domingo, 9 de junho de 2013

TEMPO BOM EM HIROSHIMA




O tempo está nublado. Tudo em volta parece escuro. Nuvens pesadas balançam no ar, carrancudas e mal humoradas.

A gente, aqui embaixo, esfrega os braços e reclama. Maldito frio em pleno fim de semana. Como que para combinar com o tempo ficamos carrancudos e azedos.

E o pior de tudo, sentir que a chuva inevitável deixará tudo pior.

Mas, buscando ajuda na história se vê que nem sempre as coisas são como parecem. O que agora parece tristonho e agourento pode, ser na verdade a melhor moldura para um belo quadro sendo que o contrário pode ser real, ou seja, um belo dia de sol e calor pode ser o princípio de um dia terrível e trágico.

Mire-se no exemplo de Hiroshima.

Nos últimos meses da Segunda guerra mundial, a derrota das potências do eixo (Itália, Alemanha e Japão) eram favas contadas. Em 30 de abril Hitler se suicida. Em 2 de maio as tropas soviéticas tomam Berlim, e logo em seguida a Alemanha se rende incondicionalmente.

Faltava o Japão e sua ancestral teimosia, mas sozinho os nipônicos estavam condenados. Mais cedo ou mais tarde sua derrota seria sacramentada.

Em algum momento os norte-americanos resolveram que seria importante aproveitar o momento para mandar deixar um recado ameaçador à URSS. Agora aliados, em breve, naturais inimigos, raciocinou Tio Sam, já que suas diferenças, mais do que políticas eram ideologias. Então, foi decidido assustar os soviéticos com uma ameaça real, a bomba atômica.

Seria importante para os Estado Unidos, deixar claro a Stalin que já dominavam a tecnologia bélica nuclear e para isso, o Japão seria muito útil.

Era necessário bombardear o Japão e mostrar ao mundo, e aos soviéticos, todo seu poder destrutivo.

O presidente Trumam autoriza a missão, deixando ao alto comando militar a escolha do alvo.

Quatro cidades japonesas eram “candidatas” ao holocausto: Kyoto, Hiroshima, Yokohama e Kokura.

Todas eram cidades não-militarizadas. Julgavam em Washington que matando apenas civis ficaria claro ao governo japonês que não haveria limites até sua rendição.

Mas, das quatro, não conseguiam os chefões decidir pelo alvo final.

Na véspera da carnificina, no dia 5 de agosto, o alto comando decidiu que a cidade atacada seria aquela que apresentasse o melhor tempo, o dia mais claro e sem nuvens.

No discurso previamente escrito para que Trumam anunciasse o primeiro ataque nuclear a alvos humanos, a cidade atingida não era citada e em seu lugar havia uma lacuna que deveria ser preenchida na hora do discurso.

No dia 6 de agosto de 1945 o dia amanheceu chuvoso em Kokura e nublado com nuvens em Kyoto e Yokohama. Em Hiroshima, porém, o tempo estava lindo, sem nuvens, com um céu límpido de um azul cheio de vida, povoado de pássaros.

Às 8 horas da manhã nessa cidade de 175 mil habitantes, a 7ª maior cidade japonesa, muitos devem ter saído para o trabalho radiantes pelo belo dia. Com certeza, crianças rumando ao colégio brincavam com a espontaneidade que trás o bom tempo
.
Muitos devem ter ouvido o barulho do avião e visto a sua forma chegando ao centro da cidade.

Às 8 horas e 8 minutos a primeira bomba atômica detonada em área habitada, apelidada pelos algozes de “Litlle Boy” destruía completamente Hiroshima matando cerca de 150 mil pessoas, de todas as idades.

O crime de Hiroshima? Seu céu azul e sem nuvens.

Recordando essa grande tragédia humana, talvez fosse interessante alterar nossos conceitos de bom tempo e considerar que, quando as coisas não parecerem boas e a cara feia do tempo incentivar o mau humor, melhor seria agradecer pela chuva que a terra alimenta e que, nem tudo que parece bom seja realmente bom, como naquele dia de céu azul, em Hiroshima.

Prof. Péricles

quinta-feira, 6 de junho de 2013

QUEM É DE DIREITA E DE ESQUERDA HOJE?



