segunda-feira, 4 de julho de 2011

ITAMAR FRANCO

Diz a lenda que Itamar nasceu num navio, entre a Bahia e Minas Gerais. Ele mesmo se dizia mineiro e ficava brabo se o chamassem de baiano.

Itamar Franco surgiu no velho (não no atual, desfigurado) PTB de João Goulart. Sua primeira eleição foi para vereador em Juiz de Fora - MG, em 1958. Foi também sua primeira derrota eleitoral.

Foi derrotado novamente em 1962, candidato a vice-prefeito daquela cidade (na época prefeito e vice-prefeito eram duas escolhas separadas).

Porém, seria eleito prefeito em 1966.

Como Prefeito construiu 5 ou 6 adutoras de água que tornaram Juiz de Fora invejada pelas cidades vizinhas, até hoje.

A administração de Itamar foi tão elogiada e bem vista pela população local, que homens como Mário Andreazza, de visão política ambiciosa, tentou por todos os meios, levá-lo para a ARENA.

Em 1974, após ser reeleito em 1972, por uma pressão de Tancredo Neves, Itamar renunciou ao cargo para concorrer ao Senado Federal. Foi eleito naquele ano e naquelas eleições que seriam marcantes para fazer ver aos Ditadores que seu tempo se esgotava, já que o MDB (a oposição ao regime) venceria de ponta a ponta no Brasil (tal massacre de votos provocaria o Pacote de Abril e a criação do Senador Biônico para que os entreguistas da ARENA continuassem com maioria).

Com o fim do bipartidarismo, em 1982, Itamar permaneceu no PMDB e foi reeleito para o Senado Federal.

Em 1990, tendo seu espaço reduzido na política mineira por Newton Cardoso, Itamar surpreende a todos ao aceitar ser vice do candidato à presidência Fernando Collor de Melo.

Pela primeira vez é derrotado em Juiz de Fora. Lula vence as eleições no segundo turno na cidade de Itamar, mas vira vice-presidente, e, mais tarde, diante da queda de Collor, assume o posto de Presidente da República (1992).

Homem íntegro e honesto, Itamar Franco jamais usou o cargo para meter a mão no dinheiro alheio, muito menos no dinheiro público.

Antônio Carlos Magalhães, um dia, quando governava a Bahia fez denúncias de corrupção no governo Itamar. O então presidente o desafiou a apresentar as provas num encontro do Planalto. ACM foi (provavelmente disposto a fazer acordos e propor negociatas) e quando chegou às portas do gabinete presidencial estavam abertas, os ministros e jornalistas lá estavam, e, possesso, ACM não conseguiu mais que apresentar recortes de jornais, acabou desmontada uma das muitas farsas que protagonizou na política.

Foi o “pai”, o verdadeiro criador do Plano Real, mas, calado, permitiu que o clone de salvador da pátria, construído pela mídia e pela elite nacional se apoderasse de sua criação.

Imagine o que deve ter sido doloroso ao homem simples de Juiz de Fora assistir à criação da lenda de FHC “pai” do Real, pela mídia, a mesma mídia que lhe dava espaço apenas como um “Presidente instável e exótico”.

Em 1998, por pouco não consegue impedir a reeleição de FHC, tentando ser o candidato do PMDB. Houve choro e ranger de dentes para que desistisse, e foi montado todo um espetáculo para jogar sua imagem no ridículo. Os escândalos de ser filmado ao lado de uma atriz sem calcinha (Liliam Ramos) num desfile carnavalesco no Rio, namoros, etc, foram superdimensionados pela mídia nacional.

E em janeiro de 1999, eleito governador de Minas decreta a moratória das dívidas do Estado e coloca em risco, mais uma vez, todo o processo neoliberal de FHC.

Itamar Franco, como todos nós, era uma pessoa com seus defeitos e suas incoerências. Mas era um político nato, um brasileiro honesto. Um homem simples que dignificou com sua presença e com seu comportamento, o cenário político nacional, independente das diferenças de pensamento político e de ideologias.

Prof. Péricles

QUANDO CABRAL ERA GAY

Em 1965, os autores da coleção "História Nova" (produção conjunta do Iseb com o MEC), inclusive Nelson Werneck Sodré, fomos presos. Certo dia um tenente, jovem como eu, me tirou da cela para cortar meu cabelo. Não admitia cabeludos ali. O barbeiro era um velho sargento reformado ou talvez civil, não me recordo.

