sábado, 4 de outubro de 2014

ESSA TERRA TEM DONO


(Continuação de “Terra de Ninguém”)

Na metade do século XVIII a bagunça sobre a posse das terras era tamanha, que um novo Tratado devia ser, urgentemente, negociado.
Entre 1580 e 1640 a Coroa portuguesa estivera sobre a cabeça de reis espanhóis (Filipe II, Filipe III e Filipe IV) e a linha demarcatória de Tordesilhas perdera seu sentido. Em busca do ouro e de sua exploração, cidades surgiram em quantidade, fundada e povoada por luso-brasileiros onde hoje é a região sudeste e centro-oeste.

Portugueses eram expulsos, mas sempre retornavam a Colônia de Sacramento (Uruguai) enquanto jesuítas de fala espanhola habitavam o noroeste do então chamado “Continente do Rio Grande”. Guerras e escaramuças eram constantes assim como a perda de dinheiro.
Era preciso criar alguma ordem no caos.

Então, foi assinado entre portugueses e espanhóis, o Tratado de Madri, em 13 de janeiro de 1750.

Com a Espanha convalescendo de duas derrotas militares seguidas na Europa, o Tratado de Madri foi muito generoso aos portugueses.
As terras da mineração, Minas Gerais e Mato Grosso, e mesmo as do extremo norte como o Amazonas, foram reconhecidas como terras da colônia brasileira e, acabariam dando praticamente, a configuração que o Brasil tem hoje.

O maior foco de discussão residia no extremo sul, onde a bacia do Prata onde a Espanha não abria mão de seu domínio.

Dessa forma, a Colônia de Sacramento foi reconhecida como território espanhol e intimada a retirada imediata de todos os portugueses da região.

Por outro lado, os Sete Povos das Missões e áreas adjacentes, eram reconhecidos como de Portugal.

O Marques do Pombal, ministro e a cabeça pensante do rei português, esfregou as mãos. Há muito tempo destilava rancor em relação aos jesuítas e suas misteriosas missões. Para Pombal, era certo que os padres queriam fundar uma república independente no sul da América e seu maior desejo era anular essa pretensão. Sendo agora, a região reconhecida como lusitana, ele imediatamente determinou a expulsão dos jesuítas.

Para os índios Guaranis isso era algo parecido com o Armageddon. Haviam aprendido muito com os jesuítas, sentiam-se protegidos e a expulsão deles lhes deixavam expostos diante dos seus maiores temores.

O próprio Pombal havia assinado Lei que proibia definitivamente a escravidão indígena, mas, leis eram coisas que os índios não compreendiam e por isso temiam serem caçados como escravos.

Assim que chegaram as ordens de translado, os indígenas tentaram negociar, mas claro que não foram ouvidos.

Em fevereiro de 1753 foram enviadas, pelos ibéricos, comissões demarcadoras para o território missioneiro, para delimitar as novas fronteiras. Para enorme surpresa de seus membros foram recebidos por um grupo de indígenas em São Miguel, liderados por um homem alto e forte, de expressão determinada, que entenderam se chamar Sepé Tiaraju.

Embora os índios não compreendessem a posse da terra, achando que ninguém podia ser proprietário de algo que Tupã dera para todos, haviam aprendido com os jesuítas o quanto isso era significativo para os europeus.

Diante desse novo conhecimento, Sepé Tiarajú teria proferido a frase que até hoje faz parte da mitologia gaúcha – “Essa Terra Tem Dono”.

Pela primeira vez, índios se declaravam proprietários de terras que habitavam.

Estava começando um dos acontecimentos históricos mais dramáticos do sul da América, “As Guerras Guaraníticas”.

(Continua)
Prof. Péricles

domingo, 28 de setembro de 2014

REI MIDAS E A AMBIÇÃO


Quando bebê, aquele que viria ser o rei da Frigia, Midas, deu um grande susto em sua ama. Ao recolher o menino que tinha sido deixado ao sol, tomando sol, a pobre ama percebeu que havia um formigueiro subindo pelas pernas do bebê, carregando, cada formiga, um dourado grão de trigo. Uma a uma, cada formiga metia um grão dourado na boca do bebê, e depois voltava a descer pelo corpinho dele abaixo.

O pai de Midas ao saber do fato disse trata-se de um bom augúrio e consultar os adivinhos para eles decifrassem o que aquilo significava.

Os videntes, que conseguiam ver o futuro, concordaram com o pai de Midas. Era, de fato, um bom sinal. Trigo dourado queria dizer que vinha aí ouro verdadeiro. Um dia, Midas seria um homem muito rico.

Bem mais tarde, quando Midas já era adulto, encontrou Sileno, grande amigo do deus Dionísio, caído em seu jardim. Dionísio tinha feito daquelas suas festas terríveis, onde rolava muito sexo, droga e rock and roll Sileno bebera tanto que caira no jardim de Midas e não fora encontrado pelos amigos. Midas tratou de encaminhar o bebum, são e salvo, para a terra do Deus do vinho.

Dionísio ficou tão agradecido que se ofereceu para lhe conceder um desejo.

O rei pensou bastante e lembrou do presságio dos grão dourados de trigo.

Tomado pela ambição pediu para que tudo aquilo que ele tocasse se transformasse em ouro.

-Sorrindo francamente, Dionísio com enorme bafo de vinho perguntou se Midas tinha certeza do seu desejo, ao qual o rei respondeu que sim, sem pestanejar.

- Então, esta concedido - disse Dioniso.

Midas abaixou-se e agarrou num pequeno ramo. Mal as pontas dos seus dedos tocaram na madeira, ei-la transformada em ouro maciço. Depois experimentou com uma folha, um torrão de relva... uma maçã. Estava maravilhado.

Ao chegar ao palácio, tocou nas colunas de mármore e também elas se transformaram em ouro.

Maravilhado com a riqueza que seu toque produzia e por não precisar pagar imposto de renda, determinou que se fizesse um grande banquete para comemorar. Entretanto, o banquete se tornou uma crise de fome, pois sempre que tocava em qualquer alimento este se transformava em ouro e não tinha como comer uma peça fria do metal.

Até o vinho ao contato dos lábios se transformava em ouro maciço.
Pressionado pela fome e pelo mau humor, Midas passou a caminhar de um lado a outro pensando na situação. Nesse exato momento sua filha mais nova entrou correndo na sala e jogou-se aos seus braços.

Enorme pavor, a pobre criança imediatamente se tornou uma estátua de ouro!

Midas prostou-se ao solo, em lágrimas, gritou ao deus que o liberta-se da maldição.

- Imploro Dionísio, imploro que perdoe minha ambição desmedida!

O mais debochado dos deuses se materializou a sua frente, com um jeito de quem já estava mais pra lá do que pra cá, soltando uma sonora gargalhada.

-Muito bem – não deveria te ajudar, mas terei piedade de sua ingenuidade.

Seguindo as instruções do deus, Midas foi até a nascente do rio Pactolo - que brota das rochas e lavou as mãos.

E, de imediato, aconteceram duas coisas: libertou-se da maldição do seu toque dourada e as areias do leito do rio Pactolo ficaram de um lindo dourada e é por isso que ainda hoje são dessa cor.

Ao longo da história do Brasil, as classes dominantes acostumaram-se às políticas propícias a seus lucros. Como num toque de Midas todas as riquezas naturais do país sempre se transformaram em lucro, o seu lucro.

Até Getúlio Vargas até mesmo a água era bem a ser explorado pelo capital e não reconhecido como direito natural de todos.

O Petróleo só foi estatizado com a criação da Petrobrás depois de uma luta insana contra os defensores da exploração dessa riqueza pelo capital privado internacional.

Por isso a percepção de que a imensa fortuna que poderia brotar das profundezas do pré-sal lhe estão sendo negadas, provoca nos patrícios tupiniquins e seus sócios de outras fronteiras, dor maior que um formigueiro subindo pelas pernas.

Onde está Dionísio que não emerge do sono embriagado para sustentar os desejos de uma burguesia birrenta que não deseja o bem do país, mas apenas do seu próprio?

De certa forma, a perda da quarta eleição presidencial sucessiva, se configure como as águas do rio Pactolo escorrendo sobre os seus dedos, fazendo escapar por entre eles, o poder antigo, dos tempos em que suas mais infantis ambições eram atendidas.

Seria bom que, assim como o Rei Midas teve que abandonar sua ambição pela paz e sua filha, nossos bem nascidos abandonassem suas desmedidas ambições em nome do Brasil.


Prof. Péricles


sexta-feira, 26 de setembro de 2014

CHOVE SOBRE SANTIAGO


Salvador Allende Gossens era médico.

E também, um visionário.

Aos 62 anos foi o primeiro socialista-marxista eleito democraticamente, presidente de um país, o Chile, pelo partido de que foi um dos fundadores, o Partido Socialista.

O fato de um socialista chegar ao poder de forma democrática, pelas urnas, trouxe esperanças para todos que acreditavam na construção de sociedades mais justas, sem recorrer à violência dos embates revolucionários.

Mas, Allende não se iludia, e mesmo antes da posse alertava seus seguidores “A história, disse ele, já nos mostrou que os grupos ultra-revolucionários não desistem do poder e lutam para conquistá-lo, de todas as formas e, se necessário, sem escrúpulos”.

Tinha razão.

Nos dois anos, 8 meses e 23 dias que governou o Chile, empreendeu medidas que buscaram a inclusão dos mais pobres, acesso a terra e relações de trabalho mais humanas.

As empresas estrangeiras, especialmente norte-americanas e seus aliados não se conformavam com as medidas que dificultavam a remessa dos lucros para o país de origem. A CIA traçou os planos para o golpe militar.

Allende foi traído pelo chefe das Forças Armadas, Augusto Pinochet, em quem confiava como um amigo leal.

Ele que acreditava ser possível transformar o mundo de forma pacífica, sem violência,
foi morto defendendo seu governo sob bombardeio intenso ao Palácio La Moneda no dia 11 de setembro de 1973.

Em 4 de setembro de 1972 denunciou na ONU a ingerência norte-americana que buscava criar um caos político no país, além de fazer de tudo para desestabilizar sua economia. A ONU não o ouviu e a ordem democrática definhou entre o dia 4 e o fatídico 11 de setembro.

A organização de extrema-direita “País e Liberdade” empreendeu uma onda de violência. Isolado pelos americanos, faltava comida. Os caminhoneiros, financiados pela CIA, pararam o país.

Poucos minutos depois das 9 horas da fria manhã de 11 de Setembro de 1973, o presidente anunciou em cadeia de rádio, para todo o país, que não aceitava as pressões para que renunciasse ao cargo.