Por Frei Betto


Quem é direita e esquerda hoje no Brasil? Eis um dilema shakespeariano. A direita, representada pelo DEM, se acerca do PMDB e, na palavra do senador Agripino Maia, propõe “oposição branda” ao governo Dilma Rousseff, que se considera de esquerda.

O PPS do deputado Roberto Freire, versão ao avesso do Partido Comunista, apoia as forças mais retrógradas da República.

O PDS de Kassab e o PMDB de Sarney ficam em cima do muro, atentos para o lado em que sopram os ventos do poder.

Como considerar de esquerda quem elege Renan Calheiros presidente do Senado, e Henrique Alves, da Câmara dos Deputados. Você, qualifica como de esquerda quem se apoia em Paulo Maluf, Fernando Collor de Melo e Sarney?

Desde muito jovem aprendi que a esquerda se rege por princípios e, a direita, por interesses. E hoje, quem coloca os princípios acima dos interesses? Como você, que é de esquerda, se sente quando se depara com comunistas apoiando o texto do Código Florestal que tanto agrada a senadora Kátia Abreu?

A esquerda entrou em crise desde que Kruschov, líder supremo da União Soviética, denunciou os crimes de Stalin, em 1956. Naquela noite de fevereiro, vários dirigentes comunistas, profundamente decepcionados, puseram fim à própria vida.

Depois que Gorbachev entregou o socialismo na bandeja à Casa Branca, e a China adotou o capitalismo de Estado, a confusão só piorou.

Muitos ex-esquerdistas proclamam que superaram o maniqueísmo esquerda x direita, inadequado a esse mundo globalizado. Mera retórica para justificar o aburguesamentos de quem, em nome da esquerda, alcançou um estilo de vida à imagem e semelhança dos poderosos da direita: muita mordomia e horror, como confessou o general Figueiredo, ao “cheiro de povo” (exceto na hora de angariar votos).

Ser de esquerda, hoje, é defender os direitos dos mais pobres, condenar a prevalência do capital sobre os direitos humanos, advogar uma sociedade onde haja, estruturalmente, partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano.

O fato de alguém se dizer marxista não faz dele uma pessoa de esquerda, assim como o fato de ter fé e frequentar a igreja não faz de nenhum fiel um discípulo de Jesus. A teoria se conhece pela práxis, diz o marxismo. A árvore, pelos frutos, diz o Evangelho.

Se a prática é o critério da verdade, é muito fácil não confundir um militante de esquerda com um oportunista demagogo: basta conferir como se dá a relação dele com os movimentos populares, o apoio ao MST, a solidariedade à Revolução Cubana e à Revolução Bolivariana, a defesa de bandeiras progressistas, como a preservação ambiental, a união civil de homossexuais, o combate ao sionismo e a toda forma de discriminação.

Quem é de esquerda não vende a alma ao mercado.



Frei Betto, autor do texto, é escritor, autor do romance histórico “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros.

sábado, 1 de junho de 2013

MEDUSA



Em janeiro de 2011 diversos casos de abuso sexual em mulheres, na Universidade de Toronto, no Canadá, deixaram a cidade universitária em pânico.

Irritado por não obter qualquer indício que levasse aos responsáveis, o policial Michael Sanguinetti fez uma observação que, as mulheres deveriam evitar vestirem-se como vadias (sluts, no inglês) para não serem vítimas dos ataques".

Isso provocou a indignação das mulheres que, criaram a primeira “Marcha das Vadias” em 03 de abril de 2011, naquela cidade, e que depois adquiriu ares de movimento mundial contra a crença de que, são as mulheres, pelas roupas de “vadias” que usam as verdadeiras culpadas dos estupros que sofrem.

Essa visão deturpada sobre mulheres culpadas pelos estupros que sofrem é bem antiga e talvez represente o medo do homem diante de sua própria fraqueza, ou o seu medo de impotência diante de uma mulher que mexe com ele e suas paixões descontroladas.

Os gregos, muitos séculos atrás observaram esse comportamento e o associaram a tragédia. A desgraça da beleza diante da covardia, da inveja e da força do destino.

Vejamos, por exemplo, o mito da Medusa:

Eram três irmãs, Euríale, Esteno e Medusa, filhas de Fórcis e Ceto, criaturas mitológicas marinhas.