Enquanto me aplicava a máquina zero, com a curiosidade própria do ofício, perguntou ao tenente por que eu estava ali. "É um subversivo", respondeu.

Passa um tempo, o barbeiro insiste: "Mas subversivo como?" "Subversivo, porra", ranhetou o tenente. Barbeiros não se conformam com meias respostas. "Mas o que fez?" O tenente, já de cara amarrada, braços cruzados, deu a explicação definitiva. "Um general comunista, Nelson Werneck Sodré, convenceu esse aí a reescrever a história do Brasil."

Passam-se então alguns minutos. O barbeiro arrisca uma derradeira pergunta. "Reescrever a história do Brasil, como assim?" Furioso e embaraçado, o tenente encerra: "Eles escreveram, por exemplo, que Pedro Álvares Cabral era viado!".

Não é anedota. A contra-agitação daqueles anos se caracterizou por crendices assim. Sujeitos bem-intencionados, fardados ou não, reproduziam invencionices, precisavam delas para obedecer e agir. Os chefes mandavam prender; tenentes e investigadores, funcionando pela lei da gravidade, enchiam a cabeça de absurdos.

A "História Nova" nem fora idéia de Werneck Sodré” ele apenas a abraçou com entusiasmo. Nasceu numa tarde do verão de 1963, no Leblon. Um grupo de estudantes da Faculdade Nacional de Filosofia, inconformado com a ruindade do ensino, planejou reescrever capítulos da história brasileira o descobrimento, as invasões holandesas, a independência de 1822, o sentido da Abolição e o advento da República, entre outros. Seriam a reforma de base no campo da história. Saíram cinco volumes pela Campanha de Assistência ao Estudante, do MEC.

Distribuídos gratuitamente a professores secundários, alcançaram êxito imediato, que se repetiu quando da segunda edição, em 1965, pela Brasiliense.

Essa nova tiragem foi apreendida, e nós, presos. O policial nos indagou, de imediato, pelo paradeiro de um certo Immanuel Kant.

A "História Nova" não existiria sem Werneck Sodré. Éramos estudiosos, mas ignorantes. Ele, historiador consagrado, orientava, discutia conosco o texto, emprestava o nome. Tinha suas cismas. Uma vez, nos foi visitar um brasilianista de gravata borboleta. Queria dados da realidade brasileira. Sodré o levou pelo braço até a varanda e apontou a favela Santa Marta. "Está tudo ali. Passe bem."

JOEL RUFINO DOS SANTOS
FOLHA DE SÃO PAULO - DOMINGO 26/06/2011

segunda-feira, 27 de junho de 2011

CRISES DO SÉCULO XIV: AS DORES DO PARTO

O século XIV foi, sem dúvida, assustador para seus contemporâneos. Um século de dores profundas e de morte fácil.

As guerras feudais se multiplicaram como nunca, sendo a guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre ingleses e franceses, apenas, a mais conhecida delas. Muitas outras se revezariam no cenário europeu apocalíptico, tão fartas que, em muitas delas não restava tempo para enterrar seus mortos.

Em meados desse século a peste iria compor o drama com cores pungentes. A mais célebre delas, a “Peste Negra” matou, segundo alguns historiadores europeus, 1/3 da população do continente. Era letal, dolorosa e inclemente. Espalhava-se como fogo em mata seca a partir do contágio da pulga dos ratos, numerosos e audaciosos, que disputavam espaços miseráveis com os seres humanos. Em seguida, o infectado tornava-se, sem saber, agente de propagação da doença através da respiração. A Peste Negra, portanto, era duplamente mortal: bubônica pelos ratos e pneumônica pela respiração.

Em poucos dias grossos bulbos purulentos apareciam inicialmente na virilha e nas axilas, espalhando-se em seguida, por todo o corpo. Esses bulbos com o tempo tornavam-se escurecidos, sugerindo o nome “Peste Negra”. A morte era dolorosa e profundamente solitária, pois, afastar os pestilentos era a única forma real de combate ao contágio.

Atrelada à religião, a medicina tinha parcos conhecimentos sobre epidemias na época, quase todos dominados pela superstição e crendices.

A partir da segunda metade do século, crises agudas de fome espalharam-se pelos quatro cantos do continente europeu. Sucessivas secas e inundações (será o “El Nino) arrasaram colheitas inteiras por inúmeras estações. Em alguns lugares, como na Escócia, foram encontradas, recentemente, provas de que o canibalismo tornou-se uma prática comum diante do desespero da morte lenta por inanição.

