assumiu a prática comunista-estalinista da brutalização dos detidos. Em alguns casos se incorporou o método nazista de incinerar cadáveres como admitiu o ex-agente do Dops de São Paulo, Cláudio Guerra.

Os que deram o golpe de Estado devem ser responsabilizados moralmente por esse crime coletivo contra o povo brasileiro.

(...) Os militares já fora do poder garantiram sua impunidade e intangibilidade graças à forjada anistia geral e irrestrita para ambos os lados. Em nome deste status, resistem e fazem ameaças, como se tivessem algum poder de intervenção que, na verdade é inexistente e vazio. A melhor resposta é o silêncio e o desdém nacional para a vergonha internacional deles.

(...) René Armand Dreifuss escreveu em 1980 sua tese de doutorado na Universidade de Glasgow com o título: 1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe (Vozes 1981). Trata-se de um livro com 814 páginas das quais 326 de documentos originais. Por estes documentos fica demonstrado: o que houve no Brasil não foi um golpe militar, mas um golpe de classe com uso da força militar.

A partir dos anos 60 do século passado, se formou o complexo IPES/IBAD/GLC. Explico: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC). Compunham uma rede nacional que disseminava idéias golpistas, composta por grandes empresários multinacionais, nacionais, alguns generais, banqueiros, órgãos de imprensa, jornalistas, intelectuais, a maioria listados no livro de Dreifuss. O que os unificava, diz o autor "eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado” (p.163) para que fosse funcional a seus interesses corporativos. O inspirador deste grupo era o General Golbery de Couto e Silva que já em "em 1962 preparava um trabalho estratégico sobre o assalto ao poder” (p.186).

A conspiração, pois estava em marcha, há bastante tempo. Aproveitando-se da confusão política criada ao redor do Presidente João Goulart, tido como o portador do projeto comunista, este grupo viu a ocasião apropriada para realizar seu projeto. Chamou os militares para darem o golpe e tomarem de assalto o Estado. Foi, portanto, um golpe da classe dominante, nacional e multinacional, usando o poder militar.

Conclui Dreifuss: "O ocorrido em 31 de março de 1964 não foi um mero golpe militar; foi um movimento civil-militar; o complexo IPES/IBAD e oficiais da ESG (Escola Superior de Guerra) organizaram a tomada do poder do aparelho de Estado” (p. 397). Especificamente afirma: "A história do bloco de poder multinacional e associados começou a 1º de abril de 1964, quando os novos interesses realmente tornaram-se Estado, readequando o regime e o sistema político e reformulando a economia a serviço de seus objetivos” (p.489). Todo o aparato de controle e repressão era acionado em nome da Segurança Nacional que, na verdade, significava a Segurança do Capital.

Os militares inteligentes e nacionalistas de hoje deveriam dar-se conta de como foram usados por aquelas elites oligárquicas que não buscavam realizar os interesses gerais do Brasil; mas, sim, alimentar sua voracidade particular de acumulação, sob a proteção do regime autoritário dos militares.

A Comissão da Verdade prestaria esclarecedor serviço ao país se trouxesse à luz esta trama. Ela simplesmente cumpriria sua missão de ser Comissão da Verdade. Não apenas da verdade de fatos individualizados; mas, da verdade do fato maior da dominação de uma classe poderosa, nacional, associada à multinacional, para, sob a égide do poder discricionário dos militares, tranquilamente, realizar seus propósitos corporativos de acumulação. Isso nos custou 21 anos de privação da liberdade, muitos mortos e desaparecidos e de muito padecimento coletivo.

Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor

quarta-feira, 4 de julho de 2012

CONFISSÕES DE ESTELA



Em outubro de 2001, nove anos antes de ser eleita presidente, Dilma Rousseff revelou, em depoimento ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais, detalhes do sofrimento vivido nos porões da ditadura em Juiz de Fora. Até então, nem os companheiros de luta sabiam que Estela, seu codinome na militância, tinha sido torturada na cidade mineira, onde ficou encarcerada por dois meses, em 1972. Só era sabido o tempo de prisão em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os documentos, só agora revelados, mofavam em uma sala do conselho e trazem revelações emocionantes da hoje chefe de Estado: "Eles queriam o concreto. "Você fica aqui pensando. Daqui a pouco, eu volto e vamos começar uma sessão de tortura". A pior coisa é esperar por tortura".