“(.) Trabalhadores de minha Pátria, tenho fé no Chile e no seu destino. Outros homens hão-de superar este momento cinza e amargo em que a tradição pretende impor-se. Prossigam vocês, sabendo que, bem antes que o previsto, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o Povo! Viva os Trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza que o meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a deslealdade, a covardia e a traição."

Minutos depois as comunicações de rádio dos militares anunciavam que “chove sobre Santiago”. Era a senha para o golpe assassino.

As dramáticas cenas do bombardeio ao Palácio Presidencial podem ser vistas pelo yotube, e ainda hoje, impressionam pela violência desatinada.

Allende e todos os seus colaboradores morreram resistindo ao ataque.

Liderada por Augusto Pinochet iniciava-se a mais sangrenta ditadura militar daqueles anos de chumbo e horror na América Latina.

Trinta mil pessoas foram assassinadas e mais de cem mil pessoas presas e torturadas. Até mesmo o estádio nacional de futebol de Santiago foi usado como imenso presídio e muitos foram vistos ali pela última vez.

As embaixadas de inúmeros países lotaram de gente desesperada buscando escapar da sanha assassina (inclusive refugiados brasileiros da ditadura militar).

Até o prédio da Cruz Vermelha foi usado como amparo para os perseguidos.

Foram 17 longos anos que durou a ditadura de Pinochet. A reforma agrária foi abandonada e o Chile voltou a ser servil aos interesses dos Estados Unidos e seu capital.

Pinochet? Morreu em Dezembro de 2006 sem nunca ter sido julgado pelos seus crimes. Mas dizem que é visto frequentemente, no inferno.


Prof. Péricles

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

TERRA DE NINGUÉM


O início da história do Rio Grande do Sul foi cheia de anomalias, abandonos e guerras. Nada por aqui lembrava nem mesmo a tênue civilidade do nordeste açucareiro. Tudo parecia disperso e mal resolvido.

Aqui nessa terra cortada por ventos personalistas que têm nomes próprios, as habitações eram tão poucas que as distâncias pareciam maiores. Espaços sem fim de gramíneas que gostam do clima frio e do terreno plano, de pequenas ondulações, era a própria materialização da solidão.

Os portugueses não investiam na região porque estava a oeste da linha imaginária de Tordesilhas o que, oficialmente a tornava espanhola. Os espanhóis não a povoavam porque não tinham gente e dinheiro suficiente pra povoar todas as suas terras da América e por isso concentravam-se apenas onde era mais interessante economicamente, como nas terras cheias de ouro do México e a prata do Peru, ou em áreas estratégicas como a entrada da Bacia do Prata, onde fundaram Buenos Aires e Montevideo.

Definitivamente, o “Continente do Rio Grande” não era uma prioridade.

No início do século XVII um grupo anômalo se interessa em vir pra cá. Os Jesuítas. Não aqueles jesuítas identificados com Anchieta e Manoel da Nóbrega, que falavam português e fundavam colégios. Não, eram jesuítas que falavam espanhol e que vinham do centro da América, da região onde hoje está o Paraguai. Apesar do idioma, não eram subalternos ao rei de Espanha e seus planos tão secretos que se perderam na história.

Aqui, nessa terra abandonada e sem dono iniciaram a construção de reduções, entraram em contato com os índios locais e propuseram a política do “aceite”. “Aceite (índio) a minha religião, minha fé e meu Deus e terá minha proteção.” Introduziram o gado e as pequenas culturas.

Foram atacados e expulsos por seus inimigos mortais, os bandeirantes, em 1637, mas retornaram em 1680 iniciando a construção das Missões, um notável conjunto arquitetônico de morada e defesa. Ao longo de 70 anos construíram 7 povoamentos missioneiros a leste do Rio Uruguai, os “Sete Povos” que se interligavam e se comunicavam entre si e com outras 30 espalhadas pelas terras que atualmente formam o norte da Argentina e o Paraguai.

Outros estranhos esbarravam-se com os jesuítas.

Bandeirantes paulistas, refugiados, aventureiros castelhanos, portugueses e bandidos e salteadores de outras línguas.

A terra era de ninguém, o Minuano soprava trazendo o frio dos Andes e viver aqui era verdadeira loucura. Quase não havia mulheres e quase não havia esperança.
Como nada é tão ruim que não possa ficar pior, em 1680 os portugueses resolvem que a Linha de Tordesilhas não existe mais, ultrapassam os limites e no coração do atual Uruguai fundam a Colônia de Sacramento.

Os espanhóis sentiram a fundação de uma colônia portuguesa no seu lado de Tordesilhas como um espinho encravado na carne e imediatamente deram início a guerras que se estenderiam por mais de 100 anos.
(Continua)


Prof. Péricles

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

MAUS MODOS



Por Luis Fernando Veríssimo


Se fossem os índios que tivessem desembarcado em Portugal e ficado, pode-se imaginar o que estaria acontecendo por lá hoje, 500 anos depois. A irritação dos portugueses com os visitantes teria chegado ao máximo, e ninguém disfarçaria seu descontentamento. “Mas esses gajos não vão embora?” Passados 500 anos, e não havendo mais dúvidas de que os visitantes não eram turistas, só a boa educação explicaria que a visita se prolongasse sem protestos, sem nenhuma indireta.

Foi a boa educação dos nativos daqui que permitiu aos portugueses e outros europeus se estabelecerem no Brasil. Houve revoltas esparsas, é verdade, mas foram exceções. Em geral, os índios foram amáveis com os visitantes. Gostaram dos brancos e até comeram alguns, no que podem ser descritas como provas de afeição extrema. É possível que a tolerância com os “descobridores” se devesse a, mais do que bons modos, um mal-entendido. Haveria a expectativa entre os nativos de que os portugueses cedo ou tarde iriam embora. Quem fica na terra dos outros durante tanto tempo sem ser convidado?

O mal-entendido e os bons modos atravessaram a história da conquista do Novo Mundo, que só era novo para os conquistadores, pois estava aqui, e habitado, há séculos. Roubo, genocídio, catequese forçada, tudo teria sido tolerado com o pressuposto de que era temporário. Afinal, por pior que uma visita se comporte em sua casa, existem os deveres da hospitalidade. Vá que a visita se sinta ofendida por alguma reação impensada e decida ficar ainda mais tempo.

Finalmente, 500 e tantos anos depois, não parece haver mais dúvida de que não era apenas uma visita e os invasores não eram turistas. Acabou o mal-entendido e acabaram os bons modos. A nova insubmissão às mentiras da História oficial é uma insubmissão a todas as versões oficiais de todas as histórias de subjugação e exploração neste lado do mundo e serve como padrão para a revolta contra qualquer tipo de “bullshit”, ou bosta de touro, vigente, como a da nossa velha e conveniente cordialidade e nossa harmonia racial.

Negros brasileiros – para pegar apenas um exemplo de maus modos – se revoltam contra antigos estereótipos, levantam a voz contra uma história decididamente malcontada e pedem justiça mesmo que tardia.

Já os índios, se pudessem, proporiam aos portugueses devolver os espelhinhos e as miçangas e receber de volta o Brasil. Mas isso seria, literalmente, pedir demais.


domingo, 21 de setembro de 2014

VOTO OBRIGATÓRIO



Muitos brasileiros associam democracia com eleições. Cidadania com direito ao voto.

Essa idéia extremamente inibidora do conceito de democracia não sobrevive a um raciocínio rápido sobre o que seja o voto e sua história no Brasil.

O voto obrigatório, por exemplo, é uma das heranças mais arcaicas do autoritarismo ainda em vigor no nosso país.

O voto obrigatório é uma bizarrice, mas não a única.

No período colonial quando o voto se restringia à escolha dos “homens bons” que formavam as câmaras municipais, o analfabeto, imensa maioria nessas terras votava através do “voto cochichado”, isso é, uma pessoa, geralmente funcionário do rei, ouvia em quem os que não sabiam escrever desejavam votar.

No período Monárquico, tivemos o voto censitário, definido na Constituição de 1824 e em vigor durante todo o período (1822-1889).
Esse tipo de voto só permitia que fosse eleitor aquele que comprovasse uma renda mínima anual (100 contos de réis).
Por incrível que pareça, o voto censitário era considerado democrático, pois, seus defensores argumentavam que era um estímulo ao trabalho e à riqueza do não eleitor que desejasse votar nas eleições seguintes.

Os analfabetos continuaram votando durante o Império, pois o “voto cochichado” sobreviveu, mas, em 1881 perderam esse direito graças a promulgação da Lei Saraiva (Decreto 3029 de 9 de janeiro de 1881) que instituiu o chamado “voto literário” proposto por Rui Barbosa que exigia que o eleitor soubesse ler e escrever corretamente.

Na primeira república brasileira, o voto foi definido pela Constituição de 1891. Não era mais censitário e sim universal.

Poderiam votar todos os cidadãos brasileiros, menos, e isso é muito importante, menos, mulheres, analfabetos e alguns postos religiosos e militares. Em outras palavras, era universal, mas excluía a maioria.

Além disso, o voto da República Velha, não era secreto, e sim, a descoberto, não havia justiça eleitoral e as eleições eram fiscalizadas pela Comissão Verificadora, um órgão do próprio governo.

Com a criação do Código Eleitoral e da Justiça Eleitoral no país em 1932, começa nova batalha dos analfabetos para reconquistar o exercício do voto. No entanto, sucederam-se governos e regimes, vieram novas Constituições (1937, 1946, 1967) e o voto permaneceu proibido às pessoas analfabetas.

O voto de nossa atualidade está estabelecido no seu artigo 14 “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. Estabelece a obrigatoriedade do voto a partir dos 18 anos no inciso I do parágrafo primeiro, e facultativo para os maiores de 16 e menores de 18, e ainda para os acima de 70 anos no seu inciso II.

A reforma política proposta pela Presidenta Dilma através de uma constituinte específica, deverá, necessariamente discutir a obrigatoriedade do voto.

Afinal, se o voto por si mesmo define a democracia, indubitavelmente que melhor seria que ele fosse totalmente facultativo, visto que preserva o direito de quem não quer votar e ainda, permite que o índice de abstenção, seja reconhecido também, como a expressão do povo em relação à satisfação com os políticos que o representam.

Se temos hoje, muitas conquistas a comemorar, o voto obrigatório ainda é um atraso a ser superado.


Prof. Péricles

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

UM PAÍS DE MENTIRAS - 02





Após o fim da Monarquia nosso país continuou vocacionado às mentiras.

