domingo, 6 de outubro de 2013

PT, POR ONDE ANDAS?


A transição é uma etapa fundamental em qualquer processo. É mais do que apenas passagem. É uma transformação, uma intermediação. Através dela teremos algo novo, mas esse algo novo carrega consigo parte do que já foi. Num sincretismo entre duas situações que trazem a uma terceira.

A adolescência, por exemplo, é uma transição da infância para a idade adulta. É a fase mais rica do ser humano no sentido de fazer suas definições. O adulto que resultará após essa transição da adolescência será alguém novo, mas não estranho à criança que o precedeu.

Muitas vezes as pessoas se confundem e tomam a transição pelo definitivo. Dessa forma poderemos ter adultos que jamais abandonam a adolescência pois se acreditam completos.

O PT – Partido dos Trabalhadores, surgiu na década de 80, fruto das greves do ABC paulista, ainda na fase de abertura da Ditadura Militar. Quando surgiu, o PT era a maior novidade no quadro político brasileiro em mais de 50 anos, pois se pretendia de esquerda sem ser identificado com o trabalhismo, historicamente ligado ao sindicalismo, nem com os partidos ou ideais marxistas. Dizia-se a nova esquerda.

Por muito tempo fulgurou como oposição ao antigo, a nova estrela e o resgate das esperanças soterradas pela queda do muro de Berlim.

Os cenários do teatro político, porém, se alteram, e o PT varou os tempos de oposição ao conservadorismo dos apoiadores da ditadura, cruzou as águas da Constituinte, se colocou como contraponto ao neoliberalismo, e, finalmente, chegou ao poder.

Poucos perceberam que o PT deveria ser uma transição, uma passagem da rebeldia para o amadurecimento político onde deveria dar o lugar a um novo partido de esquerda que unisse todas as aspirações e sonhos de um Brasil novo e realmente popular.

Embriagado pelo poder, o PT se esqueceu de ser transição para se tornar o definitivo. Com uma pitada de autoritarismo aqui, uma porção de personalismo por lá, recriou a receita do “daqui não saio, daqui ninguém me tira”.

Em nome do imponderável conceito de “governabilidade” fez alianças com a direita mais arcaica e com os setores mais conservadores, distribuindo favores, partilhando ministérios, como se sua pureza fosse impermeável e inatingível.

O PT é hoje governo, junto com aliados que foram, mais do que combatidos, desprezados e humilhados por ele mesmo, o PT, num passado muito recente. Tomam cafezinhos juntos, no barzinho do Planalto, coronéis e jagunços, junto com torturadores e torturados.

É contra CPIs, instrumento político que mais defendeu em sua existência. Perde constantemente militantes que continuam idealistas e está envolvido com seus parceiros políticos naquilo que mais denunciava, a corrupção.

Dessa forma, negando-se ao seu papel histórico de transição tomou o espaço que deveria caber a um partido de esquerda mais moderno e coeso, que continuasse as lutas erguendo as bandeiras históricas da construção de uma sociedade mais justa, mais fraterna e igualitária.

Hoje, não é mais um partido de esquerda, e sim, de centro-esquerda. Não é um partido revolucionário, mas reformista. Não é mais popular, mas, populista.

Ainda representa a melhor resposta eleitoral para barrar os projetos da direita, especialmente ao neoliberalismo, mas precisa entender que vitória eleitoral não é tudo e que política não se faz apenas nos corredores e nos conchavos, mas, onde, um dia ele foi rei, nas ruas, nos bares, na comunidade.

A maior vitória do PT será se entender uma transição e permitir que um novo estágio na busca das utopias (ao invés de se entender como a própria utopia), se consolide.

Seu maior tesouro, a militância diferenciada e que ganhava eleições no grito e no entusiasmo, desapareceu e foi desaparecida pelo próprio partido, cada vez mais, parecido com os partidos mais tradicionais do Brasil.

Agora com a privatização silenciosa de nosso petróleo que ocorre com os leilões do Poço de Libra, arrisca perder o último brilho de sua estrela e a dignidade de seu passado.

Prof. Péricles

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

PEPE MUJICA


Trechos do discurso do Presidente do Uruguai José Alberto Mujica Cordano, conhecido popularmente como Pepe Mujica, na Assembléia Geral da ONU.

Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.

Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.

Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.

Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.

Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.

Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.

Carrego o dever de lutar por pátria para todos.

Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até auto-exclusão.

Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.

Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.

A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.

O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.

Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.

Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…

Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.

A cobiça, tão negativa e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época enosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente,essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar aciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismonebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história,e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.

Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.

Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra.

O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.

Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.


sábado, 28 de setembro de 2013

DEMONHÃO E FOGUINHO


Ele era do signo de Libra. Hiperativo. Inteligente, criativo e carismático.

Um dos poucos que se divertiu com a fuga vexatória da família real portuguesa para o Brasil. Afinal, tinha apenas 10 anos quando participou daquela louca viagem.

Adorava esportes. Jogava tênis e era fã inveterado da prática de exercícios, corrida e levantamento de peso.

Casou duas vezes e teve, pelo menos, 17 amantes conhecidas.

Teve 13 filhos reconhecidos, cinco naturais e um número de filhos bastardos, que para alguns ultrapassa as duas dezenas.

Sua amante preferida foi Domitila de Castro, a marquesa de Santos, com a qual teve cinco filhos (e outro com a irmã dela).

Escreveu inúmeras cartas apaixonadas e de sacanagens onde se pode ler, por exemplo, “Forte gosto foi o de ontem à noite que nós tivemos. Ainda me parece que estou na obra. Que prazer! Que consolação!".

Sua voracidade, aparentemente inquebrantável pode ser testemunhado com frases do tipo “Ontem mesmo fiz amor de matrimônio para hoje, se mecê estiver melhor e com disposição, fazer o nosso amor por devoção".

O historiador Alberto Rangel, morto em 1945, descobriu mais de 200 cartas e bilhetes entre Demonhão (D. Pedro) e Fogo Foguinho (Domitila), que estavam na posse dela, que desobedecendo as instruções do Demonhão, não as queimou e das quais se podem extrair pérolas como as citadas acima.

Músico talentoso é autor do Hino Nacional de Portugal e do Hino da Independência do Brasil.

Tinha 23 anos quando proclamou a independência.

D. Pedro I foi um dos mais inteligentes e carismáticos governadores do Brasil, país que governou na qualidade de seu primeiro imperador entre 1822 e 1831.

Seu governo, entretanto, foi repleto de crises.

Além da crise econômica e fiscal de um país recém nascido, cuja economia havia sido dilapidada por três séculos de exploração colonial, Demonhão, ou melhor, D. Pedro acrescentou crises políticas desnecessárias advindas de seu víeis autoritário.

Fechou a Assembléia Constituinte em 1823 e impôs uma Constituição arbitrária (a de 1824) que criava um quarto poder apenas para lhe dar amplos poderes sobre os outros três.

No uso do Poder Moderador desenvolveu uma guerra impopular (a Guerra da Cisplatina), exigiu a execução de um líder revolucionário extremamente popular (Frei Caneca) e se envolveu de corpo e alma num assunto particular alheio ao Brasil, a sucessão ao trono de Portugal após a morte de seu pai D. João VI.

Finalmente, isolado pelos políticos brasileiros enfrentou as suspeitas sobre o assassinato de um inimigo na imprensa, Líbero Badaró.

Sem apoios, renunciou em 7 de abril de 1831, impopular e pálida lembrança dos anos em que fora mania nacional, admirado e invejado por todos.

Três anos depois da abdicação, faltando três semanas para completar 36 anos, morreu de tuberculose, em Portugal.

Foi um bólido, um cometa na política internacional e seu estilo de ser e de governar seria imitado por muitos posteriormente.

Já, nos jogos sexuais, e embaixo dos lençóis de marquesas e de escravas, na história do Brasil, talvez nunca ninguém tenha superado, o terrível “demonhão”.

Prof. Péricles


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

GOLPE NO CHILE - 40 ANOS


Por Clóvis Rossi

Ainda havia filetes de sangue nas águas rasas do Mapocho, o riozinho que corta Santiago, quando cheguei ao Chile para cobrir o golpe que derrubou o presidente constitucional Salvador Allende Gossens.

Era 21 de setembro de 1973, porque, nos dez dias desde que foi dado o golpe, o Chile ficara fechado por terra, mar e ar para que os militares pudessem provocar o derramamento de sangue que manchou o Mapocho e espalhou-se por todo o Chile, "desde el salar, ardiente y mineral/al bosque austral", como diz a canção "El pueblo unido jamás será vencido" que o grupo folclórico Quilapayún cantava nos tempos em que o sangue ainda não corria.

Deu tempo também de ver ao vivo o que se tornaria uma foto que ficou famosa no mundo inteiro: a queima de livros que trazia à memória o nazismo alemão.

Via-se então que não apenas o passo de ganso característico dos militares chilenos os aproximava de seus congêneres de outros tempos na Alemanha.

Tornou-se obrigatório deixar um pouco de lado o profissionalismo para oferecer-me como muleta (inútil, logo se veria) a pais de brasileiros exilados no Chile e desaparecidos desde o golpe.