Eram mulheres extraordinariamente belas, estonteantemente lindas. Capazes de provocar paixões até nos deuses.

Isso, como era comum, irritava as deusas.

A versão mais comum (existem várias) do mito da medusa, diz que ela escolheu ser sacerdotisa da deusa Atena e, dessa forma, fez voto de castidade eterno. Nem por isso a beleza da medusa diminuiu. Um dos deuses, em especial, era fascinado por ela, Poseidon, o deus dos oceanos e... comprometido com Atena. Cego de paixão o garanhão dos sete mares não resistiu e tomado de desejo a estuprou Medusa no próprio templo de Atena.

A fúria da deusa foi imensa. Contra Poseidon, certo? Não, contra Medusa. Pois, foi ela que provocou o estupro sendo tão linda e dessa forma agrediu Atena duas vezes: ao transar no próprio templo sagrado e ao enlouquecer de desejo o noivinho celestial.

A vingança da deusa, como costumavam ser a vingança das deusas, foi extremamente cruel.

Primeiro roubou a beleza e a juventude de sua ex-sacerdotisa. A Medusa não só deixou de ser bela como se tornou um ser repulsivo. Pele ressecada, olhos esbugalhados, rosto murcho e seco como os campos nas estiagens. Transformou seus belos dentes em presas de javalis, e fez com que seus pés e mãos macias se tornassem em bronze frio e sinistro.

Depois seus cabelos lisos, loiros e macios se transformaram em cobras vivas e venenosas.

Finalmente, Medusa foi isolada numa terra distante, completamente afastada de qualquer ser vivo, pois todo aquele que olhasse em seus olhos tinha morte instantânea, pois virava pedra. Além de privada da beleza, a Medusa tornava-se o ser mais solitário e maldito de toda a Hélade.

Atena ainda amaldiçoou as demais irmãs, e as três a partir de então passaram a ser chamadas de górgonas.

A Medusa aparece em inúmeros contos mitológicos da Grécia antiga, até ser morta pelo herói Perseu, que utilizou o reflexo inofensivo em seu escudo para poder matar Medusa e dar fim ao mito e ao seu sofrimento.

Há relatos de que todos na Grécia antiga, contavam seus contos e morriam de medo de encontrar a medusa em suas caminhadas. Era o bicho papão das crianças dos séculos VIII a IV a.C.

Um dos mais fascinantes contos mitológicos, a história de Medusa nos fala sobre a beleza como origem de tragédias, inveja sem questionamentos quando vinda dos poderosos, deuses machistas e violadores, pesadelos, solidão, e, para a fúria das meninas canadenses, de “vadias” que provocam a agressão. Extraordinariamente atual como costumam ser os mitos desse povo único.

Numa inversão perversa, Medusa de vítima torna-se criminosa, sendo que, na verdade, seu único crime era ser mulher.

A “Marcha das Vadias” poderia ser a “Marcha da Medusa”. A Marcha de toda as mulheres pois todas são lindas e se você discorda é porque está olhando errado. Que as lágrimas e a coragem de todas as vadias, filhas de Medusa, sirvam para amolecer a pedra da qual corações empedernidos, como esse do policial Michael Sanguinetti é feito, matéria-prima de todos os preconceitos.

Prof. Péricles

quinta-feira, 30 de maio de 2013

DEPOIMENTO DE BETE MENDES



BETE MENDES
Depoimento a ELEONORA DE LUCENA

Presa e torturada em 1970, a atriz Bete Mendes encontrou o coronel Brilhante Ustra numa viagem ao Uruguai em 1985. Ela era deputada federal, e ele atuava na embaixada em Montevidéu. Na volta, ela denunciou Ustra ao presidente Sarney. Aos 64, a atriz diz não temer retrocessos, mas pede atenção aos movimentos contra a democracia.

Fui presa duas vezes. Na primeira, não fui torturada fisicamente. Na segunda, foi total. Fui torturada [em 1970] e denunciei [o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra]. Isso me marcou profundamente. Não desejo isso para ninguém --nem para meus inimigos. A tortura física é a pior perversidade da raça humana; a psicológica, idem.