Para valorizar o preço do café, em 1906, o governo passou a comprar o próprio produto para retirá-lo do mercado diminuindo a oferta e forçando a valorização do produto no mercado internacional. Todos os brasileiros pagavam para manter a mentira do café valorizado (Convênio de Taubaté).

Fizemos em 1930, uma revolução que manteve as mesmas bases sociais anteriores, e, em 1932 São Paulo se puxou, produzindo um grande espetáculo mentiroso, a Revolução Constitucionalista Paulista, que não era revolução, bem pelo contrário, de certa forma era reacionária, não era Constitucionalista porque o presidente (Getúlio Vargas) já havia convocado uma constituinte, e não era apenas paulista devido ao dinheiro apoio de grupos do Rio Grande do Sul, inimigos de Vargas.

Foi o único país da América do Sul a enviar jovens pra lutar na Europa durante a segunda guerra mundial, numa guerra que não era sua, após torpedeamento de navios brasileiros por submarinos pretensamente alemães, mas, até hoje não identificados.

Após Getúlio Vargas vem um período em que as mentiras se multiplicam.

Um presidente que jurava desenvolver o país na proporção de cinquenta anos em cinco, Juscelino criou a imagem de um Brasil que se desenvolvia, mas isso era mentira, pois o desenvolvimento era financiado por empresas estrangeiras que encontravam no Brasil um verdadeiro Édem.

Outro Presidente jurou que iria varrer a corrupção do país e leva-lo ao desenvolvimento real. Em apenas oito meses de governo, antes de renunciar estupidamente, Jânio Quadros reatou relações diplomáticas com a Rússia e condecorou o herói revolucionário Ernesto Tche Guevara, enquanto, internamente, fortalecia as forças anticomunistas do país.

E teve ainda um presidente comunista que nunca foi comunista, João Goulart, derrubado por um golpe militar brasileiro, financiado e orquestrado pelos Estados Unidos.

No país que adora mentiras, a Ditadura Militar durou 20 anos, sendo que em metade desse período jurou não ser uma ditadura, manteve a Constituição embora governasse por Atos Institucionais e Decretos e permitia a existência de um Partido de Oposição, o MDB, desde que esse não fizesse oposição. A outra metade a ditadura usou para desmanchar a barraca e voltar para os quartéis, não sem antes outorgar uma Lei de Anistia que perdoava a si mesma, aos torturadores e aos falecidos torturados.

E o Brasil não teve eleições diretas ao fim da Ditadura, mas teve um presidente popular eleito por via indireta (Tancredo Neves) que morreu sem governar um só dia.

Um Plano econômico que congelou preços e salários em 1986, até o governo do PMDB vencer as eleições de 15 de novembro, acabando o Plano e subindo tudo junto com uma gigantesca inflação. Já, no dia 16.

Fomos por muitos anos o 8º PIB do mundo, mas sempre tivemos os pobres mais pobres do planeta.

Elegemos um presidente em cima de suas ideias, que pediu para esquecê-las assim que chegou ao poder, o mesmo que fumava maconha mas não tragava. Como confiar em alguém que fuma mas não traga?

O Brasil, um país que nega existir racismo, onde membros de igrejas evangélicas classificam homossexualismo como doença, mas não respondem por homofobia, onde se estigmatizou ser de um dos povos mais pacíficos do mundo e que, entretanto massacrou outro país até as raias do inimaginável (o Paraguai) é realmente um país vocacionado e fadado às mentiras.

De certa forma, a história do Brasil tem, por isso mesmo, um pouco de drama e um pouco de comédia.
E seu povo, um pouco de vítima e um pouco de cúmplice.


Prof. Péricles












domingo, 14 de setembro de 2014

REVOLUÇÃO FARROUPILHA, O MITO


O movimento farroupilha, como em todos os anos, sacode o estado do Rio Grande do Sul, em comemoração ao início das ações militares em 20 de setembro de 1835 (179 anos).

Envolto em lendas e mitos a Guerra dos Farrapos criou uma imagem aceita e defendida pela imensa maioria dos gaúchos. Por isso mesmo, é assunto espinhoso, já que algumas críticas necessárias para entender melhor o fato, provoca reações, no mínimo, de desconforto, inclusive, entre professores de história.

Segundo a imagem romanceada, a “Revolução Farroupilha” foi a luta e o sacrifício do povo gaúcho, unido contra o Império opressor que, sediado no Rio de Janeiro, era surdo às necessidades da Província. Uma luta inglória, do Rio Grande contra todos, em nome da liberdade, do fim da escravidão e por uma república independente.

Vamos analisar melhor esse manancial de mitos.

1. Começando pelo próprio nome. A “Revolução Farroupilha” jamais foi uma revolução. Revoluções são fenômenos transformadores, que não apenas reformam, mas, redefinem sistemas, economias, sociedades, etc. O movimento Farroupilha começou como mais uma das revoltas regenciais que se multiplicaram no período 1831-1840, tornou-se Guerra Civil com a Proclamação da República Rio-grandense, em 1836 e jamais foi vista além de uma rebelião pelo governo imperial. Além de não propor alterações sociais profundas o movimento era conservador, visto ser liderado totalmente por grandes estancieiros, a elite local, e seus aliados.

2. Sua causa principal foi o descaso com que o governo central tratava a concorrência sofrida por nossos produtos pelos produtos platinos, particularmente, o charque.

Na verdade, embora o governo dos regentes não primasse pela atenção das necessidades das elites estancieiras, o buraco era mais embaixo. A desvantagem do charque, por exemplo, devia-se ao fato de ser produzido por mão de obra assalariada no Uruguai e mão de obra escrava no Rio Grande do Sul. Na época, o trabalho escravo já não era rentável e perdia em produtividade para o trabalho assalariado, com o que, podemos concluir que, a maior responsabilidade pela desvantagem econômica era estrutural (a escravidão) e não comportamental, como sugeriam os líderes farroupilhas.

3. A guerra foi uma luta entre o Brasil contra os gaúchos.

Para essa afirmação fazer sentido, seria necessário o apoio unânime ou quase unânime da população gaúcha ao movimento. Isso jamais aconteceu. A maior parte da população do Rio Grande do Sul permaneceu fiel ao Império e indiferente aos apelos por uma união contra o Brasil. Porto Alegre, por exemplo, a capital da Província, sempre foi em sua quase totalidade inimiga dos farroupilhas. A “Bronze” (de onde vem a denominação de altos da bronze, no centro histórico), a mais famosa prostituta de Porto Alegre, era uma entusiasmada propagandista do império, e levava a defesa da manutenção da união do Rio Grande ao Brasil a todos os seus clientes.

4. O movimento era libertador, pois pretendia abolir a escravidão.

Embora alguns líderes como Antônio de Sousa Neto fossem abolicionistas convicto, o comando maior farroupilha sempre assistiu uma disputa em relação a essa idéia. No final do conflito os abolicionistas foram afastados do comando e gente como David Canabarro e Vicente da Fontoura, em segredo, negociaram de forma abominável um fim que mantivesse a escravidão na província mantendo, porém a farsa de que isso era uma exigência apenas dos imperiais. O criminoso ato de Porongos, quando os lanceiros negros, desarmados, foram dizimados, fala por si só.

5. A Guerra terminou com um tratado digno, o Tratado de Ponche Verde, em que o Império reconheceu a bravura dos farrapos e a dificuldade de vencê-los, não punindo suas lideranças e mantendo-os no exército, com a mesma patente que exercia nas forças farroupilhas.

O que aconteceu em Ponche Verde, não foi um tratado. Para se ter uma idéia, homens como Bento Gonçalves, Antônio de Sousa Neto e o próprio Duque de Caxias, jamais assinaram o documento, o que o caracteriza muito mais como um conchavo entre grupos do que um Tratado de Guerra. Além disso, o governo brasileiro sabia bem que os tempos muito próximos trariam conflitos armados com Argentina, Uruguai e Paraguai e por isso, precisava daqueles militares experientes e profundos conhecedores da região, sendo essa a causa real da manutenção da ordem militar.

O direito à tradição e as lendas é inalienável dos povos, mas, maior é o direito do conhecimento das verdades históricas dos fatos.


Prof. Péricles










UMA SEMANA PARA NÃO ESQUECER


por Saul Leblon

A semana termina com uma inflexão na disputa presidencial que devolve a reeleição da Presidência Dilma ao topo das apostas. A evidência mais óbvia está na convergência das pesquisas.

Mas são as decisões políticas que cavalgam os números. A elas devem ser creditadas as lições de uma semana para não esquecer --seja para orientar o passo seguinte da atual disputa, ou o futuro que vier depois dela.

Em sete dias, a candidatura progressista passou a ditar o ritmo do jogo: todos os levantamentos apontam na direção de uma vantagem ascendente de Dilma no 1º turno, com liquefação da liderança de Marina na fase final do pleito.

O empate técnico no 2º turno --43% a 42%, com Marina à frente, sinalizado pelo Ibope desta 6ª feira, deixa no ar um leve aroma de virada.

No início do mês, o Datafolha buzinava a hipótese de uma vitória esmagadora de Marina, que àquela altura abria uma vantagem de 10 pontos sobre Dilma no returno da eleição (50% x 40%).

Há uma semana, o Ibope indicava que a vantagem caíra para ainda apreciáveis sete pontos (46% a 39%).

As mudanças na superfície refletem correntezas que antecipam o rumo da marcha.

Por exemplo: a percepção positiva do governo melhorou.

Expressiva maioria dos brasileiros –cerca de 70% do eleitorado considera a administração Dilma entre regular (33%) e ótimo/bom (38%).

O percentual de ótimo e bom cresceu sete pontos desde junho.

A candidata Dilma ainda enfrenta elevada taxa de rejeição (42%). Mas a Presidenta vê sua aprovação crescer lentamente: ganhou sete pontos para somar agora robustos 48% (41% em junho).

O que falta para essa aprovação flutuante se traduzir em apoio efetivo à reeleição?

A pergunta é pertinente diante da mudança observada no humor do eleitorado, mas, sobretudo, das possibilidades abertas por novidades que vieram para ficar.

Os 11 minutos disponíveis pela coligação de Dilma no horário eleitoral abriram uma clareira em uma narrativa econômica articulada à especulação financeira, e determinada a materializar a profecia de um nação demolida, embora no limiar do pleno emprego.

O BC anunciou uma expansão do PIB de 1,5% em julho --a maior taxa dos últimos seis anos para o mês. No mesmo dia a Bovespa desabou.