Acompanhava-os ao Estádio Nacional, transformado em campo de concentração e morte, no que acabava sendo uma tortura adicional à falta de notícias sobre os filhos.

Ninguém dava informações à porta do estádio e, na falta delas, os parentes dos presos trocavam os piores presságios e contavam as mais horríveis histórias, que, ao longo dos anos, acabaram se provando verdadeiras, terrivelmente verdadeiras.

Dizia-se, por exemplo, que o cantor e compositor Victor Jara, que era adepto declarado da Unidade Popular, a coligação que o golpe apeou do poder, tivera os dedos quebrados durante a tortura no estádio, para que nunca mais tocasse as canções que embalavam os sonhos da esquerda no poder.

Jara não morreu no Estádio Nacional de Santiago, mas foi torturado até a morte no Estádio Chile, outro campo de concentração.

É fácil para qualquer ser humano com um dedo de sensibilidade sentir o pavor de pais que, primeiro, haviam perdido seus filhos para o exílio, depois do golpe no Brasil, e agora viam fugir a perspectiva de revê-los ainda que massacrados, mas pelo menos vivos.

Havia toque de recolher, primeiro a partir das 18h. Depois, das 20h. Eu me hospedara no então Hotel Carrera Sheraton, atrás do Palácio de la Moneda em que Allende se matou.

As noites eram intermináveis, trancado no quarto.

Olhava pela janela, via os sinais do ataque da Força Aérea ao palácio, uma sombra na praça vazia.

Ninguém na rua.

O semáforo, no entanto, continuava mudando do verde para o amarelo, para o vermelho, para ninguém, salvo um ou outro veículo militar, enquanto ao longe se ouvia o "ratatá" das metralhadoras, porque, dia após dia, noite após noite, "están matando chilenos/ay que haremos/ay que haremos", como cantavam os Quilapayún.

Ninguém no Chile os ouvia.


CLÓVIS ROSSI é colunista da Folha

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

CRONOLOGIA DE UM ABSURDO


A forma obstinado com que a Aristocracia rural brasileira lutou para manter a escravidão é algo para impressionar qualquer um mais desavisado.

A pressão sobre o governo do Imperador D. Pedro II foi tão forte que este, encurralado, enfrentou até a Inglaterra, grande potência de sua época.

De um jeito ou de outro a força da aristocracia se fez valer, de tal forma, que o Império brasileiro acabou criando leis que vão das que foram feitas para não serem cumpridas até as que provocaram grandes risadas pelo absurdo que representavam.

Vejam como foi a Cronologia de um absurdo:

- 1826: para reconhecer a independência do Brasil, a Inglaterra exige, entre outras coisas, que o Brasil acabe com o tráfico de escravos num prazo máximo de cinco anos. Precisando do reconhecimento inglês, D.Pedro I se compromete atender a exigência.

- 1831: Lei brasileira realmente proíbe o tráfico de escravos, entretanto, é feita com tantos mirabolismos que, na prática, dispensa ser atendida. É a famosa “Lei para inglês ver” que iria entrar para nosso anedotário.

- 1843: Cansada de ser embromada a Inglaterra parte para a retaliação. Todos os produtos brasileiros vendidos na Inglaterra são sobretaxados. A intenção dos ingleses é clara. Para não ter prejuízos financeiros o Brasil deve fazer valer a Lei e acabar com o tráfico de escravos.

- 1844: surpreendentemente o Brasil parte para o confronto. Através da aprovação da Tarifa Alves Branco. Os produtos ingleses vendidos no Brasil perdem as vantagens que possuíam desde os Tratados de Stragford, em 1810.

- 1845: Indignados os ingleses promulgam o bill Aberdeen. Essa estranha Lei se auto permitia atacar qualquer embarcação que transportasse escravos, apreender e liberar a “carga” e levar a tripulação para a Inglaterra sendo submetida a julgamento pelas Leis inglesas. Detalhe importante: a Lei delimita a ação ao hemisfério sul para evitar qualquer conflito com outro país escravagista, os Estados Unidos, do hemisfério norte.

- 1850: fragilizados por inúmeros incidentes e temendo algo que o levasse a uma situação humilhante, o governo brasileiro edita a Lei Eusébio de Queirós, que proíbe o tráfico de escravos para o Brasil. Na verdade essa Lei expressa o que a lei anterior já deveria ter acabado.

- 1863/1865: Os Estados Unidos alteram sua Constituição liberal para tornar extinta, em todos os Estados, a escravidão. O Brasil passa a ser a única grande nação escravagista do ocidente.