Não dá para ter raiva [de quem me torturou]. A gente é tão humilhado, seviciado, vilipendiado que o que se quer é sobreviver e bem. Estou muito feliz, sobrevivi e bem.

E não quero mais falar desse assunto.

Superei isso com tratamento psicológico e com trabalho. Agradeço à família, à classe artística, aos amigos que foram meu alicerce.

Carlos Zara me convidou para fazer a novela "O Meu Pé de Laranja Lima", e isso me salvou. Continuei o trabalho artístico, fui fundadora do PT, fui deputada federal duas vezes e secretária da Cultura de São Paulo.

Comecei a fazer teatro e cantar com seis anos de idade. Com oito já participava de manifestações de alunos. Era do grêmio do colégio, depois fui para o diretório da faculdade. Em bibliotecas públicas ou pegando livros emprestados lia tudo: Rousseau, Marx, Mao, Lênin, Gorki, Aristóteles. Depois, adotei o codinome de Rosa em homenagem a Rosa Luxemburgo.

Na adolescência escrevi textos de peças de teatro. Quando fui presa, eles levaram esses textos. Achavam que eles eram prova de crime, que depunham contra mim. Nunca mais os recuperei. Era coisa tão pouca, boba, pessoal.

Quando fecharam as portas à democracia, me senti usurpada, revoltada, aprisionada. Achei que a única saída era entrar numa organização revolucionária contra a ditadura militar. Entrei na VAR-Palmares. Fizemos aquela opção. Foi certa, errada? É difícil julgar hoje.

A minha visão era a revolução socialista: tirar poder dos militares, dos opressores, do capitalismo selvagem. Deixar a gente governar para o bem de todos, com todos participando.

Eu tinha 18, 19 anos, e achava que podia fazer tudo. Não tinha consciência do risco imenso que estava correndo. Era atriz de uma novela que explodia no Brasil, "Beto Rockfeller", estudava ciências sociais na Universidade de São Paulo e participava de uma organização clandestina revolucionária. Aí deu zebra.

O medo era a pior coisa que a gente sentia na época. Historicamente tem que se reconhecer que nós entramos numa ditadura muito mais pesada do que foi dito no passado. Isso vai sendo desdito atualmente pela Comissão da Verdade.

Hoje não tenho medo de retrocesso, mas é preciso prestar atenção em manifestações como de movimentos nazistas em vários países e no Brasil. Por exemplo? O coronel Brilhante Ustra faz parte desse movimento. Ele tem um site. Há jovens fazendo movimento nazista.
É um receio. É preciso ser cauteloso em relação a movimentos que podem ser prejudiciais ao avanço democrático. Mas impedir jamais, porque a gente legitima a manifestação de todos, de opiniões diversas. É preciso cuidar da democracia para que esses movimentos não cresçam.

Sou política como qualquer cidadão. Sou cidadã, atriz, socialista. O socialismo se constrói todo dia. Não temos o modelo socialista do passado, mas a gente constrói um novo. Quero continuar trabalhando como atriz e viajar mais. Poder viver essa democracia até morrer. Sonho político? Que o trabalho escravo acabe no Brasil.

Estou aqui viva e feliz. Minha vida é muito efervescente. Emendei três trabalhos na televisão. Faço o que eu gosto: ser atriz. Não vamos ficar presos no passado. O que eu tinha que dizer disse com todas as letras na época. "Revival" não tem sentido. Meu assunto hoje é [a novela] "Flor do Caribe".

Problema de audição? Tenho. É que eu fui tor-tu- rada. [Fica com os olhos marejados].

terça-feira, 28 de maio de 2013

MEDÉIA



Até onde pode chegar o desejo de vingança?
Qual o limite do ódio? Estará ele ligado por uma tênue linha ao amor, como alguns supõem?
Haverá fúria maior do que o de uma mulher traída?
Em tempos de crianças jogadas em esgotos, encontradas em sacolas nas águas de lagoas ou esquecidas em carros superaquecidos, talvez seja interessante buscar o pensamento helênico sobre o assunto..

Descrita na peça “Medea” de Eurípedes, Medéia era uma mulher mortal, filha de rei e neta do deus Hélio, o deus do sol. Alguns mitos afirmam que era ligada, de alguma forma, à deusa Hécade, deusa da bruxaria e das encruzilhadas.