Mas por que tantas dores numa mesma época, relativamente curta?

Além das várias explicações científicas e antropológicas, uma coisa parece evidente.

Eram as dores do parto.

O mundo feudal e suas velhas relações econômicas e de vassalagem estava nos estertores de sua limitação, enquanto o capitalismo, impulsionado desde o início das Cruzadas, no século XII, buscava espaço. Estava nascendo um novo mundo.

Entretanto, o homem jamais deixa de acreditar. E ainda no século XIV, lentamente, nas dobras das ruínas do mundo antigo, um movimento começava a nascer.

Misturado com bulbos, canibalismos e guerras cruentas, o Renascimento surgiria trazendo consigo todo um conjunto de novos valores humanistas, antropocentristas e burgueses.

O homem sobreviveria às dores da morte do mundo velho e do parto do mundo novo, a partir da substituição do pensamento religioso predominante nas velhas relações, pelo pensamento do “homem no centro” nas buscas de explicações.

Na pintura, escultura, astronomia, medicina, enfim, em todas as áreas do conhecimento e das artes, as mudanças seriam irreversíveis.

A nova economia não poderia funcionar com a mentalidade tacanha das atividades meramente primárias e subordinadas à fé.

E o mundo mudou.

Não será que as crises de nosso tempo, que afligem economias, antes dominantes, que testemunham mudanças climáticas e planetárias, que atingem profundamente o comportamento humano, não seriam também, as dores de um novo parto?

Se assim for, cabe a nós, os que acreditam na liberdade, e na força revolucionária de cada ser humano, construir nosso novo Renascimento.

E que seja um renascimento de esperança, de igualdade, de solidariedade e de paz.

Prof. Péricles

domingo, 26 de junho de 2011

ESTADOS UNIDOS, "EM DEFESA" DA LIBERDADE

Para os que ainda acreditam no discurso dos governos dos Estados Unidos de que seu país procura promover a paz mundial e a defesa da democracia, relacionamos ações bélicas e invasões patrocinadas por esse país, apenas nas duas últimas décadas.

1990 LIBÉRIA: Tropas invadem a Libéria justificando a evacuação de
estrangeiros durante guerra civil;

1990/1991IRAQUE: Após a invasão do Iraque ao Kuwait, em 2 de agosto de
1990, os Estados Unidos, com o apoio de seus aliados da Otan, decidem impor
um embargo econômico ao país, seguido de uma coalizão anti-Iraque (reunindo
além dos países europeus membros da Otan, o Egito e outros países árabes)
que ganhou o título de "Operação Tempestade no Deserto". As hostilidades
começaram em 16 de janeiro de 1991, um dia depois do fim do prazo dado ao
Iraque para retirar tropas do Kuwait. Para expulsar as forças iraquianas do
Kuwait, o então presidente George Bush destacou mais de 500 mil soldados
americanos para a Guerra do Golfo;

1990/1991 ARÁBIA SAUDITA: Tropas americanas destacadas para ocupar a
Arábia Saudita que era base militar na guerra contra Iraque;

1992/1994 SOMÁLIA: Tropas americanas, num total de 25 mil soldados,
invadem a Somália como parte de uma missão da ONU para distribuir
mantimentos para a população esfomeada. Em dezembro, forças militares
norte-americanas (comando Delta e Rangers) chegam a Somália para intervir
numa guerra entre as facções do então presidente Ali Mahdi Muhammad e tropas
do general rebelde Farah Aidib. Sofrem uma fragorosa derrota militar nas
ruas da capital do país;

1993 IRAQUE: No início do governo Clinton é lançado um ataque contra
instalações militares iraquianas em retaliação a um suposto atentado, não
concretizado, contra o ex-presidente Bush, em visita ao Kuwait;

1994/1999 HAITI: Enviadas pelo presidente Bill Clinton, tropas americanas
ocuparam o Haiti na justificativa de devolver o poder ao presidente eleito
Jean-Betrand Aristide, derrubado por um golpe, mas o que a operação visava
era evitar que o conflito interno provocasse uma onda de refugiados
haitianos nos Estados Unidos;

1996/1997 ZAIRE (ex-República do Congo: Fuzileiros Navais americanos são
enviados para invadir a área dos campos de refugiados Hutus;

1997 LIBÉRIA: Tropas dos Estados Unidos invadem a Libéria justificando a
necessidade de evacuar estrangeiros durante guerra civil sob fogo dos
rebeldes;

