sábado, 24 de janeiro de 2015
ENTULHOS RACISTAS
Por Jacques Gruman
Antigamente, a gente ia ao cinema para ver mais do que o filme. Dentro dos cinejornais, aguardávamos com ansiedade a hora do Canal 100. Numa época em que as televisões engatinhavam, com tecnologias a lenha, as imagens do Carlinhos Niemeyer nos permitiam quase entrar nos estádios, com closes espetaculares, detalhes impossíveis de captar com as paquidérmicas câmeras de TV.
E não se diga que a paixão rubro-negra do Carlinhos privilegiava o Mais Querido. Tudo ao som viciante do Na cadência do samba (Que bonito é/as bandeiras tremulando/a torcida delirando/vendo a rede balançar...). Na era romântica do futebol, o Canal 100 foi um banquete. Tudo devagar, sem essa incontinência digital, que está fazendo o planeta nadar em informação e patinar em ignorância.
Dizem que, até 2020, a produção de dados no mundo dobrará a cada dois anos. A criançada está cada vez mais conectada em máquinas e mais carente de contatos e conversas. Um psicólogo que escreveu sobre o assunto disse que já tinha visto um garoto escrevendo uma mensagem enquanto andava de bicicleta. Não é por nada não, mas isso é uma definição precisa de filme de terror, que as novas gerações já estão protagonizando.
(...) Desde moleque ouço dizer que o Brasil não é racista, que os casos detectados são isolados, que aqui a discriminação racial não sentou praça. Como se já não existissem provas fartas de que isso não passa de uma perigosa bobagem, agora vem o futebol para confeitar o bolo venenoso. Em poucos dias, um juiz e um jogador foram insultados por idiotas racistas. Não faz muito, um jogador do Cruzeiro foi vítima de racismo no Peru. Será uma escalada? O ódio racial nos estádios brasileiros terá saído do armário ?
Difícil dizer. Como o futebol tem raízes fundas no imaginário brasileiro e, bem ou mal, reflete o que somos, cabe dar um trato na matéria.
A exclusão social, que, não raro, se confunde com vários preconceitos, está na origem do futebol no Brasil.
Em São Paulo, os primeiros times foram todos compostos pela elite branca, especialmente os oriundos das colônias inglesa e alemã.
Quando o povo começou a organizar suas peladas em várzeas e pensou em aderir a uma proposta liga metropolitana, os clubes dos abonados se recusaram a misturar-se com os “canelas negras”, como desdenhosamente chamavam os varzeanos.
No Rio de Janeiro, há o caso da torcida do Fluminense. Em 1914, um século pois, chegou ao clube um jogador do América. Negro. Temeroso da reação dos torcedores, gente de nariz empinado, cobriu-se com pó de arroz para disfarçar a cor de sua pele. Foi só com muita luta que essas barreiras foram rompidas. Como, aliás, acontece com todas as causas populares.
Dos episódios recentes, sobram muitas constatações e perguntas. Os técnicos, mal chamados de “professores”, se omitem. A exceção é Muricy Ramalho. Felipão prefere distância indecente dos acontecimentos, achando que melhor é ignorar o racismo. Os cartolas fingem indignação, mas a revolta fica na retórica vazia de sempre. Os jogadores, sem lideranças reconhecidas e totalmente despolitizados (onde está o Bom Senso F. C.?), vão a reboque dos acontecimentos.
Se tivessem um pouco de organização, não esperariam pelas nunca tomadas providências e se recusariam a continuar os torneios enquanto não se punissem as ofensas. Yaya Touré, da seleção de Costa do Marfim, propôs que os jogadores negros boicotem a Copa do Mundo da Rússia, em 2018, por conta do racismo de torcidas locais. Será que isso não devia valer para qualquer país?
Não se combate a intolerância racial com bons modos. No país da Copa das Copas (sic), este não é um assunto menor.
Texto original em: CARTA MAIOR
terça-feira, 20 de janeiro de 2015
A MALDIÇÃO DA PRAIA DO RINCÃO
Corria o ano de 1755.
Um navio vindo de Portugal passava grande sufoco margeando o perigoso litoral do sul da Colônia Brasil.
Ventos fortes jogavam a nau de um lado para outro. As velas foram recolhidas e, de certa forma deixara de lutar contra a força das ondas, deixando se levar, ocupado apenas em evitar as pedras e o alagamento excessivo.
A bordo 120 pessoas vindas da Metrópole.