Ela morava num lugar chamado Cólquida, e seu drama inicia quando o herói Jasão chega a sua terra. Medéia apaixona-se profundamente pelo bonitão e para conquista-lo promete auxilia-lo numa enrascada que era obter a lã de ouro do carneiro alado Crisómalo, única maneira dele, Jasão, recuperar o trono que já fora dele de Tessália.

Juntos enfrentaram touros gigantes, dragões e um exército, e Medéia sobressaiu-se na luta com sua astúcia e suas bruxarias, até a vitória de seu amado Jasão.

Jasão se apodera da lã de ouro e vai embora com Medéia, conforme o combinado.

A bordo da nau Argos os dois pombinhos enfrentam inúmeras aventuras, cantadas em verso e prosa pelos gregos, inclusive ressaltando que entre tantas guerras tiveram tempo de ter filhos. Até que, finalmente chegam à pólis de Corinto. Lá a tragédia os esperava.

Jasão se apaixona por Gláucia, a linda e famosa filha do Rei.

Jasão e Medeia discutem a relação, ele com o argumento da paixão sem controle, que pode acontecer a qualquer homem e que não poderia deixar de casar com uma princesa enquanto que ela, Medéia, era apenas uma mulher rude e bárbara. Ela, por sua vez, argumenta que abandonou a sua família por ele, sua ilha, sua casa, tudo o que tinha, para segui-lo e que muitas vezes havia lhe salvado a vida. Ele propõe que ela seja sua amante, uma boa proposta masculina, mas ela rejeita completamente.

Medéia terá que partir. Mas antes disso, resolve se vingar.

Com todo amor e carinho envia para Gláucia um lindo vestido (nenhuma mulher resiste a um lindo vestido) e uma pequena coroa envenenados, o que resulta na morte da princesa e de seu pai, o rei de Corinto que tenta socorrer a filha.

Mas, o pior vem agora. Enlouquecida de dor, humilhada e desprezada, Medéia decide matar seus filhos com Jasão, para fazê-lo sofrer toda a dor que um pai pode sentir ao perder seus rebentos.

Jasão corre para vingar-se, mas vê Medeia à distância, em uma carruagem dourada enviada por seu avô, Hélio, deus do Sol, a dizer, mais ou menos o seguinte:
“nem mesmo os corpos dos nossos filhos eu te deixarei para lembrar de mim. Para vós, que me fizeste sofrer tanto deixo apenas meu desprezo."

Medéia ainda aparecerá em vários mitos gregos posteriores sem que nenhum deles relate qualquer castigo pela morte de seus filhos e morrerá em Cólquida, livre, porém, abandonada.

Na psicologia e em outros ramos, denomina-se “Complexo de Medéia” o assassinato dos próprios filhos com objetivo de causar dor ao companheiro conjugal.

Prof. Péricles

domingo, 26 de maio de 2013

FILHO DESSA RAÇA NÃO DEVE NASCER



Rendo minhas homenagens à memória de meu pai, Paulo Fonteles, advogado de posseiros no Sul do Pará, assassinado pelo latifúndio em 1987 e a minha mãe, Hecilda Veiga, a pessoa mais íntegra que conheço nesta vida e que, com o destemor de ter me feito nascer, em meio ao Pelotão de Investigações Criminais, em fevereiro de 1972, revelou inexorável bravura ao ponto de um agente da repressão política, dentro da Polícia Federal, cunhar a frase: “Filho dessa raça não deve nascer”.

No dia de meu nascimento, em 20 de fevereiro de 1972, minha mãe asseverou:
“(…) levaram-me ao Hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei (…)”.

Minha mãe, Hecilda, afirma ainda que o tal médico disse-lhe que ela não gostava do filho, simplesmente porque não sofria.

Uma das lembranças mais antigas que tenho sobre mim mesmo está no fato de ter nascido na prisão e de ser filho de comunistas. Minha avó, Cordolina Fonteles de Lima, contava que os agentes da repressão atrasaram minha entrega para a família, por horas, porque simplesmente não haviam encontrado algemas que dessem em meus pulsos de recém-nascido, eles deviam me achar bastante perigoso!