O que explica o paradoxo de uma Bolsa que esfarela quando a economia se expande, e isso é reportado pelo colunismo isento como sintoma de uma economia em estado terminal?

Explica-o a perda de densidade da candidatura ostensivamente simbiótica com os interesses do mercado financeiro.

A segunda lição da semana não é estranha a essa, mas reveste-a de maior abrangência.

O fato é que a reordenação das intenções de voto em direção à Dilma dificilmente teria ocorrido não fosse a determinação política de usar essa janela de informação para transmitir uma mensagem clara ao eleitor.

Ela foi formatada, como registrou Carta Maior (leia ‘A arca de Marina e o dilúvio antipetista), depois que a direção do PT fez um balanço crítico da campanha no último dia 5, em São Paulo. Foi também quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em discurso à militância, encarou a perplexidade petista diante da desabalada liderança de Marina nas pesquisas até então.

Em duas frases, Lula esquadrejou a areia movediça ao redor e identificou um pedaço de chão firme onde instalar a alavanca para uma reação: ‘Nós ficamos economicistas; não nos faltam obras, mas política’, diagnosticou para prescrever o antídoto: ‘Temos que demarcar o campo de classe dessa disputa: é preciso levar a política à propaganda’.

A partir de então a essência radicalmente neoliberal embutida no programa de Marina Silva passou a ser floculada do espumoso caudal de 241 páginas .

Na mesma chave narrativa, a Presidenta Dilma passou a dar nomes aos bois. E ao berrante, que alguns preferem chamar de educadora, embora funcione como um agregador da boiada e de tudo o mais que acompanha o tropel.

A eleição está longe de ser definida a favor do campo progressista. Há flancos preocupantes.

O Nordeste não é mais uma trincheira coesa; Dilma não terá palanques em estados onde candidatos a governo do PT estarão fora do 2º turno; a mídia e o dinheiro grosso não vão desperdiçar a chance real de vitória à bordo da desfrutável candidata que lhes oferece o carisma que nunca tiveram. Num 2º turno, a vantagem do tempo de televisão desaparece.

É tudo verdade. Mas quem relativiza o que aconteceu nos últimos cinco dias não entendeu o principal.

O PT e sua propaganda redescobriram que não se faz política sem definir o adversário, dizer o que ele representa, por que deve ser derrotado, as perdas e danos de se entregar o país ao seu corolário de poder.

Isso não é pouco.

Em dúvida, recomenda-se rever a sabatina de Dilma à equipe de colunistas do Globo, realizada na última sexta-feira.

Estava todos lá, as mais ostensivas cepas do conservadorismo midiático, em sua gordurosa peroração de sempre: o Brasil é uma cloaca entupida de corrupção e desgoverno.

Dilma deu-lhes um banho com o sabonete desfolhante da clareza técnica esfregada com a bucha da argúcia política.

Tirou o couro. E expôs a matéria bruta dos interesses por trás da santa inquisição, reduzida a um auditório gaguejante, diante da consistência e desenvoltura da entrevistada.

Confira abaixo. É o corolário encorajador de uma semana para não esquecer:

http://infograficos.oglobo.globo.com/brasil/sabatinas-o-globo-com-os-candidatos-a-presidente-1.html

domingo, 7 de setembro de 2014

UM PAÍS DE MENTIRAS - 01



O Brasil é um país que gosta de mentiras e convive culturalmente com elas.

Já ao nascer como país, na Constituição de 1824, uma grande mentira, a Monarquia é adotada como forma de governo. Quando o normal seria seguir o exemplo de todas as nações sul-americanas que adotaram a república, o Brasil nasceu real. Mas essa realeza era uma mentira. Nossa dinastia não existia, nem nobreza. Nossos condes, duques e marquesas foram todos instituídos por decretos a partir de uma idéia mentirosa criada apenas para manter a escravidão.

Como que justificando a aposta das elites na monarquia, D. Pedro, nosso primeiro imperador, em 1826, mentiu aos britânicos que acabaria com o tráfico de escravos num prazo máximo de cinco anos, e os britânicos acreditaram. Foi a famosa Lei “para inglês ver” e o tráfico só seria proibido depois de uma verdadeira guerra diplomática 44 anos depois em 1870, com a Lei Eusébio de queirós.

No segundo reinado criou-se o mito de uma nação pacífica, mas isso é apenas outra mentira, pois, se internamente os movimentos de contestação acabaram (com exceção da Praieira em 1848) essa paz se fez pelo emudecimento à força das vozes reivindicantes e não pela atenção a essas reivindicações, externamente, o Brasil interferiu militarmente por três vezes na Argentina e no Uruguai e foi o ator principal da maior guerra dessa banda do continente, a Guerra do Paraguai (1864-1870).

Antes, em 1847, uma engenhosa farsa. Criou-se o sistema parlamentarista no Brasil, sem nunca se usar a palavra parlamentarismo ou primeiro-ministro, e sim, presidente do Conselho de Ministros. No entanto, o imperador manteve seus poderes num parlamentarismo verdadeiramente às avessas.

Pelo cargo maior de Presidente do Conselho de Ministros lutavam dois partidos com nomes opostos, Partido Liberal e Partido Conservador, mas era mentirinha, pois os dois eram basicamente a mesma coisa e representavam os mesmos interesses da elite.

Em 1888 ocorre a assinatura da Lei Áurea, uma enorme mentira, pois de áurea essa Lei racista e excludente, nada tinha.

Na proclamação da República em 1889 adota-se toda uma simbologia positivista num país em que poucos setores eram realmente positivistas e uma Constituição fortemente influenciada pelos Estados Unidos que prevê o voto universal, uma grande mentira. Como pode o voto ser universal se excluía as mulheres e os analfabetos?

Na virada do século coibia-se o samba como atividade criminosa e proibiam-se os negros de jogarem futebol. Ao mesmo tempo se fazia saúde pública vacinando à força e queimando-se colchões das pessoas pobres.

Mentiras. Um país que cultiva mentiras


Prof. Péricles

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

FLERTANDO COM A MORTE


Por Paulo Vianna


Aconteceu na tarde de sexta-feira, 23 de abril de 1982. Quem estava sentado do lado esquerdo do avião levou um grande susto: apareceu um jato militar, bem armado e com pintura de camuflagem, junto da asa do DC-10 da Varig. Foi por pouco tempo — o suficiente para provocar tumulto. De repente, o caça deu uma guinada e desapareceu. Deixou perplexidade bastante para animar a conversa a bordo naquele fim de viagem Johanesburgo-Rio.

Ao desembarcar no aeroporto do Galeão, por volta das 19h30m, cada passageiro tinha uma breve história para contar. Um deles era Leonel Brizola, então candidato ao governo do Estado do Rio. “Dava para ver o perfil do piloto”, ele disse ao GLOBO na época. Brizola (1922-2004) e seus companheiros de viagem não podiam imaginar, mas aquilo fora um flerte com a morte.

Quando o DC-10 foi captado na tela dos radares, a frota britânica navegava a dois mil quilômetros de distância das praias do Rio. Avançava na direção do arquipélago Malvinas, invadido por tropas argentinas três semanas antes.

O almirante John Forster “Sandy” Woodward comandava uma operação arriscada, a 13 mil quilômetros das bases europeias, limitada no calendário pelo início do inverno polar. E, também, limitada no tempo, porque o governo da primeira-ministra Margareth Thatcher não sobreviveria se a missão resultasse em fiasco ou numa “viagem inútil a lugar nenhum” — na definição do Bureau de Inteligência do Departamento de Estado norte-americano.

Há quatro dias a esquadra deixara a base da ilha de Ascensão, na altura de Pernambuco, e era frequentemente sobrevoada por um Boeing 707 da Aerolíneas Argentinas. Toda a estratégia de defesa da Junta Militar dependia da localização dos navios para estimativas sobre a data mais provável de chegada da frota à zona de combate.

Incomodado com as missões de “reconhecimento”, Woodward pediu mudanças nas regras de interceptação. Até então, dependia de autorização expressa de Londres para abrir fogo contra aeronaves consideradas como “ameaça”, fora da “zona de exclusão aérea”, mesmo que estivessem desarmadas. Recebeu autonomia na quinta-feira 22 de abril, quando o secretário de Defesa, John Nott, anunciou alterações no sistema de “alerta de defesa” da frota — sob o argumento de que a esquadra já se encontrava ao alcance das Força Aérea argentina.

Na manhã de sexta-feira, 23, um Boeing 707 da Aerolíneas despontou nos radares, e desapareceu — indicam os registros coletados pelo historiador militar britânico Rupert Allason, cujos livros são assinados com o pseudônimo Nigel West.

À tarde, outro alarme: aeronave suspeita a 340 quilômetros de distância, dez mil metros de altitude, em aproximação a 700 quilômetros por hora. O momento não poderia ser pior, descreveu Woodward nas memórias, porque o porta-aviões Hermes estava em meio ao reabastecimento. Preparou-se o lançamento de mísseis.

Um caça Harrier se aproximou do “alvo”. Chegou por trás; passou por cima; ficou à frente; foi para o lado esquerdo; deu uma guinada e sumiu, sem responder às tentativas de contato do comandante do DC-10, Manoel Mendes — segundo ele mesmo relatou aos passageiros curiosos, como Leonel Brizola e o então deputado maranhense Neiva Moreira.

O piloto do caça confirmara o “alvo” como jato comercial regular da companhia brasileira Varig, em voo de rotina e com as luzes de cabine devidamente acesas. Woodward calcula em 30 segundos e Allason (West) estima em 20 segundos o intervalo entre o reconhecimento pelo Harrier e a ordem para abortar o ataque.

A bordo do DC-10 da Varig, 188 pessoas não sabiam, mas durante essa fração de tempo flertaram com a morte.

E o comandante Woodward escapou de um erro que, certamente, teria mudado a história da guerra no Atlântico Sul.



sábado, 30 de agosto de 2014

ALFACES SOFREM


Por Walcyr Carrasco


É muito difícil conviver com vegetarianos a maior parte do tempo. Para sair, é preciso escolher o restaurante que eles querem. Se convido para comer em casa, também impõem o menu. Só pode isso, ou aquilo. Pior, é preciso saber de que corrente a pessoa é adepta. Há quem se declare vegetariano, mas na prática come peixes e frutos do mar. Outros nem tocam em qualquer produto de origem animal, como um molho de macarrão com creme de leite. Todos, porém, têm uma tese sobre a vida, uma fronteira estabelecida – e estou sempre do lado errado.