- 1870: Após o fim da guerra do Paraguai e o retorno do exército fica evidente a postura favorável a abolição adotada pelos comandantes militares. Os militares anunciam que se recusam a fazer o papel de “capitão do mato” (caçadores de escravos). Além disso, funda-se o Partido Republicano unindo as idéias República-abolição.

- 1871: Em 28 de setembro, depois de discussões intermináveis, é assinada a Lei 2040, também conhecida como Lei Visconde do Rio Branco, ou ainda, Lei do Ventre-Livre. Fica determinado que os filhos de escravos sejam considerados livres, mas mantém os pais na condição de escravos. O proprietário dos pais deverá se responsabilizar pela criança e seu sustento até a idade de 7 anos, e a partir disso, não fala mais nada. É mais uma Lei ridícula, um paliativo para manter a escravidão. Muitas pesquisas demonstram que aumenta a mortalidade infantil visto o descaso dos fazendeiros com os recém-nascidos.

- 1880: é criada a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão reunindo pessoas como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. Vários clubes abolicionistas já existiam no país e lutavam como podiam pela abolição. Uma das maneiras evidentes era juntando recursos para comprar cartas de alforria, outras era auxiliando escravos em fuga. Ocorrem sérias desavenças com denúncias de assassinatos de abolicionistas em várias partes do país.

- 1884/1885: O político brasileiro Souza Dantas defende uma Lei que considere livre todos os escravos a partir de 60 anos. Tal proposta causou indignação entre os escravagistas e após acalorados debates é aprovada a Lei Libero-Badaró que torna livre os escravos a partir dos 65 anos e não 60. A Lei dos Sexagenários será chamada nos jornais de a “Lei da Grande Risada”, por motivos óbvios e que dispensam comentários.

Somente, e tão somente em 1888 é assinada a famigerada “Lei Áurea” que aboliu a escravidão, mas que liberou o Estado de qualquer compromisso para os recém libertos. Uma abolição capenga e incompleta.

A questão da escravidão no Brasil mostra claramente a extensão do poder da Aristocracia rural na política brasileira. Demonstra que o Brasil possuía (e ainda possui) uma das elites mais retrógradas e reacionárias do mundo, capaz de lutar de corpo e alma para manter privilégios até mesmo, ultrapassados.

Talvez, assim se entenda porque é tão difícil discutir, de forma técnica e racional, reforma agrária em nosso país.

Prof. Péricles










segunda-feira, 23 de setembro de 2013

DE OLHOS BEM ABERTOS


Por Jacques Gruman

Pessoas me perguntam sobre esquerda judaica ou judeus de esquerda. Algumas demonstram uma curiosidade legítima, enriquecedora. Perguntam para estabelecer um diálogo, para entender o Outro. Outras, no entanto, usam seu desconhecimento de maneira agressiva. Não perguntam, provocam. Não dialogam, tratam de impor conclusões sem dar chance a uma verdadeira interlocução. No fundo, não estão interessadas em ouvir. Usam a situação de crise recorrente no Oriente Médio para criminalizar todo o povo judeu. Uma artimanha viciosa, responsável por alguns dos mais terríveis banhos de sangue da História. Ignorância nunca deu bom caldo.

Para meus leitores sensíveis, passo algumas informações, que estão longe, muito longe de esgotar o assunto. É difícil entender a História da esquerda e dos movimentos democráticos do século XX sem estudar o papel que nela tiveram importantes segmentos judaicos. A primeira expressão organizada do movimento social-democrata russo foi um partido judaico: o Bund (União dos Operários Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia), formado em 1897. Foi, até 1905, a maior organização operária da Rússia. Entre os delegados que fundaram o Partido Operário Social-Democrata Russo, mais tarde Partido Comunista, vários eram do Bund.

Incontáveis militantes e teóricos bolcheviques vieram dos shteitlach, pequenas aldeias da Europa Oriental, quase sempre com população majoritariamente judaica. Breve e triste parênteses: apesar desse protagonismo, os comunistas judeus da URSS não escaparam dos assassinatos stalinistas, entre os quais ficou tristemente célebre o Processo dos Médicos, nos anos 50. Durante a Segunda Guerra Mundial, com o massacre sistemático nos guetos e campos de extermínio, muitos judeus engajaram-se em destacamentos guerrilheiros, os partisans, lutando bravamente contra o nazifascismo. Uma história gloriosa, que o stalinismo tentou, sem sucesso, apagar.