1997 ALBÂNIA: Tropas invadem a Albânia para evacuar estrangeiros;

2000 COLÔMBIA: Marines e "assessores especiais" dos EUA iniciam o Plano
Colômbia, que inclui o bombardeamento da floresta com um fungo transgênico
fusarium axyporum (o "gás verde");

2001 AFEGANISTÃO: Os EUA bombardeiam várias cidades afegãs, em resposta
ao ataque terrorista ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001.
Invadem depois o Afeganistão onde estão até hoje;

2003 IRAQUE: Sob a alegação de Saddam Hussein esconder armas de
destruição e financiar terroristas, os EUA iniciam intensos ataques ao
Iraque. É batizada pelos EUA de "Operação Liberdade do Iraque" e por Saddam
de "A Última Batalha", a guerra começa com o apoio apenas da Grã-Bretanha,
sem o endosso da ONU e sob protestos de manifestantes e de governos no mundo
inteiro. As forças invasoras americanas até hoje estão no território
iraquiano, onde a violência aumentou mais do que nunca.

Isso sem contar as ações desses campeões da liberdade de apoio, fomento, articulação de golpes e manutenção de regimes autoritários, como as Ditaduras da América do Sul, incluindo o Brasil.

D. HELDER CÂMARA, IRMÃO POR PARTE DE PAI

O arcebispo Dom Helder Câmara (1909-1999) é figura singular na história da Igreja Católica no Brasil. Diminuto, magérrimo, poucos o superavam em oratória: adornava as idéias com gestos efusivos e um senso de humor incomum ao se tratar de bispos. Por onde andasse, lotava auditórios: Paris, Nova York, Roma... Entre os anos de 1960-80, apenas dois brasileiros gozavam de ampla popularidade no exterior: Pelé e Dom Helder.

HÁBITOS SIMPLES

Desde seus tempos de seminarista em Fortaleza - nascera em Messejana, hoje bairro da capital cearense - Dom Helder cultivava hábitos incomuns: deitava-se por volta das dez ou onze da noite, levantava-se às duas da madrugada, trocava a cama por uma cadeira de balanço, na qual orava, meditava, lia e escrevia cartas e poemas. Todos os seus livros foram concebidos naquele momento de "vigília", como dizia. As quatro retornava ao leito, dormia por mais uma hora para, em seguida, celebrar missa e iniciar seu dia de trabalho.

SENSO DE OPORTUNIDADE

Para angariar recursos a suas obras, Dom Helder não titubeava em comparecer a programas de auditório de grande audiência televisiva. Certa ocasião foi convidado por um apresentador para sortear prendas expostas no palco e vistas por todos, exceto pela pessoa trancada numa cabine opaca. Calhou de ser um desempregado. "Seu Joaquim, o senhor troca isto por aquilo?" E sem nomear o objeto, Dom Helder apontava um liquidificador e, em seguida, um carro. Seu Joaquim respondia "sim" e toda a platéia vibrava. Em seguida, Dom Helder indagou se trocava o carro por um abridor de latas. O homem topou. E não mais arredou pé, cismou que escolhera a melhor prenda. Ao sair da cabine, recebeu dos patrocinadores, decepcionado, o abridor. E Dom Helder mereceu um polpudo cheque. O arcebispo não teve dúvidas: "Seu Joaquim, o senhor troca este cheque pelo abridor?"

No dia seguinte, no Palácio São Joaquim, onde funcionava a cúria do Rio, criticamos Dom Helder por ter aberto mão de um recurso que poderia reforçar suas obras sociais. Ele justificou-se: "Perdi o cheque, ganhei em publicidade. Esperem para ver quanto dinheiro vou angariar."

VISÃO EMPREENDEDORA

Homem carismático, dotado de forte espírito gregário, era difícil alguém - incluído quem o criticava - não se deixar envolver pela energia que dele emanava no contato pessoal. JK quis que se candidatasse a prefeito do Rio. Dom Helder jamais aceitou meter-se em política partidária; bastava-lhe, como lição, o erro de juventude, quando demonstrou simpatia pelos integralistas.

Por sua iniciativa, foram fundados, em 1955, o CELAM - Conselho Episcopal Latino-Americano que congrega e representa os bispos do nosso Continente, e a CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, pólo articulador dos prelados de nosso país, do qual ele foi o primeiro secretário-geral.