Dilma chorou. Essa é uma das lembranças mais vivas na memória do filósofo Robson Sávio, que, ao lado de uma outra voluntária do Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), foi ao Rio Grande do Sul coletar o testemunho da então secretária de Minas e Energia daquele estado sobre a tortura que sofrera nos anos de chumbo. Com fama de durona, moradora do Bairro da Tristeza, Dilma tirou a máscara e voltou a ter 22 anos de idade. Revelou, em primeira mão, que as torturas físicas em Juiz de Fora foram acrescidas de ameaças de dano físico deformador: "Geralmente me ameaçavam de ferimentos na face".


"Fui interrogada dentro da Oban por policiais mineiros que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber meus contatos com Angelo Pessuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga. Eu não tinha a menor idéia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 1969 e isso era no início de 1970. Desconhecia as tentativas de fuga de Angelo Pessuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira, talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata"



"Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para SP, o Albernaz (capitão Alberto Albernaz) completou o serviço com um soco, arrancando o dente"



"..Algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Começava assim: "em 1968 o que você estava fazendo?" e acabava no Angelo Pessuti e sua fuga, ganhando intensidade, com sessões de pau-de-arara, o que a gente não agüenta muito tempo"


"Um dia, a gente estava nessa cela, sem vidro. Um frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois estavam treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o hospital. Tive o "prazer" de conhecer o Comandante General Sylvio Frota, que posteriormente, me colocará na lista dos infiltrados no poder público, me levando a perder o emprego"



"Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (...) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em MG, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas"



"Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida"


ECONOMIA & POLÍTICA
Enviado por Luis Nassif

segunda-feira, 2 de julho de 2012

MEU QUERIDO VLADO


Na próxima quarta-feira, amigo, você fará 75 anos. Por razões alheias à nossa vontade, não vou poder lhe dar os parabéns pessoalmente e assim, aproveito para fazer isso aqui – e contar algumas coisas que aconteceram desde a última vez que nos vimos, numa sexta-feira, 19 de outubro de 1975 – sim, há 37 anos!

Você certamente não ficou sabendo, mas no sábado seguinte, 25 de outubro, um carcereiro chegou diante da grade e chamou meu nome. Eu estava com pelo menos uma dúzia de presos na última cela de um corredor do Doi-Codi em São Paulo, o centro de tortura do regime militar. Todos vestidos com macacões verdes do exército, sem cinto e no meu caso, sem botões também. O fulano abriu a cela, colocou o capuz preto sobre a minha cabeça e começou a me guiar como um cego. Imaginei que pudesse ser uma acareação com outro preso, mais um interrogatório, nova sessão de tortura, quem sabe uma excursão pelas ruas da cidade em busca de outro companheiro. Já passara por tudo isso e por muito mais – até mesmo a insólita saída para batizar Ana, a minha filha (virou atriz), acompanhado por uma equipe com as armas enfiadas em duas sacolas de lona preta. Mas quando o sujeito tirou meu capuz, havia diante de mim uma carteira de fórmica, dessas de escola, com uma espécie de prancheta do lado direito. Sobre ela, uma pilha de papel almaço e uma caneta. Antes de me deixar ali, recebi uma ordem curta e grossa:

- Escreva tudo o que você sabe sobre Vladimir Herzog.

Embora já ganhasse a vida escrevendo há quatro anos, foi meu texto mais difícil. Quase trinta anos mais tarde, encontrei as folhas amareladas no Arquivo do Estado, quando buscava as informações para contar nossa história.

Lembro que nos conhecemos na redação da Folha de São Paulo, em março de 1975, provavelmente. Você assumira a chefia da sucursal do Opinião e queria que eu fosse um dos colaboradores. O jornalzinho era o sonho de consumo, se é que a metáfora se aplica, para os jornalistas que viam a profissão como uma trincheira de luta pela democracia. Não conseguia noticiar quase nada, barrado pela censura, mas se dispunha a fazer o que muito jornalão evitava.

