quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

REFORMA TRABALHISTA RIDÍCULA


Por Tarcísio Lage.


12 horas é pouco quando se nada contra a corrente. 24 horas, quem sabe, avança-se meio metro. O mais provável, quase certo, no entanto, é que se morra de cansaço na jornada.

A reforma trabalhista de Temer vai nesse sentido. É incrível que não se possa enxergar o que está acontecendo nas últimas décadas, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. E, infelizmente, medidas esdrúxulas como essa reforma trabalhista do governo são aplicas Planeta afora.

Na Europa, por exemplo, muitos países estão modificando as leis de aposentadoria aumentando a idade para 70 ou mais anos, quando não há trabalho, sequer, para os jovens recém lançados no mercado.

Também não é à toa que a maior parte dos empresários e dos sindicatos picaretas esteja batendo palmas para a reforma. Afinal, eles andam há muito tempo de mãos dadas para atingir seus objetivos: lucro máximo para os primeiros, não importa o que aconteça com o conjunto da sociedade, e privilégios para uma parte da categoria que representam, para os segundos.

A verdade é essa: a civilização do trabalho está morrendo. As tarefas manuais estão ficando restritas a um pequeno número de pessoas, umas especializadas, pequena minoria, e as outras classificas de pau para toda obra com salários de merda.

Engels, o amigo capitalista de Marx, já dizia que a mão humanizou o macaco. A mão, com os cinco dedos, um deles o polegar, o diferencial humano, é o melhor instrumento de trabalho que se conhece na natureza. Pelo menos na porção do Universo conhecido.

O engenho humano, nascido das mãos, desembocou no correr dos séculos em avanços extraordinários. No século passado, o avanço foi extraordinário, época do automóvel, do avião, da cadeia de montagem e, se quiserem dar um grau de patético nesse avanço, da bomba atômica. Mas é no correr deste século que as transformações entraram numa espiral potencializada e que tende a abolir definitivamente o trabalho manual que ficará, quem sabe, reservado a artistas que possam conceber formas fora do alcance das máquinas. Quem sabe?

Quando cheguei pela primeira vez a Europa, no final de 1970, era incrível a força dos sindicatos. Na Grã-Bretanha, onde morei quatro anos, por qualquer reivindicação se paralisavam trens, interrompiam-se serviços públicos e os operários cruzavam os braços nas fábricas. Mais do que isso, pela força dos sindicatos desenvolveram-se partidos sociais democratas fortes como os trabalhistas na Grã-Bretanha, na Alemanha, França (no caso o Partido Socialista), na Holanda, na Bélgica e, não vamos esquecer, o Partido Comunista Italiano. Ainda se acreditava que a classe operária ia ao Paraíso e quem já pensava que seu caminho era a extinção calava o bico.

Na Holanda, onde resido, ainda nos anos 80, falava-se continente afora de uma doença que os conservadores deram o nome de holanditis. A holanditis era a febre de protestos que grassava pelo país. Por qualquer coisa as ruas se enchiam de manifestações embandeiradas com a aderência de sindicatos e organizações sociais diversas.

De repente, no decorrer da última década do século passado, a Holanditis desapareceu, foi extinta, ao mesmo tempo que os sindicatos iam perdendo força. Foi por essa época que teve início, não só na Holanda, mas em quase toda a Comunidade Europeia, a liquidação de grandes conquistas dos trabalhadores, entre elas – talvez a mais importante – a estabilidade no emprego. Criou-se a ideia da flexibilização do trabalho com as reorganizações das empresas.

Segundo a legislação em vigor na época, na Holanda, por exemplo, o trabalhador depois do período de experiência, só podia ser demitido por justa causa. Com as reorganizações, as funções de muita gente foram extintas e, aí, as novas leis flexibilizaram as demissões. Em escala europeia, as dispensas foram de milhões com indenizações precárias e a imensa maioria não conseguiu novos empregos e ficou na rua da amargura na dependência de salários desempregos que tendem a diminuir.

