segunda-feira, 22 de setembro de 2014

MAUS MODOS



Por Luis Fernando Veríssimo


Se fossem os índios que tivessem desembarcado em Portugal e ficado, pode-se imaginar o que estaria acontecendo por lá hoje, 500 anos depois. A irritação dos portugueses com os visitantes teria chegado ao máximo, e ninguém disfarçaria seu descontentamento. “Mas esses gajos não vão embora?” Passados 500 anos, e não havendo mais dúvidas de que os visitantes não eram turistas, só a boa educação explicaria que a visita se prolongasse sem protestos, sem nenhuma indireta.

Foi a boa educação dos nativos daqui que permitiu aos portugueses e outros europeus se estabelecerem no Brasil. Houve revoltas esparsas, é verdade, mas foram exceções. Em geral, os índios foram amáveis com os visitantes. Gostaram dos brancos e até comeram alguns, no que podem ser descritas como provas de afeição extrema. É possível que a tolerância com os “descobridores” se devesse a, mais do que bons modos, um mal-entendido. Haveria a expectativa entre os nativos de que os portugueses cedo ou tarde iriam embora. Quem fica na terra dos outros durante tanto tempo sem ser convidado?

O mal-entendido e os bons modos atravessaram a história da conquista do Novo Mundo, que só era novo para os conquistadores, pois estava aqui, e habitado, há séculos. Roubo, genocídio, catequese forçada, tudo teria sido tolerado com o pressuposto de que era temporário. Afinal, por pior que uma visita se comporte em sua casa, existem os deveres da hospitalidade. Vá que a visita se sinta ofendida por alguma reação impensada e decida ficar ainda mais tempo.

Finalmente, 500 e tantos anos depois, não parece haver mais dúvida de que não era apenas uma visita e os invasores não eram turistas. Acabou o mal-entendido e acabaram os bons modos. A nova insubmissão às mentiras da História oficial é uma insubmissão a todas as versões oficiais de todas as histórias de subjugação e exploração neste lado do mundo e serve como padrão para a revolta contra qualquer tipo de “bullshit”, ou bosta de touro, vigente, como a da nossa velha e conveniente cordialidade e nossa harmonia racial.

Negros brasileiros – para pegar apenas um exemplo de maus modos – se revoltam contra antigos estereótipos, levantam a voz contra uma história decididamente malcontada e pedem justiça mesmo que tardia.

Já os índios, se pudessem, proporiam aos portugueses devolver os espelhinhos e as miçangas e receber de volta o Brasil. Mas isso seria, literalmente, pedir demais.


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