domingo, 26 de maio de 2013

FILHO DESSA RAÇA NÃO DEVE NASCER



Rendo minhas homenagens à memória de meu pai, Paulo Fonteles, advogado de posseiros no Sul do Pará, assassinado pelo latifúndio em 1987 e a minha mãe, Hecilda Veiga, a pessoa mais íntegra que conheço nesta vida e que, com o destemor de ter me feito nascer, em meio ao Pelotão de Investigações Criminais, em fevereiro de 1972, revelou inexorável bravura ao ponto de um agente da repressão política, dentro da Polícia Federal, cunhar a frase: “Filho dessa raça não deve nascer”.

No dia de meu nascimento, em 20 de fevereiro de 1972, minha mãe asseverou:
“(…) levaram-me ao Hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei (…)”.

Minha mãe, Hecilda, afirma ainda que o tal médico disse-lhe que ela não gostava do filho, simplesmente porque não sofria.

Uma das lembranças mais antigas que tenho sobre mim mesmo está no fato de ter nascido na prisão e de ser filho de comunistas. Minha avó, Cordolina Fonteles de Lima, contava que os agentes da repressão atrasaram minha entrega para a família, por horas, porque simplesmente não haviam encontrado algemas que dessem em meus pulsos de recém-nascido, eles deviam me achar bastante perigoso!

Não tenho dúvidas que herdamos de nossos pais, seus destemores e convicções. A canção de Belchior, cantada pela mais bela voz feminina em todos os tempos de civilização brasileira, a de Elis Regina, está prenhe de verdade quando afirma que “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Neste caso, Paulo e Hecilda, por seus valores fraternais devem sempre ser seguidos pelos filhos, o que nos dá a régua e o compasso.

Se este é meu depoimento, vou falar de um tempo em que, menino, testemunhei a retomada de meus pais na luta do povo, meu pai no campo e minha mãe na cidade. Poderiam ter se acomodado, poderiam ter cuidado de suas próprias vidas, o que seria justo diante das memórias do cárcere. Mas não, retomaram às posições de combate!

E ali estávamos nós, crescendo como crescem as árvores. As histórias da carochinha contadas eram sempre de guerrilheiras tartaruguinhas contra um jacaré de fardas que viviam no Araguaia.

Debruçado na defesa dos camponeses pobres e procurando reunir informações sobre a heroica luta rebelde araguaiana, meu pai, Paulo Fonteles, mais uma vez passou a sofrer a carga da reação, de famigerados como o Major Curió, do Centro de Inteligência do Exército (CIE) e do grande latifúndio, aliados incontestes na espoliação da Amazônia, sempre em benefício dos poderosos, sejam eles nacionais ou estrangeiros.

Moramos em Conceição do Araguaia e tínhamos o imenso rio dos karajá em nosso quintal. Por aqueles dias já convivíamos com os lavradores e os filhos destes, como é o caso dos filhos de Amaro Lins e de Neuza, Vladimir, Carlos e Mauricio, além de Helenira, amigos para todo o sempre.

Por conta de uma atuação radicalmente vinculada à luta dos lavradores conheceu, mais uma vez, as ameaças contra sua própria vida e a vileza dos donos do poder de então. Foi eleito deputado estadual em 1982 sob a consigna de “Terra, Trabalho, Liberdade e Independência Nacional”.

Foi assassinado à mando da União Democrática Ruralista (UDR), quando se votava o Capítulo da Terra. O intermediário de tamanha covardia foi James Sylvio de Vita Lopes, da OBAN e do SNI, que, nos auspícios do regime moribundo, foi organizar milícias da grande propriedade rural na Amazônia.

Naqueles dias eu tinha 15 anos e para não enlouquecer decidi ingressar nas fileiras do Partido Comunista do Brasil. Era minha saída e a forma de me organizar para enfrentar o futuro.

É preciso que as Comissões de Verdade façam as ligações na perspectiva de traçar um paralelo comum entre essas vivências de filhos de presos políticos e dos inúmeros centros de detenção de menores, criados durante a ditadura como a FEBEM e que na vida democrática não mudou seus métodos e, como é o caso de São Paulo, onde a tortura se esconde travestida pelo pomposo nome de “Fundação Casa”.

Apenas agora nos debruçamos sobre a infância na ditadura militar e há um caminho extenso a percorrer. Tal caminho seguramente irá nos levar aos filhos de camponeses e crianças indígenas, além dos casos de filhos de militantes políticos, já bastante relatados.

Há dois anos conheci o Sebastião, ex-motorista do Incra durante a Guerrilha do Araguaia, na cidade de Marabá. Tal pessoa relatou-me sua revolta em lembrar, de que na Base da Bacaba, que havia uma ala de tortura apenas para crianças e jovens, filhos dos sertões naquele país profundo e desigual. Naquelas condições é que as filhas de Adalgisa e Alfredo, amigos dos combatentes, de São Domingos do Araguaia, foram seguidamente estupradas quando trabalhavam em regime de escravidão naquela terrível base militar. Isso sem falar na mocidade indígena, aikewara, que apenas agora começa a relatar as barbaridades sofridas. Todos eles têm direito a reparações.

Aqui termino com o registro poético de meu pai que assim relatou meu nascimento em Força e Arte:

“A criança nasceu.
A mãe passa bem.
Apesar de todas as proibições
bebamos vinhos até a embriaguês!
Quem é que pode com povo?”

Paulo Fonteles Filho
Depoimento na Comissão da Verdade

Um comentário:

Jairo disse...

Ainda existe muita coisa a ser descoberta sobre este assunto, espero que esta comissão da verdade seja um órgão sério e passe a limpo toda a ditadura militar.