quinta-feira, 7 de setembro de 2017

NO MEU NÃO


Por Eugênio José Guilherme Aragão



O título desta nota não contém erro ortográfico. Remete a uma das frases preferidas de Rodrigo Janot em legítimo mineirês, também disseminada como “lei da nudez": "nu d'ês é bão, no meu não!".

A frase denuncia escapismo, atitude de quem não gosta de enfrentar riscos a si. Quem a escolhe como moto de vida profissional demonstra não ser um líder, no sentido próprio da palavra, alguém que sobressai por virtudes que possam ser tomadas como exemplo a ser seguido pelos outros. Nenhuma sociedade sobreviveria regulada pela “lei da nudez" e, muito menos, uma instituição.

O episódio revelado em fragmentos na noite de ontem é mais um espécime prático de aplicação da lei da nudez. Rodrigo Janot se contorceu para explicar o inexplicável e concluir: "no meu não".

Reconheceu o óbvio: as gravações de Joesley foram fabricadas em casa, por instigação da equipe do Procurador-Geral da República e sem autorização judicial. Insistiu, porém, em que, como provas, seriam íntegras, plenamente aproveitáveis. Afinal, não seria a "suposta" molecagem de Marcelo Miller, seu ex-auxiliar, que colocaria tudo a perder. "No meu não".

Nenhum penalista, ainda que iniciante, subscreveria a ressalva sobre a integridade da escuta ilegal de Michel Temer. Escutas ambientais só são lícitas, sem autorização judicial, se forem tomadas por quem, partícipe no interlóquio, queira usá-las em defesa própria. Este é o entendimento solidamente firmado pelo STF. Não foi este o caso das gravações de Joesley.

O que se tornou público ontem foi o uso de um prospectivo delator premiado como longa manus do ministério público, clandestinamente plantado no domicílio alheio, para ali extrair informações da boca de um alvo de devassa política. Sim, porque aquilo que estava em curso quando da gravação do alvo não podia ser chamado de “investigação”. Esta pressupõe fato determinado, completado no passado. Já a devassa é a busca frenética de um fato comprometedor. É o que a Força Tarefa da Lava Jato tem feito incessantemente, em Curitiba e em Brasília. Usar um prospectivo delator premiado para essa tarefa é iniciativa do melhor estilo mafioso. Lembra cena típica de filme sobre a “Cosa Nostra”, em que um pequeno batedor de carteira com sonhos de grandeza quer entrar para a organização e é submetido a teste de valentia e lealdade: obriga-se o pobre coitado a matar um policial, para mostrar do que é capaz, como um aperitivo de sua utilidade para a organização. Joesley, ao que tudo indica, foi usado como o batedor de carteira. Foi obrigado a oferecer à Procuradoria Geral da República um aperitivo para conquistar a premiação. O aperitivo era Temer.

Ninguém no grupo da Lava Jato pode dizer que não sabia dessas práticas. Muito menos o chefão.

O uso de prospectivos delatores para a escuta ambiental não autorizada tem sido recorrente. Foi assim com Bernardo, filho de Nestor Cerveró, que gravou Delcídio do Amaral; foi assim com Sérgio Machado, que gravou José Sarney, Renan Calheiros e Romero Jucá. No caso de Delcídio, a crueldade foi requintada: após ter, este, fechado negociação com a Procuradoria Geral da República, por acordo do qual constava cláusula de sigilo por três meses, deu-se que a cláusula não foi aceita pelo relator, Ministro Teori Zavascki, por não encontrar amparo legal. Por um desses acasos da vida, a gravação de Delcídio foi tornada pública logo a seguir, impedindo o senador a voltar atrás no acordo de delação.

Entre as patacoadas do acerto constava declaração do senador de que Dilma Rousseff teria, com a nomeação de Marcelo Navarro para o STJ, visado a obstar investigações contra a construtora Odebrecht. Uma hipótese sem qualquer lastro, como, agora, reconheceu a polícia federal, mas que serviu para abrir inquérito contra a Presidenta às vésperas da votação da admissibilidade do impeachment no Senado, com clara finalidade de desgastá-la perante a opinião pública.

O que causa perplexidade é o cinismo da gestão de Rodrigo Janot à frente do Ministério Público Federal, quando insiste em que sua atuação tem sido estritamente “técnica”. Façam-me rir. Já o disse alhures, o técnico é uma forma de dar roupagem de isenção a decisões que são essencialmente políticas.