Para o mau dos pecados, a sociedade do bem-estar social – bandeira dos partidos trabalhistas e socialistas – foi para o brejo. Ainda que a ultraconservadora Margareth Thatcher tenha contribuído muito para isso, foram os novos partidos trabalhistas, notadamente com o britânico com Tony Blair, que enterraram definitivamente o sistema. A nova social democracia entrou nos eixos capitalistas talvez porque não tenha mais de contrapor com medidas sociais a propaganda da extinta União Soviética.

A perversidade de tudo isso, a criação de batalhões de desempregados vivendo de migalhas, a produção de riqueza, de bens de consumo, não diminuiu. Pelo contrário, aumentou tanto ao ponto de produzir a crise de 2008, uma crise de superprodução e não de escassez. Nos Estados Unidos vimos o espetáculo surrealista de milhões de casas vazias sem ter a quem alugar ou vender ao lado de milhões atirados nas ruas.

Ora, pois, a reforma trabalhista do governo Temer segue quase ao pé da letra a receita europeia. A flexibilização das horas de trabalho, permitindo que uma pessoa possa ir até 12 horas diárias, é um contrassenso numa sociedade de desemprego crescente. E desumano do ponto de vista pessoal. 12 horas diárias só, e olhe lá, só em tempo de guerra. Ah, mas o trabalhador pode decidir. Mentira. Em caso de necessidade e conveniência a empresa vai exigir e, certamente, conseguirá. Os pelegos, atrás do projeto, estão aí para garantir isso.

Essa reforma das leis trabalhistas é tão ou mais ridícula que a pretensão de congelar, via constitucional, as despesas governamentais por 20 anos.



Tarcísio Lage, jornalista e escritor.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

DELENDA ESPHAERA EST


No século III a.C. Roma, que surgira como um simples agrupamento de camponeses já dominava toda a península itálica. Chegara então, o grande momento que deveria definir o seu futuro como um grande Império: a conquista das rotas comerciais do mar Mediterrâneo.

Acontece que essas rotas já eram dominadas por outro povo em crescimento, os cartagineses, habitantes do norte da África.

Seguiram-se então as chamadas “Guerras Púnicas” assim chamadas porque os habitantes de Roma, os latinos, chamavam os cartagineses de púnicos, ou seja, fenícios já que a cidade de Cartago havia sido fundada pelos fenícios.

Essas guerras (foram três ao longo dos séculos III e II a.C.) definiram não só o destino dos povos diretamente envolvidos como da própria civilização ocidental, pois, o vencedor iria pintar com suas cores culturais o futuro do mundo.

Roma venceu as primeiras duas guerras, e depois de sua vitória na batalha decisiva de Zama, em 202 a.C., impôs duras condições aos Cartagineses que, dessa forma, perderam muito de sua importância política e econômica, embora mantivessem a independência.

Lenta e silenciosamente, porém, começou a se reerguer dos escombros e, utilizando-se de sua experiência recente de grande potência local passou a cicatrizar suas feridas.

Tornou-se um inimigo em crescimento, silencioso e astuto, na espera do momento da revanche.

Aparentemente, apenas um homem percebeu esse reerguimento e o perigo que Cartago poderia representar no futuro ao poder de Roma: Catão, também chamado de Catão, o Velho.

Esse político foi embaixador romano em Cartago no ano de 153 a.C. e se impressionou pelo renascimento econômico cartaginês. De volta a Roma passou a denunciar obsessivamente esse renascimento que considerava ser o maior perigo para o seu país.

Ficou tão obcecado em fazer seus conterrâneos entenderem o perigo representado por Cartago que, acabava todos os seus discursos, independente do assunto tratado, com a expressão “centerum censeo Carthaginem esse delendam” que significa “quanto ao resto, penso que Cartago deve ser destruída”.

Além disso, era comum iniciar qualquer conversa com “delenda Carthago est”, ou, “é preciso destruir Cartago”.

O Brasil precisa urgentemente de um Catão.

Alguém que de forma obcecada lembre às forças progressistas o tamanho do poder, não de um inimigo externo, mas de um império que reside em suas próprias entranhas.

Alguém que inicie e termine todo o discurso lembrando da necessidade de destruir a Rede Globo.