Entre elas 22 escravos e uma família da mais fina casta aristocrática lusitana.
Os “Borges Fernandes” outrora poderosos proprietários rurais viviam agora tempos difíceis, por isso, o Duque Tomé Borges Fernandes viera para o Brasil, mantendo a pompa, mas decidido a achar ouro na nova terra e recuperar seu antigo poder.
Agora chegavam no navio ameaçado, sua esposa, D. Rute e sua única filha, Amélia.
O destino final da viagem era algum ponto do litoral de São Vicente (São Paulo) de onde as aguardavam D. Tomé, para, em seguida rumarem juntos às suas novas terras na região de Vila Rica, na Capitania das Minas.
O navio se perdera, rumando muito ao sul, no atual litoral de Santa Catarina, e justo quando o capitão percebia o erro e alterava a rota, fora colhido pela medonha tempestade.
O céu negro rugia como um monstro invisível, as ondas se erguiam acima dos três, quatro metros, o navio se equilibrava.
Marinheiros corriam de um lado a outro gritando palavras incompreensíveis.
D. Rute orava. Amélia orava. O capitão orava.
Mas, nenhuma oração poderia salvar aquele navio condenado.
No exato momento que uma fresta entre as nuvens permitiu aos homens perceberem que estavam próximos demais da praia, ouviu-se um tremendo barulho do casco batendo em rochas.
Seguiram-se outras batidas violentas, o navio literalmente foi imobilizado e depois, tremendo intensamente, entregou-se as águas invasoras.
Pânico. Gritos desesperados.
Alguns, pensando apenas em si, pularam no mar carregando barcos e qualquer coisa que pudesse flutuar, sumindo em seguida no mar negro, como se o navio bailasse num poço sem fundo.
Nos momentos seguintes, uma figura poderosa se sobressaiu. A figura de um escravo negro, robusto, aparentando ser a única pessoa que mantinha a calma diante da morte.
Sem palavras ele passou a tirar a nado um a um dos passageiros do navio.
Em pouco tempo, praticamente todos estavam seguros na praia, apavorados, entre choro e ranger de dentes, mas salvos, graças ao negro nadador.
De repente, ao retornar pela enésima vez ao navio que afundava com espantosa rapidez, o escravo percebeu que apenas uma mulher, a bela, Amélia, filha de D. Tomé e de Dona Rute (já a salvo na praia), se mantinha encolhida encostada na murada.
Várias vezes o salvador negro estendeu a mão, mas em todas Amélia recusou a ajuda.
Em seu coração habitava tamanha repulsa por negros, racismo tão exacerbado que, pra ela, a morte era preferível a ser salva por aquele homem abjeto.
Em poucos minutos a salvação tornou-se impossível e o escravo teve que partir para salvar a própria vida.
Amélia morreu. Afogada pelo mar, e pelo oceano do preconceito rancoroso.
Desde então, um estranho fenômeno passou a ser observado entre a Praia do Rincão e a Praia da Esplanada.
Em noite sem lua, em especial, quando se ouve o ronco das trovoadas, uma estranha luz percorre a região como se guiada por uma mão invisível.
Uma vela, que estranhamente não se apaga.
Dizem que é a alma torturada e arrependida de Amélia que procura alguém com coragem para segui-la até o ponto do naufrágio e por ela fazer uma prece de perdão.
Só assim sua alma ganhará a liberdade.
Mas até hoje ninguém suportou a pressão de sua presença.
Os mais corajosos até tentaram. Mas todos desistiram diante da sensação de medo, ódio e arrependimento que se desprende da pequena chama.
Uma vela. Carregada por alguém invisível aos olhos.
Muitos antigos já a viram e por isso, a Lenda da Vela da Praia do Rincão persiste por gerações.
Eu... não, eu nunca a vi... mas conheço muitos que viram.
É sim.
Prof. Péricles
Obs. Os nomes dos personagens são fictícios.
domingo, 18 de janeiro de 2015
PENA DE MORTE E O PRESIDENTE METALEIRO
A pena de morte, além de fascista é burra.
Podemos pegar como exemplo o caso da execução, ontem, do brasileiro Marco Archer.
Ele era apenas uma de 64 pessoas condenadas à morte por tráfico de drogas na Indonésia.
Apesar de toda a pressão de organismo como a “Anistia Internacional” e do governo Brasileiro, um governo de país aliado em vários negócios de interesse da Indonésia, ainda assim, o presidente do país Joko Widodo, não concedeu clemência.