O direito usa a técnica como meio de legitimar essas decisões. Mas, decidir sempre é optar. O julgador opta entre, no mínimo, duas teses: a do autor e a do réu, ambas revestidas de fundamentos jurídicos e, portanto, ambas plausíveis se sustentadas com boa técnica. A independência do juiz está no intervalo entre essas teses, que tem o nome de lide. Não pode decidir fora dela, pois seria decidir “ultra petita”, como se diz no bom jargão profissional. A opção, quando não balizada por sólida jurisprudência, é algo completamente subjetivo. E o juiz faz política ao optar. Assim também o faz o ministério público quando decide, ou não, levar um caso adiante.

Mas política não é sempre molecagem. Ela funciona como tempero necessário para preservar as instituições e a governabilidade. Pressupõe-se de quem vai decidir que tenha equilíbrio e senso de justiça, de correção, de critério – virtudes que só se adquirem com muita experiência, ao longo de anos de atuação. Por isso, não é crível tenha o Procurador-Geral da República deixado um grupo de procuradores verdes, sem seu cabedal, rolar solto. O procurador Marcelo Miller, que, pelo que se anuncia, estaria por detrás dessa “técnica” de exigir aperitivos de prospectivos delatores premiados, com meros treze anos de casa, não pode ter agido por conta própria. As informações colhidas por sua “técnica” foram usadas não só em juízo pelo chefe da instituição, mas, também, pela instituição-corporação (hoje é difícil divisar entre ambas), para fazer seu barulho e adquirir musculatura – política(neste caso, com sentido de molecagem mesmo).

Das duas uma: ou o Procurador-Geral se revelou um grande irresponsável, deixando o barco correr enquanto gente de sua equipe pintava e bordava com falta completa de ortodoxia técnica; ou então ele era parte da trama, aquiescendo com a “técnica” de Miller.

Por erro de cálculo estrutural, desabou o edifício que homiziava a política da “técnica” de Janot. Ficou exposta à curiosidade coletiva. Fez tudo errado. Confiou em quem não devia ter confiado. Omitiu-se na defesa da democracia e deixou de exercer o que a Constituição lhe atribuiu – ser "Chefe do Ministério Público da União" (art. 128). Preferiu as intrigas da politicagem interna e o discurso corporativo fácil. Revelou-se um ignorante no jogo da macropolítica. Traiu quem lhe dera a mão, não para beneficiar quem quer que seja, mas para tirar o país da polarização inaugurada com o processo do chamado “Mensalão”.

A "lei da nudez" falhou e não tem como salvar o do Rodrigo Janot.



sábado, 2 de setembro de 2017

GUERRA NA VENEZUELA, ESTILHAÇOS AMAZÔNICOS


Por Jaime Sautchuk


Começando pelo começo, não devemos ter dúvidas de que o tresloucado presidente estadunidense é capaz de cumprir a promessa. A indústria de armamento dos Estados Unidos, que injetou muita grana na campanha eleitoral dele, está mandando a conta, pedindo alguma guerra que encha seus cofres com bilhões de dólares.


Pode estar muito próxima outra guerra imperialista em floresta tropical


Nessa sinistra empreitada, Trump terá outros apoios internos em seu país, entre políticos, militares e diplomatas, por exemplo. E também externos, entre os quais, por certo, de alguns mandatários sul-americanos; inclusive do atual governo golpista de Michel Temer, que já tem se manifestado a favor da direita venezuelana, igualmente golpista.


Todos fingem ignorar as imediatas consequências que um conflito desta natureza traria ao Brasil, queiram eles ou não. A vasta fronteira terrestre entre os dois países, por si só, já é um convite ao compartilhamento de um conflito armado na região. Esses limites vão do Sistema Parima de Serras (onde está o Pico da Neblina, ponto mais elevado do Brasil) no sentido oeste, pela Planície Amazônica, até encostarem na Colômbia.


No lado brasileiro, a área lindeira tem a cidade de Pacaraima, em Roraima, que já é o ponto de entrada de imigrantes venezuelanos e, em caso de guerra, será certamente transformada em centro de refugiados.


Mas, o restante é habitado por povos da floresta. Entre os quais alguns grupos indígenas binacionais, como é o caso dos Yanomamis, sobre os quais um conflito terá consequências pouco previsíveis. O certo é que essas populações só passaram a ter apoio oficial do estado venezuelano nos governos de Hugo Cháves, no regime hoje liderado por Nicolás Maduro.