Alguém já ouviu falar da Brigada Botwin? Formada por judeus de várias nacionalidades, integrou-se às Brigadas Internacionais que lutaram contra o fascismo na Espanha no final dos anos 30. Nos Estados Unidos, muitas vezes citados pelos anti-semitas como sede do “judaísmo internacional”, a participação judaica no movimento operário e na luta pelos direitos civis não pode ser subestimada. Em 1964, Martin Luther King disse: “A contribuição do povo judeu para a luta dos negros por liberdade é tão grande que não tenho condições de dimensioná-la”. O cantor negro Paul Robeson, perseguido pelo macarthismo, expressou sua proximidade com os judeus progressistas cantando, em 1949, num concerto em Moscou, o Hino dos Partisans.

Ainda no campo da luta contra o preconceito, é importante lembrar um judeu lituano, que imigrou jovem para a África do Sul. Me refiro a Joe Slovo. Colega de faculdade de Nelson Mandela, participou ativamente da criação do Conselho Nacional Africano, e seu partido, o PC da África do Sul, teve papel destacado no combate ao apartheid.

Há testemunhas de que, na Argentina, durante a ditadura militar, os presos políticos judeus eram torturados com especial sadismo. Existem registros da existência de suásticas nas câmaras de tortura. No Brasil, muitos voluntários judeus serviram na FEB. Tinham consciência de quem era o inimigo e da importância histórica de derrotá-lo. Mesmo antes da guerra, migrantes judeus estiveram engajados em lutas democráticas, às vezes sob risco de deportação. A polícia de Filinto Müller não dava trégua aos freqüentadores da Cozinha Operária, que funcionava na Praça Onze, no Rio de Janeiro. Depois de delações, vários deles foram mandados para a morte.

Sei o “problema” para os que têm sangue nos olhos é o Oriente Médio. “Olha só o que vocês estão fazendo lá!”, foi o que já ouvi de gente bem formada. Assim mesmo, vocês, sem distinções, como se os judeus fossem um corpo homogêneo. É o mesmo mecanismo psicopolítico que atribui a todo o povo judeu a culpa pela execução de Cristo.

Antes de comentar o assunto, dou a palavra e os gestos ao pianista e maestro Daniel Barenboim. Foi o criador, junto com o intelectual palestino Edward Said, da East-West Divan Orchestra, que reúne jovens músicos israelenses, palestinos e de vários países árabes. O projeto, inicialmente musical (embora com a intenção de aproximar gente que não costuma reconhecer o Outro), evoluiu. Barenboim acaba de anunciar a criação, em Berlim, de uma academia para músicos, que terá aulas de música, história e filosofia. Os formados devem integrar a orquestra. Sem deixar de condenar a ocupação de territórios palestinos, Barenboim, que tem passaporte israelense e palestino, trata de usar as ferramentas de que dispõe para abrir caminhos de entendimento.

Os judeus de esquerda e os que se identificam como humanistas têm lutado contínua e arduamente para que se chegue a um acordo de paz no Oriente Médio. Individual e institucionalmente. Em Israel, além das formas tradicionais de participação política (partidos, sindicatos), há muitos grupos que se organizam para viabilizar a solução de dois Estados, dois povos (cada vez mais difícil com o crescimento de correntes fundamentalistas).

Não raro, enfrentam, ao lado de palestinos, o exército de ocupação israelense. Um caso exemplar foi a aldeia de Budrus, documentado pela brasileira Julia Bacha em filme premiado em vários festivais. Em várias partes do mundo, setores das comunidades judaicas mandam sinais de crítica à brutalidade da ocupação israelense, de repúdio ao uso da violência (de ambos os lados) para resolver as disputas territoriais.

Citações a textos abjetos, como os Protocolos dos Sábios de Sião, aparecem em sites esquerdistas, o que é, no mínimo, escandaloso. Falar-se em “conspiração judaica mundial”, “judeus financistas que dominam o planeta”, é uma homenagem suja ao ditador nazista que levou à Segunda Guerra Mundial.

Termino com uma piada. Velhíssima. Autorizo meus leitores judeus a lançarem um herem por esse repeteco. Um náufrago judeu chega a uma ilha. Anos depois, é resgatado. O capitão do navio que o recolheu ficou intrigado. “Não consigo entender. Na ilha, você construiu duas sinagogas. Para quê? Você é um só!”. O judeu deu um sorriso irônico e respondeu: “É que eu só freqüento uma delas. Na outra, oy vey, não entro nem amarrado!”. Assim somos. Múltiplos, de direita e de esquerda, religiosos e ateus, interessantes e chatos, rígidos e flexíveis, nacionalistas e internacionalistas, do bem e do mal. Quem nos aponta o dedo e exige ordem unida, bem, esses convido a pegar um barco e dar um pulo na ilha do náufrago. A segunda sinagoga os espera.

Jacques Gruman
Engenheiro químico é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.