De certa forma, já era de se esperar.
Joko Widodo foi eleito com pouco mais de 50% dos votos, presidente da Indonésia, ano passado. O endurecimento ao combate do tráfico de drogas era uma de suas plataformas preferidas de campanha.
Não dava mesmo pra esperar clemência de um presidente eleito em cima desse tipo de proposta, e conhecido fã do Sepultura, Iron Maiden, Black Sabbath e Napalm Death.
Há pouco tempo, aliás, o presidente pagou um mico danado já que a Comissão de Erradicação da Corrupção do país confiscou um baixo dado ao presidente pelo baixista do Metallica.
Por outro lado, antes que os defensores da pena de morte sorriam satisfeitos, permitam lembrar que, mesmo com todo esse terror legalizado, as drogas não deixam de ser um flagelo, igualzinho a qualquer outro país em que não há pena de morte.
No país de Joko Widodo é comum encontrar uma gurizada em cima do teto dos trens fumando o “putaw”, um derivado menor da heroína (mais ou menos como o crak é da cocaína). Como o crak, o “putaw” é muito barato (menos de R$ 15,00 a dose) e é potencializada quando injetada. Como conseqüência, a Indonésia é um dos campeões de AIDS na Ásia, sendo que 59% da contaminação se dá por seringa compartilhada.
Especialistas estão chegando à conclusão que, o combate inclemente ao tráfico não está impedindo a circulação das drogas e inibindo o consumo.
Dependente é dependente e irá buscar um jeito de consumir de qualquer maneira.
Pelas leis de mercado capitalista, quanto menor a oferta (e a oferta diminui pela dureza da Lei), maior o valor, e, por isso, está ficando cada vez mais caro usar drogas menos fatais, como a cocaína que Marco Archer trazia. Por isso, os consumidores indonésios estão ficando cada vez mais violentos, praticando crimes que vão desde pequenos furtos até atos mais desatinados, para fazer frente ao aumento dos preços da droga.
Ou usam “putaw” e aceitam o risco de contrair AIDS.
É lamentável que, apesar de todos os avanços da ciência e da tecnologia. Apesar de tanta riqueza de informações, ainda existam países e pessoas que defendam a pena de morte como algo capaz de diminuir o índice de crimes.
Oremos pelos outros 63 condenados no país do presidente metaleiro. Inclusive pelos 47 estrangeiros (e mais um brasileiro) no corredor da morte.
Prof. Péricles
quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
UMA HISTÓRIA DE AMOR E VINGANÇA
Os casamentos reais na baixa Idade Média e na Idade Moderna eram questão de estado, tratados com a frieza e a lógica das alianças políticas.
No século XIV, Portugal já era um Estado, governado por uma monarquia absolutista.
Apesar de sua prematura unificação lhe dar superioridade política diante dos reinos ainda em formação na Europa, seu pequeno tamanho e limitado poder militar obrigava a que seu rei, estivesse muito atento contra ameaças a sua independência.
Por isso, o rei Afonso IV decidiu que o seu filho, herdeiro ao trono, príncipe Pedro, casaria com Constanza, a filha de um poderoso aliado.
O príncipe, aparentemente, aceitava bem a situação, como um fato político, mas mantinha uma ardorosa paixão por Inês de castro, uma jovem e belíssima aristocrata.
Todos, inclusive a esposa de Pedro, sabiam dessa paixão avassaladora, mas faziam de conta não saber. Até que Constanza morreu, em 1345.
Rei Afonso ficou preocupado e temendo que Pedro aproveitasse a viuvez para oficializar o caso “secreto” que poderia inviabilizar seus novos planos, ordenou que Pedro rompesse e deixasse definitivamente de ver Inês.
Pedro foi incapaz de cumprir a ordem. Seu amor era maior que seu devotamento ao pai e ao Estado. Continuou encontrando sua amada e com ela passando tórridas noites.
Boatos de uma provável gravidez começaram a chegar aos ouvidos dos conselheiros do rei que não demoravam em repassar a seu chefe o perigo que um filho bastardo poderia significar.
Então, o velho monarca radicalizou.
Certa noite, três agentes enviados por ele, invadiram o mosteiro de Santa Clara-a-Velha, onde Inês passava uma temporada reclusa e a seqüestraram. Levada para uma área deserta, a pobre moça foi violentamente terrivelmente assassinada com diversos golpes de sabre.
A dor de Pedro foi imensa.
