Talvez seja difícil para alguns comentar sobre seus sonhos.
Para outros pode até parecer os sonhos desapareceram com a idade ou diante das preocupações de cada dia.
Alguns, até mesmo, evitam assumi-los ou reconhecê-los.
Difícil é acreditar em alguém que não os tenha.
Do que afinal são feitos os sonhos? Ou melhor, de que matéria são feitos?
O extraordinário William Shakespeare escreveu em 1611, na sua última peça, injustamente menos conhecida, “A Tempestade”, que “somos feitos da matéria dos sonhos”.
Foi assim...
Um poderoso duque de Milão, chamado Próspero, é derrubado do poder num golpe sórdido e covarde liderado por seu irmão Antônio e outros traidores.
Ele e sua pequena filha, chamada Miranda, são colocados num barco sem remos e abandonados à deriva, numa triste noite sem luar.
Mas, pai e filha sobrevivem e chegam a uma ilha completamente desabitada, onde vivem apenas espíritos, isso é, individualidades desencarnadas.
Próspero conhece, entre outros, o espírito Ariel, bom e pacífico, e também Caliban, uma entidade rebelde, vingativa e inquieta. Descobre que tem habilidade para compreender os espíritos e passa a se dedicar a mantê-los sobre suas ordens e influência.
Muitos anos depois ele acredita que chegou a hora da vingança. Provoca, com a interferência dos espíritos, um naufrágio, fazendo com que Antônio, o irmão traidor, Ferdinando, filho do Rei de Nápoles, um dos golpistas que lhe derrubaram, e alguns outros amigos e inimigos chegassem à sua ilha, fragilizados, na condição de náufragos.
Só que as coisas começam a mudar quando Miranda, a filha de Próspero, que desconhecia completamente o passado de seu pai, encontra Ferdinando, e ambos se apaixonam perdidamente.
Entre a vingança e a felicidade da filha, Próspero abandona seus planos, liberta os espíritos e retorna ao convívio dos homens.
No Ato IV, cena I, Shakespeare escreve:
“Criai ânimo, senhor; nossos festejos terminaram. Como vos preveni, eram espíritos todos esses atores; dissiparam-se no ar, sim, no ar impalpável. E tal como o grosseiro substrato desta vista, as torres que se elevam para as nuvens, os palácios altivos, as igrejas majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que contém, hão de sumir-se, como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Somos feitos da matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”.
Se nós somos feitos da matéria dos sonhos e somos nós aqueles que sonham estes sonhos, tão importante quanto o que eles nos dizem é saber de que parte de nós eles são feitos.
De que parte de Próspero eram feitos seus sonhos? Cravejados de vingança, não sobreviveram ao amor da própria filha. De ódio, certamente, não era.
E você, que lê esse texto? Quais são seus sonhos?
Onde eles sintonizam e qual seu verdadeiro lugar?
Do que afinal, são feitos seus sonhos?
Prof. Péricles
Fonte:
Cadernos de Psicanálise (Rio de Janeiro)
Neyza Prochet
A Tempestade
Willian Shakespeare
L&PM, 2002
Tradução Beatriz Viégas Faria
Neyza Prochet
A Tempestade
Willian Shakespeare
L&PM, 2002
Tradução Beatriz Viégas Faria