BISPO VERMELHO

Numa época em que não havia Igreja progressista nem Teologia da Libertação, Dom Helder, graças à sua sensibilidade social e sua opção pelos pobres, era tido por comunista, difamação acentuada após a implantação da ditadura militar no Brasil, em 1964. Costumava comentar: "Se defendo os pobres, me chamam de cristão; se denuncio as causas da pobreza, me acusam de comunista".

Em 1972 o nome de Dom Helder despontou como forte candidato ao Prêmio Nobel da Paz. Há fortes indícios de que não foi laureado por duas razões: primeiro, pressão do governo Médici. A ditadura se veria fortemente abalada em sua imagem exterior caso ele fosse premiado. Mesmo dentro do Brasil Dom Helder era considerado persona non grata. Censurado, nada do que o "arcebispo vermelho" falava era reproduzido ou noticiado pela mídia de nosso país.

A outra razão: ciúmes da Cúria Romana. Esta considerava uma indelicadeza, por parte da comissão norueguesa do Nobel da Paz, conceder a um bispo do Terceiro Mundo um prêmio que deveria, primeiro, ser dado ao papa...

No Recife, Dom Helder lançou a Operação Esperança: promoveu reforma agrária nas terras da arquidiocese; passou a visitar favelas, mocambos e bairros pobres; estreitou laços com artistas, universitários e intelectuais.

HOMEM DE FÉ

Um dia, o governo militar, preocupado com a segurança do arcebispo de Olinda e Recife, temendo que algo acontecesse a ele - um atentado ou "acidente" - e a culpa recaísse sobre o Planalto, enviou delegados da Polícia Federal para lhe oferecer um mínimo de proteção. Disseram-lhe: "Dom Helder, o governo teme que algum maluco o ameace e a culpa recaia sobre o regime militar. Estamos aqui para lhe oferecer segurança".

Dom Helder reagiu: "Não preciso de vocês, já tenho quem cuide de minha segurança". "Mas, Dom Helder, o senhor não pode ter um esquema privado. Todos que dispõem de serviço de segurança precisam registrá-lo na Polícia Federal. Esta equipe precisa ser de nosso conhecimento, inclusive devido ao porte de armas. O senhor precisa nos dizer quem são as pessoas que cuidam da sua segurança."

Dom Helder retrucou: "Podem anotar os nomes: são três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo."

A mulher bateu na igreja das Fronteiras: "Dom Helder, pelo amor de Deus, vem comigo, lá na delegacia do bairro estão matando meu marido a pancadas." O prelado a acompanhou. Ao chegar lá, o delegado ficou assustadíssimo: "Eminência, a que devo a honra de sua visita a esta hora da noite?"

Dom Helder explicou: "Doutor, vim aqui porque há um equívoco. Os senhores prenderam meu irmão por engano." "Seu irmão?!" "É, fulano de tal - deu o nome - é meu irmão". "Mas, Dom Helder - reagiu o delegado perplexo -, o senhor me desculpe, mas como podia adivinhar que é seu irmão. Os senhores são tão diferentes!"

Dom Helder se aproximou do ouvido do policial e sussurrou: "É que somos irmãos só por parte de Pai". "Ah, entendi, entendi." E liberou o homem.

De fato, irmãos no mesmo Pai.

PERSEGUISÕES E DIREITOS HUMANOS

Durante o regime militar, Dom Helder moveu intensa campanha no exterior de denúncia de violações dos direitos humanos. O governador de São Paulo, Abreu Sodré, tentou criminalizá-lo. Alegava ter provas de que Dom Helder era financiado por Cuba e Moscou. Alguns bispos ficavam sem saber como agir, como foi o caso do cardeal de São Paulo, Dom Agnelo Rossi, amigo do governador e de Dom Helder. Não foi capaz de tomar uma posição firme na contenda. Mais tarde a denúncia caiu no vazio, não havia provas, apenas recortes de jornais.

Se hoje, na Igreja, se fala de direitos humanos, especificamente na Igreja do Brasil, que tem uma pauta exemplar de defesa desses direitos, apesar de todas as contradições, isso se deve ao trabalho de Dom Helder. Nenhum episcopado do mundo tem agenda semelhante à da CNBB na defesa dos direitos humanos. A começar pelos temas anuais da Campanha da Fraternidade: idoso, deficiente, criança, índio, vida, segurança etc. Neste ano de 2010, economia. Isso é realmente um marco, algo já sedimentado. Também as Semanas Sociais, que as dioceses, todos os anos, promovem pelo Brasil afora, favorecem a articulação entre fé e política, sem ceder ao fundamentalismo.