Foi traumatizante a vez em que convidei um amigo para uma churrascaria. Sentamos, e só aí ele declarou que não comia carne, mas se satisfaria com as saladas. Tudo bem. Mas tem graça devorar espeto após espeto, enquanto, do outro lado da mesa, alguém me encara com ar de acusação?

Meu amigo Ricardo, advogado, carnívoro e bon-vivant, diz sabiamente:
– Se verdura fosse gostosa, teria rodízio.

De fato: alguém já viu rodízio de vegetais? De picanha, alcatra, maminha, sim. De pizza e sushi, também. Mas de brócolis? Diga francamente, você iria a um rodízio de brócolis? Ok, já sei a resposta. Eu também não.

O maior argumento dos vegetarianos é que animais sofrem ao ser abatidos. A angústia do boi, dizem, contamina a carne.

– E, depois, essa coisa ruim vai para dentro de você – disse um amigo com expressão sábia.

Fiz cara de preocupado e pensei num bom filé de alcatra. Frangos de granja vivem confinados e são tratados à base de hormônios. Penso até que essas aves já se tornaram uma mistura de animal com plástico, ou algo assim. São praticamente artificiais. Compartilho intimamente a infelicidade desses bichos. Mas não consigo pensar no assunto quando devoro um galetinho bem temperado. Também não penso nos pobres porcos quando chafurdo numa feijoada. E o torresmo, que delícia!

Muitos que se dizem vegetarianos comem peixes ou frutos do mar, como disse. Vamos lá, um camarão não tem vida, nenhum sentimento? Um linguado não faz sexo, não sente prazeres? Certa vez, aprendi a preparar o polvo. É preciso colocá-lo em salmoura, depois bater bem o corpo e pendurá-lo na torneira. Juro, o momento foi terrível. Polvo tem olhos e boca, e aquele me encarava, parecia dizer, mesmo sem vida:

– Por que faz isso comigo?

– Adoro sushi de polvo – disse intimamente – E a vida é assim, injusta. Vou te cozinhar, aguarde só a água ferver.

Mesmo assim, não preparei mais polvos. Principalmente depois de ler, em algum lugar, que eles se reconhecem no espelho. Isso sugere um grau de inteligência. Mas continuo a comê-los, impossível não gostar de polvo. Em sushi ou à espanhola, com molho vermelho.

Indo mais longe: já houve experiências com plantas, vegetais de todo tipo. Se tocam música clássica e suave nas proximidades, crescem harmoniosamente. Se gostam de música, é porque têm sentimentos. São vivas, afinal. Acho até a situação das plantas pior que a de muitos animais. Vegetarianos gostam de devorá-las frescas. Quanto mais vida ainda tiverem, melhor.

Pensemos do ponto de vista da alface: ela agoniza numa travessa, coberta de azeite, sal, vinagre, é espetada por um garfo e vive seus últimos momentos nos dentes de um vegetariano de consciência tranquila. A alface quer gritar, gemer e, ai, não consegue! Sofre. Da mesma forma que as flores colocadas nos vasos para enfeitar a sala – vegetarianos adoram esse ambiente florido. Mas não são flores agonizantes? Foram arrancadas do pé e, enquanto demonstrarem uma fatia de vida, no colorido das pétalas, são exibidas em vasos. Depois atiradas no lixo, com o resto das saladas, dos brócolis e abobrinhas cozidos, do chuchu, da berinjela, da cenoura, que, coitada, foi ralada.

Não sou a favor do sofrimento, mas, enquanto não puder viver de raios de sol, também preciso sobreviver – e, sem comida, não dá. Já que é assim, prefiro comer bem!

Só me pergunto: por que os vegetarianos sofrem pelos animais, e não pelos vegetais, que também têm sensibilidade? Acho uma falta de lógica. Tudo faz parte de uma cadeia alimentar. Talvez eu também, algum dia, se a Terra for invadida por extraterrestres canibais. Ou se for a um safári na África, der tudo errado e virar comida de leão.

Apesar dessa falta de lógica, vegetarianos se consideram melhores que o resto da humanidade. Mais corretos, mais bondosos. Ser vegetariano torna realmente alguém melhor?

Sei não... Afinal, Hitler era vegetariano.



quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O LOUCO DO ORELHÃO


Ele falava alto, e gesticulava. E sorria também. Mais que isso, gargalhava.

Chamava atenção sua aparência.

Calça de brim esfarrapada e muito suja. Blusa marrom, também muito suja e algo que um dia foi um casaco por cima da blusa.
Um autêntico morador de rua. E falava alegremente ao telefone, soltando gargalhadas contagiando os passantes.

O que mais chamava a atenção, no entanto, era que sua mão, distraidamente, repousava sobre o gancho do “orelhão” (aqui, em Porto Alegre são chamados assim os telefones públicos).

Isso mostrava que, na verdade, ele não falava com ninguém. Ou, pelo menos, com ninguém naquela ligação telefônica.

Das coisas que dizia, uma expressão era muito repetida: “eu vou voltar, eu vou voltar, prometo”.

Todos continuaram seus caminhos, mas, muitos levaram dali inquietantes indagações.

Com quem ele pensava estar falando? Onde seria a outra extensão da ligação?

Para onde voltar?

Por que voltar lhe fazia rir e, se isso era tão bom, a quanto tempo estava fora?

Louco, resmungou uma senhora.

Na verdade, muitas vezes em nossas vidas repetimos, de outras formas, o gesto do louco do orelhão.

Muitas vezes nos iludimos que somos ouvidos.

Ansiamos que nossa voz impregnada de nossas crenças e experiências chegue até alguém que realmente se importe com nossos valores e nossas verdades.

Tudo aquilo em que acreditamos carrega um pouco de nós e quando somos ouvidos, de certa forma, somos acolhidos.

Nessa vida louca e bandida lutamos pra manter nossa lucidez, mas não são poucas as vezes em que enlouquecemos e sentimos vontade de pegar um “orelhão” imaginário, fazer uma ligação sem retorno, e aos berros e risos, prometer que vamos voltar.

Prometer, não exatamente para alguém, mas, para nós mesmos.

Ou mesmo gritar com todas as forças, “Yarburne” uma palavra árabe intraduzível para o português que significa a esperança que se tem de morrer antes da pessoa amada, porque seria incapaz de prosseguir vivendo sem ela.

Para a geração que ousou botar o pé na estrada levando na bagagem a proposta de paz e amor e que acreditou na possibilidade de criar um mundo melhor, mais justo e fraterno a opção foi cruel: voltar ao ponto de partida, adulto e sem seus sonhos ou permanecer com eles sem poder voltar. Nesse caso, a loucura sempre será o melhor refúgio.

Para a geração de loucos brasileiros que teve a coragem de lutar contra o fascismo em nome da liberdade, muitos dos caminhos não tiveram fim e a família de muitos ainda espera sua volta ou, ao menos, uma ligação de algum lugar, de um ponto sem linha ou de um túmulo sem lápide.

Nem sempre retornamos a tempo. Nem sempre alguém nos espera. Muitas vezes ninguém atende nossa ligação e nossa mão, desligando ou não a conexão, não faz a menor diferença.

“Vou voltar sim, me espera que estou chegando!”, gritamos e rimos de nós mesmos.

“Eu viajei nas noites sem estrelas, escalei viadutos, gritei mais alto que as buzinas e me perdi nas curvas urbanas. Me perdi, me perderam, mas me achei, e estou de volta.”

“Vou voltar sim, me espera que estou chegando!”

Prof. péricles

domingo, 24 de agosto de 2014

ABDELMASSIH E MENGELE




Por Alex Antunes



Claro que o ex-médico Roger Abdelmassih é um monstro. Atacava mulheres sob seus cuidados ou chefia, sedadas ou não. Sua pena é de 278 anos de prisão, por cerca de 50 estupros (foram 90 acusações, várias prescritas ou consideradas carentes de provas). A pena traduz esse inconformismo da sociedade com “um homem que abusava de mulheres que deveria proteger”, ou que “abusava delas em seu momento de maior fragilidade”. Fato.

Acontece que o doutor, capturado nesta terça-feira em Assunção, no Paraguai, onde havia se instalado numa mansão num bairro fino (o mesmo do presidente), não é apenas um estuprador vulgar. Ele era também um médico de grande renome e sucesso, inclusive midiático. Chamava a si mesmo de “Dr. Vida”, em função do alto percentual de casos bem-sucedidos em sua clínica de reprodução assistida.

Sua notoriedade começou quando atendeu o “rei” Pelé e a então esposa, Assíria, que conseguiu engravidar de gêmeos. Seguiu-se uma lista de celebridades, incluindo as mulheres de Fernando Collor, Tom Cavalcante, Renan Calheiros e Gugu Liberato (Fátima Bernardes faz questão de negar que tenha sido atendida por ele). A caríssima clínica de Abdelmassih tinha um alto percentual de casos bem-sucedidos, por volta de 50%, contra a média usual dos 30% de referência internacional. Ele dizia que era por causa do alto investimento em pesquisas.

Hoje sabe-se que o Dr. Roger também estuprava a ética médica. À revelia das pacientes, usava óvulos ou espermatozóides não necessariamente colhidos dos casais que atendia, e inseminava óvulos em quantidade superior ao indicado, para melhorar a margem de sucesso. Fraudes e erros médicos eram o combustível real da sua taxa de acerto.

Dr. Roger está em boa companhia. Nos anos 1980, o médico american Cecil Jacobson também alucinava em sua clínica de reprodução humana: usou seu próprio esperma em fecundações, produzindo possíveis 75 filhos seus em clientes desavisadas. Não se sabe se o Dr. Abdelmassih usou seu próprio sêmen. O médico mais famoso do 3º Reich, Josef Mengele, que fugiu para a América do Sul e morreu incógnito, em 1979, em Bertioga, no Brasil, por afogamento, é outro que juntava medicina e fetiches pessoais.

Entre 1943 e 1944, no campo de concentração de Auschwitz, o "Anjo da Morte" torturou e mutilou prisioneiros em seus “experimentos científicos”, entre os quais se incluiam afogamentos, injeções nos olhos e até a tentativa de criar gêmeos siameses artificiais, juntando dois irmãos. Mengele ia ainda um pouco mais longe da casinha, com um empurrão conivente do nazismo. Mas, como Jacobson e o Dr. Roger, Mengele não tinha cara de maluco.

Tinha, isso sim, a mesma arrogância de praticamente toda a medicina branca e ocidental diante de seus pacientes – particularmente quando esses pacientes são mulheres. Saltam à vista casos recentes como o de Adelir Carmen Lemos de Góes, obrigada por decisão judicial e força policial a fazer uma cesariana indesejada em Torres (RS), e de uma paciente de Natal (RN), ridicularizada nas redes sociais por seu obstetra após discordâncias na condução do parto.