Sua revolta quase o levou a matar o próprio pai, mas foi contido.
queimando de ódio e de dor, recuou. Disse estar arrependido, jurou fidelidade ao Rei e escondeu-se em algun canto sombrio do castelo.
Pouco mais de um ano Afonso IV morreu e Pedro se tornou rei com o título de D. Pedro I.
Então sua fúria explodiu contra os assassinos de sua amada.
Um deles, o mais esperto, percebeu antes a situação e fugiu de Portugal, desaparecendo para sempre. Mas, os outros dois foram presos.
Os assassinos foram bárbaramente torturados por ordem de Pedro I, que fez questão de, pessoalmente, abrir o peito de cada um, e arrancar o coração ainda pulando para, em seguida, retalha-los com a adaga.
Pedro afirmou, embora sem provas, que havia se casado em segredo e nomeou postumamente Inês de castro, rainha de Portugal. Seu corpo foi exumado e transferido para o suntuoso mausoléu no palácio. (foto acima).
Antes disso, porém, foi colocado no trono e por ordem real, todos os cortesãos, conselheiros de seu pai, foram obrigados a formar fila e um a um, beijar a mão e os pés do cadáver.
Pedro I, nunca mais amou outra mulher.
Prof. Péricles
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
EU NÃO SOU CHARLIE, JE NE SUIS PAS CHARLIE
por Rafo Saldaña
Em primeiro lugar, eu condeno os atentados do dia 7 de janeiro. Apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões sou um cara pacífico. A última vez que me envolvi em uma briga foi aos 13 anos (e apanhei feito um bicho). Não acho que a violência seja a melhor solução para nada. Um dos meus lemas é a frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobramos sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro. Ninguém merece. A morte é a sentença final, não permite que o sujeito evolua, mude. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem.
A Charlie Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970 e identificada com a esquerda pós-68. Não vou falar de toda a trajetória do semanário. Basta dizer que é mais ou menos o que foi o nosso Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006.
O editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona Chollet – críticas que foram resolvidas com a saída dela). Ele ficou no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges relacionadas ao Islã – ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011.
Uma pausa para o contexto. A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de segunda classe”. Após os atentados do World Trade Center, a situação piorou.
De volta a Charlie Hebdo: Ontem vi Ziraldo chamando os cartunistas mortos de “heróis”. O Diário do Centro do Mundo (DCM) os chamou de “gigantes do humor politicamente incorreto”. No Twitter, muitos chamaram de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.
O primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. (Isso gera situações interessantes, como o filme A Mensagem – Ar Risalah, de 1976 – que conta a história do profeta sem desrespeitar esse dogma – as soluções encontradas são geniais!). Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a estátua de Nossa Senhora para atacar os católicos.
Mas existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou fazendo alusões à violência (quantos trocadilhos com “matar” e “explodir”…). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam…
Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também criticavam católicos e judeus. Isso me lembra o já citado gênio do humor (sqn) Danilo Gentilli, que dizia ser alvo de racismo ao ser chamado de Palmito (por ser alto e branco). Isso é canalha. Em nossa sociedade, ser alto e branco não é visto como ofensa, pelo contrário. E – mesmo que isso fosse racismo – isso não daria direito a ele de ser racista com os outros. O fato do Charlie Hebdo desrespeitar outras religiões não é atenuante, é agravante. Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.
“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apóia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça francesa tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.
“Mas isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados – como o racismo ou a homofobia – isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem toda censura é ruim.
Por coincidência, um dos assuntos mais comentados do dia 6 de janeiro – véspera dos atentados – foi a declaração do comediante Renato Aragão à revista Playboy. Ao falar das piadas preconceituosas dos anos 70 e 80, Didi disse: “Mas, naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam.”. Errado. Muitos se ofendiam. Eles só não tinham meios de manifestar o descontentamento.
Voltando à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada” (grifo meu). Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda), é inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até… charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos!
Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro de ontem, eu não sou Charlie. No twitter, um movimento – muito menor do que o #JeSuisCharlie – começa a surgir. Ele fala do policial, muçulmano, que morreu defendendo a “liberdade de expressão” para os cartunistas do Charlie Hebdo ofenderem-no. Ele representa a enorme maioria da comunidade islâmica, que mesmo sofrendo ataques dos cartunistas franceses, mesmo sofrendo o ódio diário dos xenófobos e islamófobos, repudiaram o ataque. Je ne suis pas Charlie. Je suis Ahmed.
sexta-feira, 9 de janeiro de 2015
AS DUAS FACES DE AFRODITE
Responda ligeiro, você homem experiente ou menino.