A Igreja Católica e o Brasil devem muito a Dom Helder Câmara, que desclandestinizou a pobreza existente em nosso país e induziu poder público e cristãos a encarar com seriedade os direitos dos pobres à vida digna e feliz. O profeta nascido em Messejana foi, sim, um autêntico discípulo de Jesus Cristo.



Fonte: http://www.freibetto.org
Frei Betto é escritor, autor do romance "Um homem chamado Jesus" (Rocco), entre outros livros. Twitter:@freibetto

domingo, 19 de junho de 2011

O DISCURSO DE MÁRCIO MOREIRA ALVES

O ano de 1968 foi conturbado e decisivo para os destinos do Brasil sob o regime militar.

Enquanto a situação econômica assustava os generais, a reação contra o regime crescia nas ruas de todo o país.

Estudante morto durante protesto pacífico, passeata de cem mil pessoas, e um crescente desejo de retorno à normalidade política, colocava os senhores do sistema na parede.

Era preciso, segundo os mentores do golpe, promover um ato de extrema força para garantir mais tempo no poder.

Esse ato foi o AI-5. A “desculpa”? Bem, a “desculpa” para a publicação do AI-5 acabou sendo um discurso pronunciado no Congresso Nacional por um de seus deputados.

Márcio Moreira Alves nasceu no Rio de Janeiro, em 14 de julho de 1936. Era portanto um jovem político de 32 anos quando esses fatos aconteceram.

Iniciou trabalho como Jornalista aos 17 anos, sendo correspondente de guerra em 1956 na crise da nacionalização do Canal de Suez.

Em 1963 bacharelou-se em ciências jurídicas e sociais pela UERJ.

Em novembro de 1966, com 30 anos, foi eleito deputado federal pela Guanabara.
Tornou-se um dos maiores opositores da ditadura imposta em 1964.
No fim de agosto do fantástico ano de 1968, forças da repressão fecharam a universidade de Minas Gerais e invadiram a UNB (Universidade de Brasília) causando profunda revolta no jovem deputado.
Alinhado com a juventude estudantil, pronunciou, em 2 de setembro, o famoso discurso que entraria para a história.

Nele Márcio Moreira Alves conclama o povo brasileiro a boicotar as festividades de comemoração da independência de 7 de setembro. Segundo ele, essa era uma forma adequada, de mostrar aos militares ilegitimamente no poder, toda a indignação e revolta contra o autoritarismo.

“As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem junto com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile”.

Em outro trecho, talvez o que mais enfureceu as “autoridades” Márcio lança um pedido às namoradas, noivas e esposas dos militares:
“Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968... Recusassem aceitar aqueles que silenciam e, portanto, se acumpliciam. Discordar em silêncio pouco adianta. Necessário se torna agir contra os que abusam das forças armadas, falando e agindo em seu nome.”

O pronunciamento foi considerado pelos ministros militares como ofensivo ''aos brios e à dignidade das forças armadas''. Em 12 de outubro foi pedida sua cassação no Congresso Federal por “uso abusivo do direito de livre manifestação”.

No dia 11 de dezembro, talvez pela primeira vez desde 31 de março de 1964, o Congresso levantou a cabeça e agiu com coragem. Por 216 votos contra e 141 a favor, o plenário recusou pedido para processar o deputado do MDB. Quando da leitura do resultado, os deputados deram-se as mãos, e, alguns com lágrimas nos olhos, cantaram o hino Nacional.

No dia seguinte, sexta-feira 13 de dezembro de 1968, o Genral Costa e Silva editava o AI-5.

Em 30 de dezembro foi divulgada a primeira lista de cassações do AI-5 e por quem era encabeçada? Pelo deputado do discurso maldito. Antes do final daquele ano, Márcio deixou clandestinamente o país, rumo ao Chile (onde ficou até 1971) e vários outros países depois.

Com a Lei da Anistia, retornou ao Brasil em setembro de 1979. Apesar de candidatar-se duas vezes à Câmara dos Deputados, não conseguiu se eleger.

Em 3 de abril de 2009, dois dias depois dos 45 anos do Golpe Civil-Militar, Márcio Moreira Alves morreu após sofrer um AVC (acidente vascular cerebral).
Apesar disso, dizem que seu discurso ainda ecoa nas paredes do Congresso Nacional...ou pelo menos, nos corações dos que amam a liberdade.