segunda-feira, 2 de julho de 2012

MEU QUERIDO VLADO


Na próxima quarta-feira, amigo, você fará 75 anos. Por razões alheias à nossa vontade, não vou poder lhe dar os parabéns pessoalmente e assim, aproveito para fazer isso aqui – e contar algumas coisas que aconteceram desde a última vez que nos vimos, numa sexta-feira, 19 de outubro de 1975 – sim, há 37 anos!

Você certamente não ficou sabendo, mas no sábado seguinte, 25 de outubro, um carcereiro chegou diante da grade e chamou meu nome. Eu estava com pelo menos uma dúzia de presos na última cela de um corredor do Doi-Codi em São Paulo, o centro de tortura do regime militar. Todos vestidos com macacões verdes do exército, sem cinto e no meu caso, sem botões também. O fulano abriu a cela, colocou o capuz preto sobre a minha cabeça e começou a me guiar como um cego. Imaginei que pudesse ser uma acareação com outro preso, mais um interrogatório, nova sessão de tortura, quem sabe uma excursão pelas ruas da cidade em busca de outro companheiro. Já passara por tudo isso e por muito mais – até mesmo a insólita saída para batizar Ana, a minha filha (virou atriz), acompanhado por uma equipe com as armas enfiadas em duas sacolas de lona preta. Mas quando o sujeito tirou meu capuz, havia diante de mim uma carteira de fórmica, dessas de escola, com uma espécie de prancheta do lado direito. Sobre ela, uma pilha de papel almaço e uma caneta. Antes de me deixar ali, recebi uma ordem curta e grossa:

- Escreva tudo o que você sabe sobre Vladimir Herzog.

Embora já ganhasse a vida escrevendo há quatro anos, foi meu texto mais difícil. Quase trinta anos mais tarde, encontrei as folhas amareladas no Arquivo do Estado, quando buscava as informações para contar nossa história.

Lembro que nos conhecemos na redação da Folha de São Paulo, em março de 1975, provavelmente. Você assumira a chefia da sucursal do Opinião e queria que eu fosse um dos colaboradores. O jornalzinho era o sonho de consumo, se é que a metáfora se aplica, para os jornalistas que viam a profissão como uma trincheira de luta pela democracia. Não conseguia noticiar quase nada, barrado pela censura, mas se dispunha a fazer o que muito jornalão evitava.

Escrevi umas matérias – um punhado passou pela censura – e substituí você na direção da sucursal, durante uma viagem aos Estados Unidos. Na volta, emprestei uma casinha de praia pra você escrever o roteiro do Doramundo, aquele filme que você queria fazer e o João Batista de Andrade realizou e ficamos amigos. Mas, caramba, você nunca me contou sua história. Nem deu tempo. Fiquei sabendo em 1985, quando escrevi meu primeiro livro sobre sua história e descobri sua infância como refugiado judeu na Itália, vivendo sob nome falso, seu pai fingindo ser mudo para esconder o sotaque iugoslavo, o resto da família indo parar num campo de concentração. Aos oito anos, quando os Herzog chegaram a São Paulo e foram morar na Mooca, o Brasil vivia a abertura democrática. Eu tinha seis anos quando você se preparava para o vestibular e fez um teste no jornal O Estado de S. Paulo. Começou a estudar filosofia, mas já tinha mergulhado no jornalismo. Integrou a equipe pioneira que implantou a sucursal de Brasília. No final de 1962, conheceu Clarice, com quem se casou pouco antes do golpe de 1964. Em 65, com uma bolsa de estudos, você foi trabalhar na BBC e Clarice o seguiu seis meses depois.

Em setembro de 1975, você se tornou diretor de jornalismo da TV Cultura e teve a coragem de me transformar em chefe de reportagem (eu tinha 23 anos, lembra?). Bom, o resto da história, a gente conhece: fomos alvejados por uma campanha destinada a abater o governador Paulo Egydio Martins e, por tabela, o general Ernesto Geisel, que era presidente. Campanha facilitada pela repressão ao Partido Comunista, onde nós dois militávamos, em posições secundárias e acreditando que era um caminho para reconquistar a democracia e construir um Brasil socialista e livre.

Naquele sábado, 25 de outubro, os militares do Doi-Codi reuniram os jornalistas que estavam presos e nos disseram que você tinha se suicidado e que era agente da KGB! Ninguém aceitou a ideia e para provar que choque não mata ninguém, me fizeram acionar a máquina chamada pimentinha com um torturador segurando os fios. No dia seguinte, fomos soltos temporariamente para ir ao seu enterro. Tinha muita gente, todos chocados.

Voltamos ao Doi-Codi e dali para o DOPS, onde ouvimos os policiais treinando tiro para reprimir o culto ecumênico que aconteceu na catedral da Sé. Primeira grande manifestação contra a tortura, resultado da ação de dom Paulo Arns, do rabino Henry Sobbel e do reverendo James Wright, com respaldo do Sindicato dos Jornalistas, de estudantes e políticos da oposição.

Depois disso, amigo, muita coisa aconteceu. Um inquérito armado pelo governo e manipulado concluiu que você se matara, apesar de todas os depoimentos em contrário. O general Geisel demitiu o comandante do II Exército quando outro comunista desimportante, o operário Manoel Fiel Filho foi “suicidado” no Doi-Codi. O problema do presidente era a desobediência, não a tortura.

Clarice entrou com uma ação na Justiça e provou que o Estado era responsável pela sua morte. Não pediu indenização, só justiça. Houve a anistia, os exilados voltaram e com eles, as eleições diretas para governador – a oposição ganhou em dez estados. A campanha das diretas parou o país e se não acabou com o colégio eleitoral, garantiu a eleição indireta do Tancredo Neves, que morreu antes da posse. José Sarney virou presidente, fez a Constituinte e em 1989, elegemos um certo Fernando Collor, de que você nunca ouviu falar. Acabou saindo pelo impeachment.

Fernando Henrique, que era do conselho editorial do Opinião virou presidente, foi reeleito e passou a faixa para o Lula (lembra?) que também governou oito anos e foi sucedido por uma ex-guerrilheira, Dilma Roussef, que afinal criou a Comissão da Verdade para apurar casos como o seu e tantos outros menos conhecidos.

Seu filho Ivo criou o Instituto Vladimir Herzog, para valorizar a liberdade de imprensa e os direitos humanos. Está fazendo um belo trabalho de resgate da história dos jornais alternativos e uma programação de festa pelos seus 75 anos. Quando lembro dele e do André garotinhos, me sinto meio velho. André trabalha em Washington no Banco Mundial com políticas públicas para Ásia e África. Clarice vai muito bem, obrigado.

O Brasil também vai bem. Não tanto quanto sonhamos, mas muito melhor do que no tempo em que convivemos. A democracia tem seu valor, apesar (ou por causa) das denúncias e das CPIs, que não existiam na ditadura. Ah, vivo parte do tempo em Florianópolis. Escrevi uns livros, fiz uns documentários e fui presidente da TV Cultura. Mas um dia conto como foi essa experiência.
Abraços, saudades e parabéns

Paulo Markun


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