De quebra, vai sobrar pra Guiana Francesa e pro Suriname. Vizinhos nas águas territoriais no Oceano Altântico. Porém, o que é mais grave, vai sobrar também pra Guiana. Cuja existência nunca foi reconhecida pelos venezuelanos de todas as cores; que pleiteiam territórios daquela ex-colônia britânica. Em verdade, mais da metade do país faz parte do Território Essequibo; que pertenceria à Venezuela, segundo tratados internacionais, e é rico em petróleo.


Aliás, nessa região está também a cidade de Lethem, onde funciona uma zona franca que atrai turistas e comerciantes de Boa Vista (RR) e Manaus (AM); durante o ano inteiro. Segundo a Polícia Federal. Em média, todos os dias 4 mil automóveis brasileiros cruzam a fronteira da Guiana com destino a esse centro de compras.


Ou seja, toda nossa divisa norte estará em meio ao conflito. E, com certeza, milhares de brasileiros pegarão em armas contra os invasores ianques e seus aliados internos na Venezuela.


São, portanto, muitos os estilhaços que atingirão o Brasil, caso essa guerra imperialista venha mesmo a ocorrer.




Jaime Sautchuk, é jornalista.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

ESTADOS UNIDOS É AQUI

Tem coisas que, geralmente não podemos escolher.


Uma delas é vizinho.


Às vezes está tudo maravilhoso e de repente o vizinho do lado, sujeito gente fina, se muda e para seu lugar chega um chato ao quadrado.


Fazer o que? São coisas da vida.


Agora, o que aconteceu com os moradores do bairro Passo d’Areia, em Porto Alegre (entre eles, eu), é algo de cruel.


Já tivemos muitos vizinhos, ao longo de muitos anos nessas paragens, quase todos amigos.


Pouquíssimas broncas.


Mas, eis que, sem aviso prévio, se instala no bairro, com pompa, bandeira e águia... o consulado dos Estados Unidos da América do Norte.


Sério! Deve ser castigo.


Logo no meu bairro?


Se engana quem pensa que é implicância com os irmãos do norte e que eles chegaram na boa.


Negativo.


Chegaram no velho estilo, somos o melhor do mundo e sai da bando de índios...


Compraram um velho prédio de um supermercado e construíram tudo novo.


Interessante é que na construção abocanharam metade de duas ruas. Pode isso produção? Cadê o prefeito? Ah... deixa pra lá prefeito em Porto Alegre só existe para defender dono de empresa de ônibus.


Pelo menos eles foram fiéis a tradição. Digo, a tradição de invadir a terra dos outros. No caso, metade de duas ruas. Um pedaço do Brasil.


Além disso expulsaram a banca de revistas do seu Manuel que a mais de trinta anos estava no mesmo lugar, na frente do supermercado.


A segurança na área chega a ser intimidadora. Guardas armadas com cara de agentes de filmes de espionagem.


Até abandonei a ideia de ir vestido de muçulmano e carregando uma sacola no dia da inauguração.


Tudo bem.


Nos tempos atuais pós golpe eles mandam, compram, sem pedir.


Só o que falta é ter que conviver com procissões de coxinhas que pensam que devem ao menos uma vez na vida conhecer seu templo.


Eu que guarde minha fantasia de homem bomba.


Estados Unidos é aqui.




Prof. Péricles

domingo, 27 de agosto de 2017

COPACABANA ME ENGANA




Por Maria Lúcia Dahl

Descobri que meu senso de direção não era essas maravilhas, quando meu ex-marido, desesperado com minhas idas e vindas a bordo do querido fusca, implorava ao meu lado: “não seja insegura, meu bem, quando você achar que é pra esquerda, vá pra direita! ”


Então, quando vi as novas placas espalhadas pela cidade implorando-nos por tudo o que é mais sagrado, que “acredite na sinalização”, como se fosse um dogma de fé, espécie de mantra que se vai repetindo pelo caminho até incorporá-lo ao nosso inconsciente, deixei meu marido de lado, e passei a acreditar piamente nelas, quando saí de Correias para o Rio, junto com minha amiga e minha irmã.


Dirigindo o fusca, segui­a religiosamente, como uma crente diante de um Pai de Santo famoso, e por causa disso, fui parar na Penha, Irajá e Guadalupe.


Dez horas da noite. Ninguém na rua. Então, diante da impossibilidade de alguma troca de informação com algum ser vivo, continuamos, já exaustas, a viagem por um deserto de Saara, até sermos surpreendidas, de repente, por um motel.