Não tenho dúvidas que herdamos de nossos pais, seus destemores e convicções. A canção de Belchior, cantada pela mais bela voz feminina em todos os tempos de civilização brasileira, a de Elis Regina, está prenhe de verdade quando afirma que “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Neste caso, Paulo e Hecilda, por seus valores fraternais devem sempre ser seguidos pelos filhos, o que nos dá a régua e o compasso.

Se este é meu depoimento, vou falar de um tempo em que, menino, testemunhei a retomada de meus pais na luta do povo, meu pai no campo e minha mãe na cidade. Poderiam ter se acomodado, poderiam ter cuidado de suas próprias vidas, o que seria justo diante das memórias do cárcere. Mas não, retomaram às posições de combate!

E ali estávamos nós, crescendo como crescem as árvores. As histórias da carochinha contadas eram sempre de guerrilheiras tartaruguinhas contra um jacaré de fardas que viviam no Araguaia.

Debruçado na defesa dos camponeses pobres e procurando reunir informações sobre a heroica luta rebelde araguaiana, meu pai, Paulo Fonteles, mais uma vez passou a sofrer a carga da reação, de famigerados como o Major Curió, do Centro de Inteligência do Exército (CIE) e do grande latifúndio, aliados incontestes na espoliação da Amazônia, sempre em benefício dos poderosos, sejam eles nacionais ou estrangeiros.

Moramos em Conceição do Araguaia e tínhamos o imenso rio dos karajá em nosso quintal. Por aqueles dias já convivíamos com os lavradores e os filhos destes, como é o caso dos filhos de Amaro Lins e de Neuza, Vladimir, Carlos e Mauricio, além de Helenira, amigos para todo o sempre.

Por conta de uma atuação radicalmente vinculada à luta dos lavradores conheceu, mais uma vez, as ameaças contra sua própria vida e a vileza dos donos do poder de então. Foi eleito deputado estadual em 1982 sob a consigna de “Terra, Trabalho, Liberdade e Independência Nacional”.

Foi assassinado à mando da União Democrática Ruralista (UDR), quando se votava o Capítulo da Terra. O intermediário de tamanha covardia foi James Sylvio de Vita Lopes, da OBAN e do SNI, que, nos auspícios do regime moribundo, foi organizar milícias da grande propriedade rural na Amazônia.

Naqueles dias eu tinha 15 anos e para não enlouquecer decidi ingressar nas fileiras do Partido Comunista do Brasil. Era minha saída e a forma de me organizar para enfrentar o futuro.

É preciso que as Comissões de Verdade façam as ligações na perspectiva de traçar um paralelo comum entre essas vivências de filhos de presos políticos e dos inúmeros centros de detenção de menores, criados durante a ditadura como a FEBEM e que na vida democrática não mudou seus métodos e, como é o caso de São Paulo, onde a tortura se esconde travestida pelo pomposo nome de “Fundação Casa”.

Apenas agora nos debruçamos sobre a infância na ditadura militar e há um caminho extenso a percorrer. Tal caminho seguramente irá nos levar aos filhos de camponeses e crianças indígenas, além dos casos de filhos de militantes políticos, já bastante relatados.

Há dois anos conheci o Sebastião, ex-motorista do Incra durante a Guerrilha do Araguaia, na cidade de Marabá. Tal pessoa relatou-me sua revolta em lembrar, de que na Base da Bacaba, que havia uma ala de tortura apenas para crianças e jovens, filhos dos sertões naquele país profundo e desigual. Naquelas condições é que as filhas de Adalgisa e Alfredo, amigos dos combatentes, de São Domingos do Araguaia, foram seguidamente estupradas quando trabalhavam em regime de escravidão naquela terrível base militar. Isso sem falar na mocidade indígena, aikewara, que apenas agora começa a relatar as barbaridades sofridas. Todos eles têm direito a reparações.

Aqui termino com o registro poético de meu pai que assim relatou meu nascimento em Força e Arte:

“A criança nasceu.
A mãe passa bem.
Apesar de todas as proibições
bebamos vinhos até a embriaguês!
Quem é que pode com povo?”

Paulo Fonteles Filho
Depoimento na Comissão da Verdade