Com os seus respectivos graus de perversão, o tal obstetra de Natal, chamado Iaperi Araújo, mais Jacobson, Abdelmassih e Mengele são exemplares de um mesmo tipo de postura. A suposta autoridade da (assim chamada) ciência sobre a intuição. Do deslumbramento fetichista tecnológico sobre a magia natural. O jaleco faz o tarado.
Na ficção, as fantasias de Mengele ganharam uma dimensão mais megalomaníaca. No livro de Ira Levin, depois adaptado para o cinema, chamado Os Meninos do Brasil, o médico-carrasco alemão combina seu gosto real por gêmeos com a especialidade em fertilização, antecipando Jacobson e Abdelmassih. Ele cria clones de Hitler em casais que buscam a gravidez assistida.

Gregory Peck como Mengele em Meninos do BrasilMeu filho nasceu em casa, sob a orientação de uma parteira (ex-enfermeira obstétrica) e de uma xamã. Minha ex-mulher, que tinha um parto anterior em hospital, não tem a menor dúvida de que é melhor escolher seu canto para parir como uma gata, o mais confortável possível, se hidratando com pedaços de melancia, do que de pernas para cima, contra a lei da gravidade, em sofrimento, em jejum e sob a agressividade das luzes e do escrutínio dos médicos. Parir é saúde, não doença. E a cura de doenças, por sua vez, não é glamour. É saúde, psíquica inclusive.

No aniversário de 30 anos da primeira fertilização in vitro do mundo, em 2007, conforme o relatado no blog de Laura Capriglione, Abdelmassih fez uma festa opulenta, a Festa da Fertilidade, com a presença não só de vários de seus clientes famosos, como também de Luciana Gimenez e Hebe Camargo, que carregava animadamente um bebê de brinquedo como se fosse real. Mais um espetáculo midiático, mais uma exibição do “poder”, mais fetiche.

No entanto, nas rodas médicas, os abusos de Abdelmassih eram comentados há anos, e nada se fazia. Só com a explosão pública do escândalo a entidade de classe se mexeu para cassar seu registro. Ele era um “poderoso”, e amigo dos “poderosos”. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, mandou soltá-lo, para que ele respondesse o processo em liberdade – e ele fugiu para o exterior, desaparecendo por quase quatro anos.

Se entre Mengele e Abdelmassih é a mesma postura, só com diferenças de grau, fantasia e oportunidade, assim também é entre o nazismo e o mundo dos “famosos”. Onde Abdelmassih fez sua fama, criando os verdadeiros “meninos do Brasil”.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A GLOBO E OS IMPOSTOS



Por Paulo Nogueira.


Stellan Skarsgard é um ator sueco.

Aos 63 anos, um dos favoritos do cineasta Lars von Trier, tem uma carreira vitoriosa que lhe trouxe fama e dinheiro. Recentemente, ele concedeu uma entrevista na qual reafirmou seu amor pela Suécia.

“Vivo na Suécia porque o imposto é alto, e assim ninguém passa fome. A saúde é boa e gratuita, assim como as escolas e as universidades”, disse ele. “Você prefere pagar imposto alto?”, lhe perguntaram. “Claro. Se você ganha muito dinheiro, como eu, você tem que pagar taxas maiores. Assim, todo mundo tem a oportunidade de ir para a escola e para a universidade. Todos têm também acesso a uma saúde pública de qualidade.”

Skarsgard nasceu e cresceu numa cultura que valoriza o pagamento de impostos. Por isso a Suécia é tão avançada socialmente. Impostos, como lembrou ele, constroem hospitais, escolas, universidades. Pagam professores e médicos da rede pública, além de tantas outras coisas positivas para qualquer sociedade.

Essa cultura vigora também na Alemanha. Recentemente, o presidente do Bayern foi para a cadeia por sonegar imposto. Quando o caso eclodiu, as autoridades alemãs fizeram questão de puni-lo exemplarmente sob um argumento poderoso: nenhum país funciona quando as pessoas acreditam que podem sonegar impostos impunemente.

Agora, vejamos o Brasil. Há anos, décadas a mídia alimenta uma cultura visceralmente oposta. Imposto, você lê todo dia, é um horror. O Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo (o que é mentira). Imposto é uma coisa injusta. Bem, a mensagem é: sonegue, se puder. Parabéns, caso consiga.

Não poderia haver coisa mais danosa para os cidadãos do que esta pregação diuturna da mídia. Você os deforma moralmente. Tira-lhes o senso de solidariedade presente em pessoas como o ator sueco citado neste artigo.

Além de tudo, a cultura da sonegação acaba chancelando os truques praticados pelas grandes companhias de mídia para escapar dos impostos. Considere o caso célebre da sonegação da Globo na compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002.

Nestes dias, vazou toda a documentação relativa ao caso. Uma amostra já tinha vindo à luz – na internet, naturalmente – algum tempo atrás, num furo do site Cafezinho. Só a cultura da sonegação pode explicar o silêncio sinistro que cerca este escândalo fiscal.

Até aqui, a Globo não deu uma única satisfação à sociedade. Não se desculpou, não se justificou. É como se nada houvesse ocorrido. Também a Receita Federal, até aqui, não disse nada. Mais uma vez, é como se nada houvesse ocorrido no âmbito da receita. Nenhuma autoridade econômica, igualmente, se pronunciou. De novo, é como se nada houvesse ocorrido numa área tão vital para a economia como a arrecadação de tributos.

E a mídia?

Bem, a mídia finge que não está acontecendo nada. Contei já: quando o Cafezinho publicou os documentos, falei com o editor executivo da Folha, Sérgio Dávila. Ponderei que era um caso importante, e ele aparentemente concordou porque logo a Folha fez uma reportagem sobre o assunto. Uma e apenas uma. Em seguida, a sonegação da Globo sumiu da Folha para nunca mais retornar.

Se conheço as coisas como funcionam nas redações, um telefonema de um Marinho para um Frias – as famílias são sócias no Valor — pôs fim à cobertura. Volto a Stellan Skarsgard. Em todo país socialmente desenvolvido, pagar impostos é uma coisa sagrada. E sonegá-los é um ato de lesa sociedade, passível de punição exemplar.

O Brasil sofreu uma lavagem cerebral da mídia. Uma das tarefas prementes de uma administração sábia é desfazer essa lavagem. Quando as palavras do ator sueco encontrarem eco no Brasil, seremos uma sociedade desenvolvida.


sábado, 16 de agosto de 2014

AMOR, DIVINO AMOR PROFANO



Eles se amavam profundamente. Talvez amor nenhum tenha sido maior, se pudéssemos hierarquizar esse sentimento extraordinário.
Entretanto, por uma imposição do pai, ela casara-se com um homem a quem não nutria nada além de simpatia.

Assim, seu amor era impossível, mas, irresistível, e mesmo sabendo estarem agindo de forma errada, encontravam-se e amavam-se até o limite que seus corpos permitiam.

Um amor alucinado, possuído, exasperado...

Um dia, porém, foram descobertos, e, pior, surpreendidos em pleno ato do mais profundo amor.

Vergonha. Completa vergonha.

Ela esperava que ele assumisse todas as conseqüências e ficasse com ela para sempre. Mas, ele, fraco ou covarde, não fez isso. Deu-lhe as costas e tratou de defender seus interesses.

Tornaram-se irreconciliáveis.

Ela era Afrodite (para os gregos) ou Vênus (para os latinos).

Ele era Ares (para os gregos) ou Marte (para os latinos).

Ela, deusa do amor e da beleza, era tão linda, supremamente linda e perfeita, que provocou a fúria de outras filhas de Zeus (Atena e Vesta) que exigiram que Afrodite tivesse alguma desgraça, e dessa forma, foi forçada pelo pai a casar com Hefesto (Vulcano), o coxo, o deus mais feio do Olimpo, com suas marcas e cicatrizes no rosto.

Marte era o deus da guerra. Originalmente um deus da terra. Posteriormente deus da morte, das batalhas sem fim.

A união do amor e da guerra insere-se perfeitamente na forma de ver a vida dos gregos e, por herança, dos latinos.

O drama eterno da vida. A união de duas tragédias, a morte e o amor, que não são opostos, mas, ao contrário, complementam-se.

Tiveram uma filha e quatro filhos, frutos do louco amor que os unia.

No período mais belo e pacífico tiveram Harmonia, Cupido e Eros. Nos momentos de crise tiveram Deimos (o Pânico) e Fobos (o medo).

Numa espécie de Romeu e Julieta da Antiguidade Clássica, Afrodite e Ares (ou Vênus e Marte), foram representados em estátuas e monumentos inúmeros.

O museu de Florença e o museu Capitolino, reproduzem essa ligação. Os romanos gostavam de fazer-se representar com as suas mulheres, e usando os atributos de Marte e Vênus; era uma alusão à coragem do homem e à beleza da mulher.

Vários arqueólogos pensam que a Vênus de Milo estava ao lado da estátua de Marte. A arte dos últimos séculos ligou igualmente as duas divindades e, num encantador quadro do Louvre, le Poussin mostra-nos o deus da guerra, esquecido dos seus atributos e do seu papel, sorrindo para a deusa, enquanto os cupidos brincam tranqüilamente com as armas, no meio de risonha paisagem.

Apesar de todas as tragédias, o amor sempre foi maior, mas nem por isso o final feliz está garantido.

Assim como nós, seres humanos, somos os responsáveis pelo nosso destino, a partir de nossas opções e responsabilidades, os deuses também são responsáveis pelo final de suas histórias.

E a história dos dois deuses mais apaixonados do Olimpo tem o final de suas escolhas.

Afrodite (Vênus), transformando o seu amor em ódio, rogou uma praga para que Marte se apaixonasse por todas as mulheres que visse, tornando-se assim um deus constantemente apaixonado, mas abandonado.

Por outro lado, ela permaneceu apaixonada apenas por um, mas sendo de todos e de ninguém.

Prof. Péricles

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

SEM RUMO



Por Mauricio Puls

O aspecto mais notável do presente cenário eleitoral não é a debilidade da presidente nas pesquisas, e sim a da oposição. Seria razoável esperar que, numa conjuntura difícil, seus adversários estivessem numa situação mais favorável.

