quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O GALO DESAFINADO



Um amigo, nos tenebrosos anos da ditadura militar, passou por momentos terríveis.

Logo após a decretação do “Pacote de Abril”, em 1977, no governo pendular do General Geisel (pendular porque oscilava entre medidas de abertura política e retrocessos) ele foi, literalmente sequestrado, quando saía do colégio onde fazia o segundo grau e era líder do grêmio estudantil, lá pelas 23 hs de uma quarta-feira.

Jogado ao solo de um carro, foi imobilizado sob a mira de um trezoitão, como se dizia naquela época, sendo levado para algum ponto da periferia de Porto Alegre. Durante o trajeto não pode levantar a cabeça e foi ameaçado de morte o tempo todo.

Quando o carro finalmente parou, foi jogado para dentro de uma pequena casa de material, com telhadinho clássico, onde passou imediatamente a ser brutalmente agredido por três e às vezes quatro agressores simultaneamente, enquanto outros dois apenas assistiam. Quando as agressões paravam, um dos “assistentes” fazia perguntas que ele não sabia e outras que ele não queria responder.

Sofreu uns cem números de socos, tapas e telefones, que eram golpes dados com as mãos espalmadas ao mesmo tempo em ambos os ouvidos que davam uma sensação difícil de definir de tão angustiantes (às vezes com saco na cabeça que não lhe permitia ver nada, nem se “encolher” ante o golpe iminente).

A boca ficou tão inchada que adormeceu de forma que ele achava que estava com todos os dentes quebrados, mas não conseguia verificar se era verdade.

Os rins foram tão atingidos por chutes e pisões com o salto de botas que até hoje carregam sequelas.

Seu padecimento durou dias. As pancadarias eram realizadas a qualquer hora e quando ele não estava apanhando era trancado num cubículo totalmente vazio e sem luz onde ficava por um tempo indefinido, imaginando quando seria a próxima sessão de torturas.

Certa feita, lá pela terceira madrugada, sua atenção foi despertada pelo cantar de um galo. Ele lembrou do galo vermelho cantador de sua vó e riu por entender que esse, cantava algo que desafinado. Ficou pensando quem era ela para ser crítico do canto dos galos.

Estabeleceu-se, então, uma estranha relação entre ele e aquele galo desafinado de quem só ouvia o canto. De certa forma, tornou-se seu amigo invisível, como definem as crianças os seus amigos imaginários.

Aquele cantador da madrugada era o único elo de sua razão que ameaçava abandona-lo com o mundo além daquelas paredes lúgubres que, naquele momento, pareciam ser seu túmulo.

A partir de então, até mesmo quando estava apanhando pensava no “seu amigo” e que, mais tarde, ouviria o seu canto novamente e então poderia julgar se estava afinado ou não.

Foi a forma que encontrou para distrair a mente, manter-se calado e não enlouquecer.

Finalmente, sem aviso, foi carregado, já que não conseguia caminhar, até o mesmo veículo que o trouxera, e novamente circulou sem que soubesse para onde iria. Imaginou que seria fuzilado em algum lugar ermo.

Mas, não foi isso que aconteceu. O carro freou em determinado ponto de uma Porto Alegre adormecida na madrugada, e foi jogado na calçada, onde permaneceu semiconsciente, sonhando embolado com a mãe, com o galo, com a avó, a namorada, o mar e outras coisas confusas, sentindo gosto de sangue na boca, até o sol despontar, quando foi visto por transeuntes e alguma alma piedosa pediu socorro, sendo, então, levado para o hospital.

Hoje ele já esqueceu a cara dos agressores e até mesmo o tom maligno de suas vozes, mas não esqueceu o cantar do galo amigo.

Diz que foi sua âncora que o prendeu a realidade e salvou sua lucidez.

Atualmente, predomina uma ciranda de cretinices espalhadas pelos meios reais e virtuais que transformou-se em uma inédita tortura aos que acreditam na justiça social, na solidariedade e no respeito às dores alheias.

São tantos os cânticos de ódio, os hinos ao preconceito, tão absurdas as agressões aos valores mais fraternos e democráticos que necessita-se, urgentemente, de elos e âncoras que finquem as relações saudáveis ao terreno da lucidez política.

Num mundo em que a morte de alguém é comemorada com escárnio é vital renovar a interação com o que é certo e errado e lembrar que o ódio pode enlouquecer.

A fé de que o homem seja majoritariamente bom e que os imbecis são minoria, deve ser a âncora que assegure a sobrevivência da razão sobre o sentimento de vingança.

Todos, os que acreditam no poder do bem, estão precisando de um galo desafinado, para suportar os golpes da prepotência e da covardia e para não esquecer que os que agridem hoje são, os mesmos que agrediram ontem.

Quanto ao galo desafinado, ainda aparece nos sonhos do meu amigo e seu canto enternece como fonte de coragem e esperança.

Muito obrigado, galo desafinado.





Prof. Péricles

Um comentário:

Anônimo disse...

Que horror... lamentável!