Salto, aliviada, do carro, diante de uma remota possibilidade de informação e toco a campainha de uma portaria vazia. Esperamos na porta, as três, até que esta se abriu, fechando­-se imediatamente, em seguida, e por de traz dela: ninguém.


E agora? O que faremos, três senhoras distintas presas num motel em Guadalupe?


Tocamos novamente a campainha e um novo “abre­-te Sésamo” nos liberou de volta à estrada vazia.


Num acesso de fúria, descontrolado, minha irmã começou a gritar: “táxi! Táxi! ” e o eco a remedou, debochado: “táxi! Táxi! ”


Assim como uma miragem no deserto um homem surgiu da escuridão. Fitei-­o determinada, o que o fez fugir, apavorado, temendo um assalto. Então abri a janela do carro e gritei ao volante: “Moço! Pelo amor de Deus, onde fica Copacabana? ” Em disparada, ele gritou de longe, com o dedo indicador, apontando uma abstração:


“Tem que fazer o retorno! ” em meio ao eco que respondeu: ”ôrno, ôrno!”


Mais alguns quilômetros de desconfiança até me deparar com a prova dos nove à minha frente, escrito: “Campo Grande”, e como por milagre, um novo retorno, à direita, indicava a palavra mágica: Copacabana


Como um filho pródigo que, finalmente retorna ao lar depois de um longo período ausente, desembarco, feliz, diante de uma das minhas primeiras e mais belas referências da minha vida: a Princesinha do Mar!



Maria Lúcia Dahl, atriz, escritora e roteirista.

sábado, 26 de agosto de 2017

ÁLBUM DE DECEPÇÕES



Todo aquele brasileiro que possuí algum comprometimento com o país e a democracia, anda estocando em casa farto depósito de decepções.

Nos últimos tempos as decepções, se diversificaram de tal modo que, decidi lançar um álbum de figurinhas, para que se possa colecionar esse “tesouro”.

Sou do tempo que se curtia muito álbum. Figuras eram disputadas no jogo do bafo ou trocadas em comércio intenso de pátio de colégio.

Pois vou aproveitar minha experiência no “produto” e lançar um Álbum de Decepções. Desconfio que será o maior sucesso.

Claro, não faltarão aquelas figurinhas trazendo decepções mais raras como aquela com a foto de um ex-defensor da educação e governador do Distrito Federal apoiando o impeachment.

Muitas serão mais comuns e repetidas, como a que mostrará congressistas vendendo seus votos como quem negocia bananas.

Algumas figurinhas não terão imagem, só frases coloridas, como as “por minha mãe, por meu marido, meus filhos, voto sim”. Ou “pauta bomba” ou outra idiotice qualquer.

Com o tempo surgirão os debates sobre qual seria a decepção preferida. Essas escolhas de preferências sempre foram muito divertidas.

Por exemplo, a turma da preferência pelas decepções com o judiciário trocará figurinhas com o pessoal que acreditava que a Polícia Federal era imparcial e impessoal, incapaz de permitir uma filmagem no meio de uma ação policial.

Claro que coisas assim as vezes provocam discussões apaixonadas.

Meu temor apenas é que, as decepções se vulgarizem, entendem?

Sabe a Lei da oferta e da procura? Pois é, quando um produto se banaliza, se torna muito farto, superando até mesmo a demanda, ele perde valor.

No caso das decepções em excesso o perigo é que elas desvalorizem o escândalo, as pessoas se anestesiem e deixem de dar qualquer importância.

Em todo caso já iniciei meu processo de criação para fabricar a primeiras figurinhas.

Tem as que trazem o rosto de juízes que viraram pop, onde aquela do juiz que sempre tem uma expressão de pouco caso com os outros será a mais procurada.

Tem uma página só daquele outro que rotulou que crimes do PSDB não vem ao caso e uma foto especial, daquelas grandonas no meio da página dele sorrindo e trocando confidencias com um dos maiores corruptos do pais.

Ah... tem duas páginas de meio, especiais, reservadas à mídia, com figurinhas estampando fotos de ancoras televisivos com expressão indignada e capas de revistas que fizeram a diversão da turma mais alienada.

Não poderia faltar a promoção para aqueles que derem a sorte de adquirir uma figurinha premiada, tipo assim, um símbolo fascista de intolerância. Para esses felizardos o prêmio será uma cópia do grampo criminoso contra a presidente.

Bem, está tudo ainda muito no começo, e devo me apressar antes que alguém tenha a ideia de fazer um filme de humor tipo pastelão e torne meu álbum algo superado.

