quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O LOUCO DO ORELHÃO


Ele falava alto, e gesticulava. E sorria também. Mais que isso, gargalhava.

Chamava atenção sua aparência.

Calça de brim esfarrapada e muito suja. Blusa marrom, também muito suja e algo que um dia foi um casaco por cima da blusa.
Um autêntico morador de rua. E falava alegremente ao telefone, soltando gargalhadas contagiando os passantes.

O que mais chamava a atenção, no entanto, era que sua mão, distraidamente, repousava sobre o gancho do “orelhão” (aqui, em Porto Alegre são chamados assim os telefones públicos).

Isso mostrava que, na verdade, ele não falava com ninguém. Ou, pelo menos, com ninguém naquela ligação telefônica.

Das coisas que dizia, uma expressão era muito repetida: “eu vou voltar, eu vou voltar, prometo”.

Todos continuaram seus caminhos, mas, muitos levaram dali inquietantes indagações.

Com quem ele pensava estar falando? Onde seria a outra extensão da ligação?

Para onde voltar?

Por que voltar lhe fazia rir e, se isso era tão bom, a quanto tempo estava fora?

Louco, resmungou uma senhora.

Na verdade, muitas vezes em nossas vidas repetimos, de outras formas, o gesto do louco do orelhão.

Muitas vezes nos iludimos que somos ouvidos.

Ansiamos que nossa voz impregnada de nossas crenças e experiências chegue até alguém que realmente se importe com nossos valores e nossas verdades.

Tudo aquilo em que acreditamos carrega um pouco de nós e quando somos ouvidos, de certa forma, somos acolhidos.

Nessa vida louca e bandida lutamos pra manter nossa lucidez, mas não são poucas as vezes em que enlouquecemos e sentimos vontade de pegar um “orelhão” imaginário, fazer uma ligação sem retorno, e aos berros e risos, prometer que vamos voltar.

Prometer, não exatamente para alguém, mas, para nós mesmos.

Ou mesmo gritar com todas as forças, “Yarburne” uma palavra árabe intraduzível para o português que significa a esperança que se tem de morrer antes da pessoa amada, porque seria incapaz de prosseguir vivendo sem ela.

Para a geração que ousou botar o pé na estrada levando na bagagem a proposta de paz e amor e que acreditou na possibilidade de criar um mundo melhor, mais justo e fraterno a opção foi cruel: voltar ao ponto de partida, adulto e sem seus sonhos ou permanecer com eles sem poder voltar. Nesse caso, a loucura sempre será o melhor refúgio.

Para a geração de loucos brasileiros que teve a coragem de lutar contra o fascismo em nome da liberdade, muitos dos caminhos não tiveram fim e a família de muitos ainda espera sua volta ou, ao menos, uma ligação de algum lugar, de um ponto sem linha ou de um túmulo sem lápide.

Nem sempre retornamos a tempo. Nem sempre alguém nos espera. Muitas vezes ninguém atende nossa ligação e nossa mão, desligando ou não a conexão, não faz a menor diferença.

“Vou voltar sim, me espera que estou chegando!”, gritamos e rimos de nós mesmos.

“Eu viajei nas noites sem estrelas, escalei viadutos, gritei mais alto que as buzinas e me perdi nas curvas urbanas. Me perdi, me perderam, mas me achei, e estou de volta.”

“Vou voltar sim, me espera que estou chegando!”

Prof. péricles

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