Diga sem medo, homem de todas as idades, nacionalidades e matizes.
Quantas mulheres existem numa só mulher?
Quantos amores ela é capaz de guardar dentro do peito e emoções conflitantes é capaz de equilibrar?
Qual seria a mulher mais perfeita?
Quantas mulheres uma só mulher carrega ao longo do dia, todos os dias de todas as vidas, nossas vidas de simples mortais?
Para os gregos, o segredo estava posto diante dos olhos e da mente através do exemplo onde se assomavam todas as virtudes, paixões e defeitos femininos – Afrodite.
Afrodite significa "espuma do mar", nasceu da espuma abundante provocada pela queda no oceano do sangue e esperma de Urano, castrado por Cronos.
Assim que nasceu, Afrodite foi levada pelo vento Zéfiro para Citera e em seguida para Chipre, aquela ilha ao sul da Grécia.
A humanidade quer entender a tudo e quando não entende, teme, ama e inventa algo que lhe dê, a aparente sensação de controle.
O homem pretensioso buscou entender a mulher incompreensível em seus caracteres através de Afrodite.
Como entender Afrodite com a cabeça machista do capitalismo onde mulheres se classificam de acordo com a estética de seu tempo?
Para o capital, mulher bonita é produto de lucro, na venda ou na especulação. Como algo que se cobiça ou tesouro que se guarda escondido em casa, mas nem tanto, pois o tesouro precisa causar inveja, ou não é tesouro.
Foi no capitalismo que o homem passou a chamar a esposa de “minha mulher” como se mulher fosse objeto de posse.
Afrodite só é compreensível na cabeça do homem da Grécia Clássica.
Para esses, a beleza feminina não era produto, não era meio. Era o fim, o próprio objetivo de uma vida bem vivida que se desprende do fundo da alma, se expande pela derme, forma as curvas de um corpo que nada mais é do que o reflexo do próprio eu.
Onde também as curvas das rugas guardam seus mistérios.
Afrodite nasceu da própria decadência do macho que é mutilado em seu diferencial de poder e de força sobre a beleza.
Mistura-se às ondas do mar a mais bela criação divina, por ondas crispadas que simbolizam dedos imaginários que acariciam eternamente a todos os corpos que lhe penetram em seu interior e se dissolvem sem revelar seus mistérios.
O mar não tem sexo, pois é o fim e não o meio, enquanto o sexo é o gatilho para disparos de sonhos levados aos pontos mais distantes da terra pelo vento Zéfiro que carrega todas as emoções humanas e as multiplica para retornar as origens.
A adoração por Afrodite na Helade (como os gregos chamam o seu mundo) era tão diversa quanto intensa.
Por isso ela recebia importantes epítetos.
Há “Afrodite Urânia” que designa a deusa celeste da fertilidade, inspiradora do amor etéreo e superior, que se desliga da beleza corporal atingindo a beleza em si e que participa do eterno, mas também há “Afrodite Pandemos” inspiradora dos amores comuns, vulgares, carnais e dominados pelo prazer mais humano do sexo.
É a Afrodite Pandemos, “a vulgar” que era adorada pelo povo e fazia dela a mais amada entre os gregos.
Porque são vulgares nossos amores e não divinos. Porque somos movidos pela busca do prazer intenso e inexplicável, sem origem ou propósito superior. Somos humanos que buscamos no próximo o seu oposto, a alegria que se acredita ter fugido de dentro de si, para se esconder no outro, e queremos nossa alegria de volta.
Se somos divinos em essência, somos vulgares na vivência.
Então, não fuja da resposta que não precisa ser ligeira, você homem experiente ou menino.
Diga sem medo, homem de todas as idades, nacionalidades e matizes.
Quantas afrodites você amou?
Encontrou em sua amada a face de Urânia? Ou seu coração chegou ao êxtase no amor de uma Pandemos.
Não... não se desculpe, todo o amor é grande e vale à pena.
Perceba que assim como as espumas do mar foram berço para Afrodite, a mais linda entre todas as lindas, nosso coração deveria ser o berço eterno do amor que não precisa de explicação.
E se ainda não amou nenhuma, chore a vontade, mas não se esqueça de pedir a Zéfiro que lhe traga uma estrela, aquela Dalva, que os gregos identificavam como se fosse a deusa, para iluminar seus dias.
Prof. Péricles
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