Mas, eu já tenho minha decepção preferida. E está bem na primeira página, no início do álbum. Uma sequência de três ou cinco figuras que mostram a esquerda acreditando em papal Noel e se deixando derrubar como uma fadinha virgem.

E você qual é sua decepção favorita?





Prof. Péricles

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O SILÊNCIO


Por Vladimir Safatle


Há algo de instrutivo no ritual que o Congresso Nacional ofereceu ao país na última quarta-feira, quando um ocupante do cargo da Presidência, gravado em situação flagrante de prevaricação e corrupção passiva, formalmente denunciado pela Procuradoria Geral da União, foi poupado.

É difícil imaginar algum país no mundo que chegaria a um espetáculo tamanho de degradação comandado por uma casta de políticos dignos de filmes de gângsteres série B. Ao menos, depois dessa confissão de desprezo oligárquico pela opinião pública, quem sabe agora parem de falar que estamos em uma “democracia”.

Enquanto o país assiste a universidades públicas suspenderem as aulas por se encontrarem em situação falimentar, serviços públicos entrarem em deterioração, agências de pesquisa decretarem estado de calamidade e 3,6 milhões de pessoas saírem da classe média baixa em direção à pobreza, o ocupante do trono da Presidência, único presidente da história brasileira a ser denunciado pela Justiça no cargo, gastava milhões de reais em suborno explícito de deputados, uso de cargos públicos para aliciamento de votos e liberação de emendas escusas a fim de garantir sua sobrevida.

Ou seja, bem-vindos a uma cleptocracia que agora não faz nem sequer questão de conservar as aparências.

Há algo de terminal quando até mesmo as aparências já não são mais conservadas. Tudo isso com o beneplácito daqueles que dizem que o país precisa, afinal, de “estabilidade”.

Como se vê, há algo de muito interessante no conceito de “estabilidade” que circula atualmente. Uma estabilidade da pauperização, da precarização do emprego, do desmonte dos serviços públicos e da redução final da república brasileira a uma farsa macabra.

Contra isso, há aqueles que falam que receberam uma “herança maldita” do governo anterior. Alguém deveria explicar essa repetição compulsiva que nos acomete. Vivemos em um país onde todo governo usa o expediente de culpar a herança maldita do anterior para mascarar sua própria impotência. O cômico é que eles sempre encontram alguém a continuar a vociferar a mesma estratégia surrada de sempre.

Mas o que pode realmente impressionar alguns é o silêncio com que este momento foi recebido por setores da sociedade brasileira ou, antes, os expedientes que vemos para justificar a passividade. Por que as ruas não queimam, perguntam?

Ao menos três fatores deveriam ser levados em conta aqui.

Primeiro, porque estamos falando de um governo que atira em manifestantes em toda impunidade, como vimos na última manifestação de greve na Esplanada dos Ministérios. Ele usa seu braço armado para cegar estudantes com bala de borracha, atemorizar a população nas ruas com sua polícia gestora da desordem, ameaçar com punições os que entram em greve e ridicularizar o fato de 35 milhões de pessoas pararem o país (como na última greve geral). Ou seja, boa parte das pessoas não sai às ruas porque elas têm medo da violência do Estado, já que elas tacitamente sabem que não têm mais garantias alguma de integridade.

Segundo, porque há um setor da sociedade brasileira que nunca teve problemas com corrupção, mesmo que tenham saído às ruas em 2015 falando o contrário. Eles sempre votaram em corruptos notórios e continuarão fazendo isto. O único problema deles era com o governo anterior. Derrubado o governo, todos eles voltaram para casa e continuarão lá para todo o sempre.

Por fim, não há ninguém nas ruas porque a esquerda brasileira entrou em colapso. Presa entre a tentativa de ressuscitar o que morreu e a incapacidade de encontrar outra forma de incorporação genérica de sua multiplicidade de demandas em um ator político unificado, ela encontra-se paralisada e sem capacidade de dizer claramente o que quer, qual seu horizonte.

Queremos simplesmente retornar ao passado recente, conservar o que está sendo desmontado, ou temos algo a mais a propor? Conseguiremos fazer a maioria da população brasileira sonhar e acreditar em sua própria força de transformação e luta ou empurraremos todos a um horizonte desinflacionado de mudanças, como se isso fosse a expressão de um realismo duro, porém pretensamente necessário?

Sem clareza acerca desses pontos, ninguém avançará um passo.