Na última pesquisa Datafolha, os candidatos do PSDB, PSB e PSC tinham 31% das intenções de voto. É pouco. Nesta etapa da campanha, três opositores reuniam 48% das intenções de voto em 2010, 39% em 2006, 39% em 1998, 46% em 1994. Em todas essas eleições, a oposição estava melhor nesta altura da disputa. Em todas o Planalto venceu.

Em que ocasiões o governo perdeu? Em 1989, quando três antagonistas somavam 62% das intenções de voto; e em 2002, quando possuíam 72%.

A oposição nunca teve um desempenho tão ruim como agora, apesar das condições adversas a Dilma: três quartos dos eleitores desejam mudanças, mas a maioria não se anima com os nomes disponíveis.

Em sua obra "O Antigo Regime e a Revolução", Tocqueville ensina que "não é indo sempre de mal a pior que se cai numa revolução": a população suporta pacientemente todos os infortúnios quando não enxerga uma saída para superá-los. Para que sobrevenha uma mudança, acrescenta Jean Jaurès, é preciso que as classes majoritárias sintam um terrível mal-estar, mas é preciso também que elas "tenham um princípio de força e, por conseguinte, de esperança".

Que esperança ofereciam os oposicionistas vitoriosos? Em 1989, com uma inflação de 1.973% ao ano, venceu a alternativa de direita: o caçador de marajás prometia reduzir o papel do Estado na economia para conter os preços. Em 2002, com um desemprego de 10% ao ano, venceu a alternativa de esquerda: o líder operário prometia ampliar o papel do Estado na economia para criar 10 milhões de empregos. O que propõe a oposição em 2014?

Acena aos empresários com a retomada da política econômica de FHC para reduzir uma inflação de 6,5% ao ano. Mas essa promessa só terá êxito se houver uma recessão no meio do caminho. Por isso, quando se dirigem às massas, os candidatos não propõem nada.

Sem esperança, o eleitor que abandonou Dilma após os protestos de junho segue indeciso. Em março de 2013 a petista reunia 58% das intenções –hoje tem 36%. Em março de 2013, Aécio, Campos e Marina somavam 32%; agora os três, com o reforço do Pastor Everaldo, têm 31%. Dilma perdeu 31 milhões de votos; a oposição não ganhou nenhum.

Mas crê que herdará os desiludidos, porque estes não têm opção. Não é bem assim. FHC foi reeleito em 1998 com o país crescendo 0,04% ao ano, pagando juros de 49,75% e à beira do colapso cambial porque a população temia que uma mudança piorasse ainda mais as coisas. O eleitor prefere o conhecido ao desconhecido: mudar, só em último caso.

sábado, 9 de agosto de 2014

CREU




Queridos amigos, estamos aqui reunidos para mais uma sessão do CREU – Clube dos Reacionários Enrustidos Unidos.

Com vocês o depoimento de nosso novo membro, Sr. Olavo.

Oi enrustidos.

- Oi Olavo (todos).

Sim, eu assumo, sou um reacionário enrustido.

Depois de muito tempo tentando ter respostas politicamente corretas, buscar ter um comportamento moderno e progressista, quero me assumir e sair do armário.

Foi difícil reconhecer, mas, tenho me sentido muito melhor depois que resolvi enfrentar essa condição, sem disfarces.

Comecei a ser um reacionário enrustido, ainda muito jovem. Andava de jeans, mas curtia roupas de mauricinho até para ir ao cinema. Odiava chamar a Revolução de 64 de Golpe Militar.

Escondia de todos o quanto os discursos de Bush (o pai) me fascinavam.

Tentava resistir, mas tinha verdadeira adoração por tudo que fosse norte-americano.

Wel tentei afogar aquele sentimento reacionário usando camisetas estampadas do Tche e do Mao, embora preferisse do Homem Aranha. Arranjei uma namorada rebelde pra ver se conseguia mudar o meu destino. Muito louca e esquisita como todas essas esquerdinhas, ela me falava em sexo livre, quando eu só pensava em me casar e ser seu dono.

Meus pesadelos, entretanto, começaram mesmo na faculdade.

Aqueles jovens todos, falando em uma sociedade mais justa (choro)... Aquelas leituras do “Capital” Oh céus, até em passeata de protesto com camiseta da CUT eu participei. (silêncio impactante na platéia).

Aquilo me doía demais, sabe? Meu desejo era gritar que queria ter nascido nos Estados Unidos ou na França. Que amava ler as Seleções “Reader’s Digest” e que odiava pobre.

Não que eu seja uma pessoa má. Não. Adoro dar uma esmolinha aqui e outra ali, comprar rifa de chá beneficente, sempre tive bom coração. Mas odeio pobre metido a besta e eles sempre são bestas quando esquecem seu nível inferior!

Mas, não podia fazer isso. Perderia a namorada rebelde que apesar de maluquinha era muito gostosa e eu queria que fosse minha. Seria olhado com desprezo no centro acadêmico e seria chamado de reaça.

Por isso, lia a Veja todas as semanas, escondido na solidão do meu quarto.

Nunca perdi uma só “Manhatan Conection”.

Sempre busquei apoio nas palavras de meus ídolos: Paulo Francis, Bóris Casoi, Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro, e oh! Arnaldo Jabour...

Vibrei com a eleição de FHC e chorei de emoção quando foi reeleito.

Mas, eu disfarçava bem.

Dizia que já tinha votado no PT e agora estava decepcionado e isso me encorajava a criticar esse partido de pobre.

(longo silêncio)

Hoje faço parte do CREU, com muito orgulho.

O CREU tem me ajudado a sair do armário e isso me faz muito bem.

É maravilhoso poder ser um reacionário assumido, podendo falar que odeia o Bolsa Família e todas as bolsas que beneficiam a gentalha.

Que delícia poder fazer piada de pobre em aeroporto, pobre dirigindo carro, pobre falando errado.

Estou assumindo minha postura política e isso só me faz bem.

Mas... não posso me iludir.

Ainda tenho recaídas.

Dia desses, no grupinho de colegas de trabalho o assunto descambou para as relações homo afetivas.

Não tive coragem de assumir que odeio essas bichas todas e menti... Sim, eu menti, que respeito às opções de todos.

(choro compulsivo acompanhado pela plateia)


Prof. Péricles

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

NA RÚSSIA, AMEAÇAS NÃO EXISTEM




O ocidente, apesar de tudo, parece que ainda não conhece a Rússia.

Na cultura russa as crianças aprendem que nunca se ameaça um adversário ou inimigo.

O menino é severamente advertido pelo pai se é visto ameaçando outros meninos naquelas brigas de rua ou na escola, com atitudes do tipo “vou isso ou vou aquilo”.

Não ameace, apenas faça se acha que deve e que pode, diz papai russo.

Pois os Estados Unidos e sua cachorrinha amestrada, a União Européia, parece que não sabem disso.

Por semanas anunciaram que iriam boicotar os negócios russos no ocidente, em retaliação ao apoio do Kremlin aos separatistas do leste da Ucrânia e por sua “interferência” na Criméia.

Vamos fazer e acontecer anunciaram Obama, presidentes e ministros das relações exteriores dos países satélites.

O governo da Rússia manteve silêncio, apenas informando que o país se sentiria no direito de responder a qualquer tipo de retaliação contra ela. E mais nada falou.

Pois no início da semana, primeiro a União Européia e posteriormente os Estados Unidos (sempre jogada ensaiada) anunciaram sanções fortes contra a Rússia por um período de de três meses. Essas sanções, basicamente, concentraram-se nos setores armamentistas (não importação de equipamentos russos) e suspensão da venda de alimentos e produtos agrícolas da União Europeia e dos EUA para aquele país, além de impedir bancos russos de uma série de transações financeiras.

Ontem, o governo de Vladimir Putin anunciou sua resposta, com medidas duríssimas que valerão não por 3, mas por 12 meses.

Entre essas medidas estão a proibição do uso do espaço aéreo da Rússia para aviões comerciais da Europa que fazem linhas para a Ásia (o que irá encarecer um bocado os transportes aéreos desses países) e a suspensão da venda de gás para antigos parceiros do ocidente. Além disso,o Ministro da Agricultura da Rússia, Nikolai Fyodorov, anunciou a suspensão da importação de matérias-primas de países que decidiram sancionar o país por causa do conflito no leste da Ucrânia e que está abrindo novas parcerias com os países que não votaram por sanções contra eles.

As medidas atingem Estados Unidos, União Européia, Canadá, Austrália e Noruega.

Entre os mais gravemente afetados estão a Espanha, a Grécia, a Itália e a França.

Entre os maiores beneficiados está, o Brasil. Para nossa economia os benefícios podem ser imensos.


O secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Seneri Paludo da Rússia disse à agência de notícias russa Interfax, que a situação pode representar uma “revolução” para a indústria brasileira, comparável à que a China provocou na última década.

Só na área da carne de frangos a estimativa gira num aumento em torno de 150 mil toneladas, o que acrescentaria US$ 300 milhões de receitas à balança comercial.

Silenciosamente, Putin está dizendo ao ocidente que os tempos são outros e que quem tem mais a perder agora é a economia dos Estados Unidos e aliados e não a dos BRICS. Lembra que, os governos da União Européia, ao persistirem numa política de vergonhosa adesão a tudo que é proposto pelos Estados Unidos, assumem riscos que podem ser fatais aos seus próprios interesses.

E, enquanto a mídia ocidental canta de galo, diz que faz e acontece, na Rússia, não se ameaça, simplesmente se faz.


Prof. Péricles


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

DIÁLOGO EM SEGREDO




Cena urbana da pequena cidade gaúcha de Segredo.

Duas “segredinas” ou seria “segredenses” ou “secretas”? Bem, não importa, duas amigas moradoras de Segredo se encontram na fila do supermercado da cidade e estabelecem o seguinte diálogo:

- Menina, tu não imagina o que eu vi ontem, aqui mesmo nesse supermercado...
(silêncio estratégico). Sei que tu vai dizer que é invencionice minha, fofoca, mas juro que é verdade. (novo silêncio)

A “menina” não resiste por muito tempo à curiosidade.

- Conta logo Dalva, o que tu viste aqui mesmo nesse supermercado de tão extraordinário?

- Não sei se te conto Carmem. Lembro bem do dia que me chamou de fofoqueira... conto ou não conto?

- Grrrrr

- Ta bem vou contar, mas sei que não vai me acreditar...

- Pelo amor de Deus Dalva, desembucha. Viu o Leonardo di Caprio?

- Não.

- Viu um ET?

- Não.

- Então um fantasma?

- Também não.

- o Lelo, aquele desalmado que...
- Não, não.

- Então o que foi que tu viu mulher?

