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Eugênio José Guilherme de Aragão O "depoimento" de Emílio Odebrecht é nauseabundo. Merece as aspas, pois mais parece um monólogo em conversa de botequim. A narrativa vem recheada de suposições e visões pessoais, particulares, miúdas. Confirma os estereótipos sobre a política nacional como negócio imundo.
Inevitável é a comparação com a ira ensaiada do discurso de Roberto Jefferson da tribuna da Câmara, que abriu o escândalo do chamado "mensalão". A diferença está no estilo. Enquanto o burguesão Odebrecht se dá ao luxo de olhar com desprezo arrogante para a inhaca em que seu grupo se meteu, o canastrão Roberto Jefferson deblatera com oratória digna advogado de num júri de arrabalde. Já a semelhança está na atitude e no objetivo político. Ambos não estão "arrependidos", de suas confissões. Querem criar uma comoção social para desviar a atenção da gravidade dos seus malfeitos.
É tudo farinha do mesmo saco. Jefferson e Odebrecht são delinquentes que se gabam da sua "coragem". Querem passar de gatunos a heróis, às custas da estabilidade política e econômica do país e com a preciosa ajuda da mídia comercial. Esta perdoa a gatunagem ao gatuno delator do inimigo político. Festeja-o como se mocinho fosse, permitindo-lhe posar e esbanjar deboche e cinismo na cara da platéia idiotizada.
Quando a infração à norma vira regra, é preciso avaliar se não há algo de errado com ela, porque nesse contexto a infração se sobrepõe à norma, ao aparentemente correto, talvez não tão correto assim.
Para começar, seja qual for a atitude do observador político, de dar ou não crédito ao deboche cínico de Odebrecht, tal atitude deverá ser uniforme diante dos malfeitos de gregos e troianos. Não dá para considerar, de antemão, 100% verdadeiras as afirmações sobre uns e 100% erradas as sobre outros, conforme a simpatia política. As circunstâncias e personalidades envolvidas sugerem ser mais fácil achar que a turba em volta de Temer esteja enterrada até o pescoço na lama do que acreditar no locupletamento pessoal de Lula.
Quem conhece a turba, sabe do que seus são capazes.
Quem armou um golpe contra a democracia e dele se beneficiou tem menos credibilidade do que quem honrou a soberania popular, fortaleceu no seu mandato os órgãos da persecução penal, dinamizou a economia brasileira e praticou uma política externa "ativa e altiva" e deu ao Brasil uma visibilidade internacional que ele nunca antes tivera.
Mas isso não faz a delação de Odebrecht parecer mais ou menos crível. Sua mácula está no método da sua extração ou extorsão, já que seu autor não parece minimamente arrependido para fazê-la de livre e espontânea vontade.
Emílio Odebrecht delatou por temer não só a violência processual contra si e seu filho, mas também o desmoronamento do seu império empresarial. Por isso, tomou uma decisão estratégica que implica entrega tática de informações selecionadas e com endereço conhecido. Isso nada tem a ver com a verdade toda que se quer colocada a nu.
Para o Ministério Público, esse defeito – estético apenas, não processual – parece irrelevante. Tornou pública a delação, assumindo dolosamente o risco da turbulência política que causaria. Mais importante e igualmente dolosa foi a intenção de salvar a própria pele. Tamanha foi a escala de informações, que estas não poderiam ficar em segredo por muito tempo. Pior ainda teria sido o vazamento seletivo, a sepultar de vez a credibilidade da instituição. Importou agora fingir a isenção que o Ministério Público não mostrara antes. Tal atitude revela mais desespero do que um esforço de transparência.
Na operação "Lava Jato", a violência processual e o desrespeito aos direitos fundamentais dos investigados e dos acusados são rotina, a começar pela presunção de inocência, esfolada com a exibição pública de presos e conduzidos.
Escutas e outras provas sensíveis tem sido escancaradas à curiosidade coletiva, para destruir reputações perante a sociedade. Tudo foi feito num timing para causar o máximo de impacto político.
Juiz e procuradores anunciaram sem qualquer pejo que o apoio da opinião pública era fundamental para o sucesso de sua missão, como se estivessem à cata de uma legitimidade que só o voto pode dar. Paralelamente lançaram anteprojeto corporativo de lei, disfarçado de iniciativa popular, para alavancar seus poderes.
Questionados sobre os abusos cometidos, reagiram e reagem sempre com histeria e histrionismo, acusando os críticos de querer inviabilizar seu "combate à corrupção".
Nesse clima de conflagração, a delação, menos do que um prêmio, é uma proteção mínima contra a continuidade do linchamento público. Quem a faz não tem convicção de nada, a não ser da necessidade de se preservar.
É importante que a sociedade tenha clareza sobre o que está acontecendo no Brasil, para não se deixar enganar pela balbúrdia decorrente do trato midiático de indícios processuais de pouco valor. Sempre é bom lembrar que no Estado de Direito é melhor absolver um culpado pela imprestabilidade da prova do que condenar um inocente: In dubio pro reo.
O verdadeiro desafio para a democracia brasileira, neste momento, não está no noticiário da delação de Emilio Odebrecht, mas na forma como lidaremos com a própria delação. Os inimigos da democracia são os que, tendo se omitido diante do golpe, destroem de forma irresponsável o país, vendendo moralismo barato em troca de reconhecimento público.
Diante de corruptos não cabe ser tolerante, mas depois de produzida a prova prestável e rejeitada a prova imprestável, sem qualquer parti pris e sem qualquer esforço de fortalecimento corporativo.
É fundamental, também, distinguir entre o que é genuíno desvio de recursos públicos e locupletamento ilícito do que é admitido e tolerado na prática dos embates eleitorais. A criminalização da política não revigora o regime democrático, antes o debilita. Se tais práticas são agora percebidas como inaceitáveis, deverão ser mudadas daqui para frente, por meio de ampla reforma política, que conte com a participação da sociedade e seja feita por quem tenha condições políticas de fazê-la.
Não esqueçamos, porém, que essa reforma é tão importante como a reforma do Estado, que restitua os poderes em seu leito normal, impeça o uso de atribuições funcionais para o reforço de pretensões corporativas e devolva a credibilidade e autoridade às instituições.
Só assim sairemos da crise em que nos encontramos, limpando a mancha do golpe e – para citar o famoso lema de Willy Brandt na campanha eleitoral de 1969, da qual ele saiu como chefe de governo da República Federal da Alemanha – “ousando mais democracia”.
Eugênio José Guilherme de Aragão
jurista, membro do Ministério Público Federal desde 1987, foi último Ministro da Justiça de Dilma Rousseff em 2016