Escrevi umas matérias – um punhado passou pela censura – e substituí você na direção da sucursal, durante uma viagem aos Estados Unidos. Na volta, emprestei uma casinha de praia pra você escrever o roteiro do Doramundo, aquele filme que você queria fazer e o João Batista de Andrade realizou e ficamos amigos. Mas, caramba, você nunca me contou sua história. Nem deu tempo. Fiquei sabendo em 1985, quando escrevi meu primeiro livro sobre sua história e descobri sua infância como refugiado judeu na Itália, vivendo sob nome falso, seu pai fingindo ser mudo para esconder o sotaque iugoslavo, o resto da família indo parar num campo de concentração. Aos oito anos, quando os Herzog chegaram a São Paulo e foram morar na Mooca, o Brasil vivia a abertura democrática. Eu tinha seis anos quando você se preparava para o vestibular e fez um teste no jornal O Estado de S. Paulo. Começou a estudar filosofia, mas já tinha mergulhado no jornalismo. Integrou a equipe pioneira que implantou a sucursal de Brasília. No final de 1962, conheceu Clarice, com quem se casou pouco antes do golpe de 1964. Em 65, com uma bolsa de estudos, você foi trabalhar na BBC e Clarice o seguiu seis meses depois.

Em setembro de 1975, você se tornou diretor de jornalismo da TV Cultura e teve a coragem de me transformar em chefe de reportagem (eu tinha 23 anos, lembra?). Bom, o resto da história, a gente conhece: fomos alvejados por uma campanha destinada a abater o governador Paulo Egydio Martins e, por tabela, o general Ernesto Geisel, que era presidente. Campanha facilitada pela repressão ao Partido Comunista, onde nós dois militávamos, em posições secundárias e acreditando que era um caminho para reconquistar a democracia e construir um Brasil socialista e livre.

Naquele sábado, 25 de outubro, os militares do Doi-Codi reuniram os jornalistas que estavam presos e nos disseram que você tinha se suicidado e que era agente da KGB! Ninguém aceitou a ideia e para provar que choque não mata ninguém, me fizeram acionar a máquina chamada pimentinha com um torturador segurando os fios. No dia seguinte, fomos soltos temporariamente para ir ao seu enterro. Tinha muita gente, todos chocados.

Voltamos ao Doi-Codi e dali para o DOPS, onde ouvimos os policiais treinando tiro para reprimir o culto ecumênico que aconteceu na catedral da Sé. Primeira grande manifestação contra a tortura, resultado da ação de dom Paulo Arns, do rabino Henry Sobbel e do reverendo James Wright, com respaldo do Sindicato dos Jornalistas, de estudantes e políticos da oposição.

Depois disso, amigo, muita coisa aconteceu. Um inquérito armado pelo governo e manipulado concluiu que você se matara, apesar de todas os depoimentos em contrário. O general Geisel demitiu o comandante do II Exército quando outro comunista desimportante, o operário Manoel Fiel Filho foi “suicidado” no Doi-Codi. O problema do presidente era a desobediência, não a tortura.

Clarice entrou com uma ação na Justiça e provou que o Estado era responsável pela sua morte. Não pediu indenização, só justiça. Houve a anistia, os exilados voltaram e com eles, as eleições diretas para governador – a oposição ganhou em dez estados. A campanha das diretas parou o país e se não acabou com o colégio eleitoral, garantiu a eleição indireta do Tancredo Neves, que morreu antes da posse. José Sarney virou presidente, fez a Constituinte e em 1989, elegemos um certo Fernando Collor, de que você nunca ouviu falar. Acabou saindo pelo impeachment.

Fernando Henrique, que era do conselho editorial do Opinião virou presidente, foi reeleito e passou a faixa para o Lula (lembra?) que também governou oito anos e foi sucedido por uma ex-guerrilheira, Dilma Roussef, que afinal criou a Comissão da Verdade para apurar casos como o seu e tantos outros menos conhecidos.

Seu filho Ivo criou o Instituto Vladimir Herzog, para valorizar a liberdade de imprensa e os direitos humanos. Está fazendo um belo trabalho de resgate da história dos jornais alternativos e uma programação de festa pelos seus 75 anos. Quando lembro dele e do André garotinhos, me sinto meio velho. André trabalha em Washington no Banco Mundial com políticas públicas para Ásia e África. Clarice vai muito bem, obrigado.

O Brasil também vai bem. Não tanto quanto sonhamos, mas muito melhor do que no tempo em que convivemos. A democracia tem seu valor, apesar (ou por causa) das denúncias e das CPIs, que não existiam na ditadura. Ah, vivo parte do tempo em Florianópolis. Escrevi uns livros, fiz uns documentários e fui presidente da TV Cultura. Mas um dia conto como foi essa experiência.
Abraços, saudades e parabéns

Paulo Markun