domingo, 22 de dezembro de 2013

BÍBLIA E AS SANTAS FOGUEIRAS


Com todo o respeito às diversas crenças e religiões, e sem a menor intenção de ferir suscetibilidades, não podemos de achar incrivelmente ingênuo o fato das pessoas aceitarem os relatos bíblicos como verdades insuspeitas. Pior ainda, alguns a interpretam “ao pé da letra” como se o seu texto tivesse conotação histórica e relatasse fatos irrefutáveis.

Causa ainda verdadeira angústia perceber que muitas e muitas pessoas pautam suas vidas, seus valores e suas relações pessoais e familiares a partir da leitura “fria” do texto bíblico.

Embora a fé seja um direito de cada um, não é compreensível que, os mesmos que exigem o respeito às suas crenças não tenham a menor consideração pelas verdades históricas.

Importante entender que “A Bíblia” não é um livro e sim a união de 66 livros. Seus 1.189 capítulos foram escritos por, no mínimo, 40 autores em contextos históricos, motivações políticas, regiões, línguas e nações diferentes, ao longo de quase 1600 anos.

A melhor idéia que se pode ter da Bíblia não seria a de um livro, mas de uma biblioteca em que, ao longo do tempo, vários autores acrescentaram suas próprias visões de religião (relação com Deus) e de mundo.

Esses autores, claro, possuíam seus próprios estilos e intenções.

Por exemplo: nos cinco primeiros principais livros que formam o que os cristãos chamam de “Pentateuco” (os judeus chamam de Torá), Deus é chamado de Javé ou Iavé e o autor o descreve de forma leve e informal, como se Deus fosse pessoa próxima e simples de compreender. Em outros, Deus é denominado de Elohim e o autor o trata de forma temerosa, distante e formal, numa clara diversidade de composição. Embora os religiosos afirmem que Moisés foi o único autor e usou os dois nomes porque quis é evidente o estilo diferente da narrativa, isso sem contar que, ao final é narrada a própria morte de Moisés.

É o “livro” sagrado do judaísmo, do catolicismo e de várias tradições islâmicas. Maior Best seller de todos os tempos e também, a literatura mais manipulada da história, tendo sido por séculos, propriedade exclusiva da Igreja Católica, que suprimiu textos, ampliou outros, alterou várias passagens gerando incontáveis distorções, sempre de acordo com seus interesses políticos e ideológicos. (em recente tradução de conhecida Editora, as palavras bruxos e feiticeiros foram traduzidas como “médius”, vocábulo criado pelo francês Allan Kardec apenas no século XIX).

Alguns textos estão em evidente contradição com os conhecimentos científicos mínimos, como da própria criação do mundo, que, na Bíblia refere o criacionismo divino da espécie humana que ignora completamente a já exaustivamente comprovada, evolução das espécies, incluindo, claro, a do homem.

A participação de outros povos evidencia-se, por exemplo, no relato do fim do mundo pelas chuvas e a sobrevivência da espécie graças à construção da Arca de Noé. Texto mais antigo que esse é encontrado na cultura dos sumérios, um dos mais antigos povos, que narra a Epopéia de Gilgamesh, um semideus que constrói um barco e salva muitas pessoas vítimas de uma calamitosa enchente que arrasou a região da Mesopotâmia e o próprio Oriente Médio.

Com o Cisma dos hebreus (divisão em dois diferentes Reinos, Judá e Israel, entre 878 e 924 AC) fica evidente a conotação de nacionalismo do autor descrevendo as crenças do “outro grupo” como desvios religiosos e defendendo a santidade de Judá e seu povo, num uso explícito da literatura religiosa para justificar diferenças políticas.

Evidentemente o respeito à fé de cada um, faz parte das relações mais saudáveis da convivência democrática. Mas é inconcebível que essa fé seja cega, surda e muda diante dos conhecimentos históricos e científicos que se acumulam com o passar do tempo.

Fatos de fé não são fatos históricos.

Dimensionar a Bíblia em seu verdadeiro contexto não é reduzir Deus, que, sendo espírito criador de tudo, e todo-poderoso, certamente está acima das concepções bizarras que se façam sobre ele. Raciocinar é por luz nas questões da fé e não apagá-la como apregoa o fanatismo.

Deus e Bíblia não são sinônimos até porque, enquanto Deus é um conceito universal, criador de todos os povos, a Bíblia é um livro nacionalista, de autoria e para o povo judeu. De seus incontáveis personagens, apenas um não judeu, Ciro, Imperador Persa, é citado como filho de Deus.

Tal como antiga propaganda do Bom-Bril que apregoava 1001 utilidades ao produto, a Bíblia já foi utilizada pelos poderes constituídos de 1001 maneiras para calar, queimar em santas fogueiras, prender e torturar, inimigos políticos ao longo do tempo.

A Bíblia é um livro, ou melhor, uma extraordinária coleção de livros, de alto valor cultural e antropológico. Deixar-se levar por suas diferentes interpretações não é viver pelo que na Bíblia está escrito, mas moldar-se aos valores defendidos por quem formulou suas interpretações.

Prof. Péricles

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