- Carmem (cara de grande revelação), eu vi, aqui mesmo, nesse supermercado, um... um médico!

Não só a Carmem mas as duas outras pessoas da fila fitaram Dalva com incredulidade.

- Um médico? (risos)

- Não disse que tu não irias acreditar. Francamente...

- Desculpa querida, é que foi muito engraçado, não sei como tens tanta imaginação pra...

-Não é imaginação, eu vi mesmo!! (aos gritos)

Silêncio.

- Amiga, queres que eu acredite que tinha aqui, nesse supermercado, na nossa Segredo, um médico? Médico, de verdade, médico?

- Sim... e falava espanhol e...

- Falava? Ele falava?

- Sim, Carmem, e falou comigo e...

- rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs

Se tu rir de mim de novo eu vou começar a gritar e dizer o que o Lelo fez e...

- Ok. Stop. Não vou rir. Mas não queira que eu acredite numa mentira dessas!

- Olha aqui sua descrente, não é mentira, nem fofoca. Ele faz parte daquele programa do governo, como é mesmo... “Mais Médicos”.

- Sério? Bem que me disseram que eles olham pra gente na consulta. Mas eu não acreditei...

- Mas, é verdade menina, pura verdade. Eu vi, ele estava aqui e... madre de dios!

- O que foi mulher?

- Ele esta vindo pra cá?

- Ele quem, o Lelo?

- Não, o médico que fala, e olha pra gente...

Onde... onde?

Até bem pouco tempo, a população brasileira nos rincões mais escondidos e distantes, conhecia bem pouco de atendimento médico.

Simplesmente, quase não havia médicos que aceitassem trabalhar em lugares tão distantes dos centros urbanos. Isso exigiria, entre outras coisas, exclusividade na atenção à população dos lugarejos e distanciamento de outras fontes de trabalho.

As políticas públicas de saúde resumiam-se ao atendimento das emergências nos centros regionais ou no encaminhamento a Porto Alegre através da ironicamente denominada “ambulanciaterapia”.

Ser atendida por um médico era coisa de cidade grande, tanto que uma simples consulta levava a uma preparação quase ritualística. Dias antes de um atendimento as pessoas já escolhiam a roupa com que deveriam comparecer aquele evento importante, e preocupavam-se que o que dizer ao médico na tão esperada oportunidade.

Geralmente, essa preparação meticulosa era dissolvida por um atendimento sumário e massificado onde se perdia a identidade e se tornava estatística.

Uma atenção maior do que um olhar profissional, era quase inimaginável.

Talvez, o maior mérito do “Mais Médicos” nem seja apenas o atendimento ambulatorial aos que dele precisam, mas, o atendimento da necessidade de se sentir cidadão pleno onde a saúde não é privilégio, nem favor, mas um direito da cidadania.

Podemos mensurar tudo isso na queda dos atendimentos nas emergências dos hospitais que atendem essas regiões.

Não apenas a emergência médica, mas, principalmente a urgência humana está sendo atendida.

Médicos compram em supermercados, lembram nomes e preocupam-se com pacientes... e falam.


Prof. Péricles
Agradecimento especial aos colegas Clarice e Eduardo, testemunhas oculares dessa história e inspiradores do diálogo fictício.



domingo, 3 de agosto de 2014

ANTROPOCENTRISMO


A maioria das coisas que sabemos sobre os deuses da mitologia grega, chegou até nós escritas pelo poeta Hesíodo, que viveu em algum momento entre 700 e 600 anos antes de Cristo.

Para Hesíodo em primeiro lugar houve o caos, que é o caos, mas é alguma coisa, ou seja, mais do que o nada.

Em seu livro, Hesíodo nos diz que no princípio havia Gaia (a Terra) e a noite (a escuridão). Noite, aliás, é uma palavra que em todos os idiomas começa com “N” que representa infinito, seguida da palavra “oito” que, deitado, também simboliza o infinito.

Havia também o Tártaro (inferno), Eros (o desejo) e Érebo (a escuridão do inferno).

Urano, filho de Gaia, reinava sobre o caos.

Durante seu reinado ante o infinito, surgem as montanhas, os mares, o éter e o dia.

Urano foi destronado por seu filho, Cronos, a divindade do tempo.

Cronos inaugura um novo tempo. Os titãs (que eram poucos e se dividiam entre entidades femininas e masculinas) e novos deuses iniciam o povoamento da Terra.

Foi uma espécie de vale tudo em que não havia a monogamia e a variação de parceiros era fundamental para a própria existência.
Cronos se casou com sua irmã Reia e deu origem à linhagem que mais tarde ocuparia o monte Olimpo. Hipérion, um dos titãs, foi pai de Hélio, deus do Sol, e Eros da aurora. A geração dos filhos dos titãs permeia toda a mitologia futura.

Zeus, filho de Cronos, tal como ele mesmo, Cronos, fizera a seu pai, destrona o progenitor e inaugura uma nova era divina.

O novo soberano, ao lado de seus irmãos Posêidon, Hera, Hades, Héstia e Deméter, teve seu poder desafiado pelos titãs, liderados por Cronos numa batalha que hoje se conhece como Guerra Cósmica ou Titanomaquia.

Para vencer os poderosos titãs e seu pai, Zeus libertou os ciclopes, que viviam no Submundo desde os tempos em que foram exilados por Urano. Eles eram excelentes ferreiros e criaram armas mágicas para os deuses. Zeus ganhou os raios do céu, Posêidon, um tridente com o qual podia provocar tempestades e terremotos e armas forjadas para cada deus.

Um dos líderes dos titãs era Atlas.

Nascido de um titã e uma ninfa, Atlas governava Atlântida. Os deuses decidiram puni-lo e acabar com toda sua raça. Enviaram uma inundação e a ilha foi varrida do mapa, mas ele continuou lutando. Quando afinal os titãs foram derrotados, os deuses fizeram Atlas carregar o céu para sempre.

Portanto, assim como outros povos, notadamente os autores do Antigo Testamento, os gregos definiam a criação a partir do caos, e o surgimento do homem muito posterior à definição da existência, traçada por forças inteligentes da natureza, indefiníveis.

Como o homem não suporta o indefinível e, como fazem as crianças, criam definições onde lhe falta a compreensão, os gregos explicaram a ordem possível do impossível, com a elaboração de divindades, que, apesar de indecifráveis mantém alguma aparência humana.

A grande contribuição da cultura helênica está no seu antropocentrismo.

Estando o homem no centro de todas as explicações, e sendo a medida para mensurar todas as coisas, ao contrário dos hebreus que teorizaram um Deus perfeito e uma raça humana eternamente pecadora, para os gregos os deuses são falhos, cometem erros, são orgulhosos e tudo aquilo que nos caracteriza como criaturas pensantes e falíveis.

Já, o homem, mesmo com todas as suas fraquezas, mantém as características dos deuses.

Ao contrário do divino explicar as emoções e os medos humanos, o humano, seus limites e emoções, explicam o divino.

De certa forma, deuses e heróis são o próprio homem imaginado na condição de criador, algo que o homem sempre quis ser, e jamais conseguiu, pois tudo o que faz é transformar o já existente.

Ódio, ciúmes, vingança, desejo, elevados a infinita potenciação.

A infidelidade compulsiva de Zeus, o orgulho de Apolo, a vaidade de Afrodite, os ciúmes de Hera, o rancor de Ares, toda a condição humana está exposta no panteão do Olimpo e nos seus heróis, semi-heróis e coadjuvantes.

Dessa forma, quando entramos no mundo dos mitos da Grécia, devemos ter em mente que estamos trilhando, não o caminho do macro cosmos que irá nos trazer as descobertas da vida, mas, no micro cosmos que nos trás a descoberta de nós mesmos.

Não estamos trilhando caminho nas estrelas, mas apenas caminhando em nossa própria condição humana.


Prof. Péricles

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O ENCONTRO



Por Luiz Fernando Veríssimo

Os peixinhos nadavam por entre as nossas pernas. Estávamos no mar em frente à casa do José Paulo e da Maria Lecticia Cavalcanti, Praia do Toquinho, Lagoa Azul, Pernambuco, Brasil, América do Sul, Terra, Via Láctea, Universo, com água pela cintura.

Quem éramos nós? Millôr e Cora, Gravatá, Lucia, eu e peixinhos anônimos. Zé Paulinho e Maria Lecticia tinham providenciado tudo para que o prazer dos seus hóspedes fosse completo: sol decididamente pernambucano, céu e mar de um azul irretocável, uma mesa flutuante com guarda-sol em cima coberta de coisinhas para comer e bebidinhas para beber.

A um sinal do Zé Paulinho vinham mais camarão, mais marisco, mais caipirinha, mais pássaros, menos pássaros, mais brisa, menos brisa – e de repente, descendo na nossa direção pela praia como uma aparição, um convidado convocado pelos Cavalcanti para que o dia fosse mais que perfeito: o Ariano Suassuna. De calção de banho !

Ele entrou no mar, e os peixinhos continuaram nadando entre as nossas pernas, sem nenhuma curiosidade intelectual. Eles só estavam ali para pegar os restos da mesa flutuante, alheios ao grande momento, como se um encontro de Millôr Fernandes e Ariano Suassuna com água pela cintura acontecesse todos os dias.

Nós, ao contrário dos peixinhos, nos encharcávamos do momento. Eu, chupando um picolé de mangaba – eu mencionei que também havia picolés de mangaba? –, finalmente descobria o sentido da palavra “embasbacado”.

Depois do encontro no mar, um almoço magnífico –, não fosse comandado pela dona Maria Lecticia. E o dia mais que perfeito terminou com uma visita a um terreno próximo onde o Zé Paulinho criava bodes. Nosso anfitrião queria nos mostrar um animal que importara da África do Sul e que, de tão antipático e posudo, recebera do Suassuna o apelido de “Somebode”.

Uma aula do Suassuna era um show, um show do Suassuna era uma aula.

Além de produzir ele mesmo boa parte da cultura contemporânea da sua terra, Suassuna conhecia como ninguém a história (e as histórias), as artes e as tradições do Nordeste, esse outro mundo dentro do Brasil, e lutava para mantê-las vivas.

Tinha uma memória fantástica, poemas enormes decorados inteiros para qualquer ocasião, e era notável sua capacidade de, aparentemente, se perder em digressões quando falava sobre determinado assunto, a ponto de criar uma expectativa nervosa na plateia – será que ele volta para o assunto ou não volta? –, e retomar o que estava dizendo do ponto exato da digressão, para alívio geral.

O Brasil perdeu um tesouro.