Não... nada de destruição material, de não ficar pedra sobre pedra como dizia o embaixador romano sobre Cartago, e sim, destruir a imagem de imparcialidade, de instituição interessada no jogo mas que apenas o transmite e não joga.

A Globo joga sim, e joga sujo, sem respeito às regras que, no entanto, utiliza para se defender.

O nosso Catão é necessário diante da enorme dificuldade que ainda temos de superar traumas criados no período militar quando a defesa do direito à informação e a luta contra a censura originaram tabus.

O militante da esquerda se inibe quando pensa em lutar contra uma organização cuja finalidade teórica é a informação independente. É como se lutasse contra algo que defendeu a vida inteira.

Além disso, quase todos alimentam no seu inconsciente uma imagem que mistura lembranças de infância. Pensar na Globo muitas vezes é lembrar as mais doces recordações de tempos antigos, e por isso, muitos recusam-se, consciente ou inconscientemente acreditar em tudo de mal que essa marca representa.

O nosso Catão deve lembrar a todos que essa organização é muito mais do que apenas uma rede de televisão.

É uma rede autoritária de múltiplos tentáculos que vai do jornal impresso ao rádio, da televisão ao mundo da informática. Que seu poder econômico originário de parcerias com os poderosos lhe permitiu a virtual monopolização de um setor tão crucial que já foi denominado de quarto poder, a imprensa.

A maior sabedoria do inimigo é se parecer amigo para confundir e dividir seus adversários.

Essa rede imensamente poderosa foi gestada pela própria Ditadura Militar e apoiou o autoritarismo, elegeu um político até então desconhecido em 1989, presidente da república, interfere diretamente em todas as eleições em todos os níveis desde 1985, e foi fundamental na criação de fraudes como a manutenção do Plano Cruzado para vencer a eleição constituinte de 1986 e, agora, é a maior responsável pelo golpe que derrubou da presidência uma mulher inocente e eleita por mais de 54 milhões de votos.

O que falta para entendermos o que realmente representa a Rede Globo?

É uma missão árdua e espinhosa, mas que alguém da esquerda brasileira terá que assumir.

Uma missão já desempenhada por Leonel Brizola num passado recente e que precisa ter continuidade. Algo que esteja claramente presente em seu discurso político, sem concessões, sem acordos, sem tolerância, como nos discursos de Catão, o Velho.

Para quem acha a missão impossível é importante lembrar que em 146 a.C., na terceira Guerra Púnica, Cartago foi totalmente destruída, deixando de ser a maior ameaça à expansão romana.

Catão tinha razão.







Prof. Péricles

sábado, 11 de fevereiro de 2017

A BESTEIRA É UMA DEFESA


Se nossas vidas fossem movidas apenas por coisas sérias e assuntos úteis, seria uma aflição maior do que já é.

Deveria constar lá na Declaração dos Direitos Humanos – Todo homem tem direito de gastar seu tempo com bobagem quando assim o quiser.

A bobagem, o trivial, a famosa “conversa fora” é o que mantém saúde mental, aliás, tão ameaçada nos últimos tempos.

Sabe aquele momento em que você simplesmente não quer falar nada de assunto sério?

E é bem por isso que, envergonhados, fugimos daquele amigo que, sabemos, irá nos trazer informações úteis, porém preocupantes, no ambiente de trabalho.

Alguns personagens históricos tornaram-se conhecidos por não utilizarem o expediente do “assunto sem importância”.

Napoleão Bonaparte, por exemplo. Dizem que o grande general jamais foi visto fazendo qualquer comentário menos sério, ou numa roda de amigos de como aquela guria era gostosa.

Mas isso foi bom pra ele?

Napoleão era um obstinado em seus objetivos de conquistar a Europa e unifica-la sob seu reinado.

Como o restante da Europa não concordava com ele, sofria de uma gastrite que jamais o deixou em paz, nem nas grandes batalhas, nem quando morreu vítima de câncer (adivinha) no estômago, esse órgão que sofre mais do que os outros com o mau humor.

É linda a imagem que se faz dele contemplando as distâncias sob as pirâmides de um Egito conquistado, mas, confesso que preferia vê-lo falando que “o calor nesse verão egípcio é um saco!”.

Hitler também, nunca foi visto numa postura menor do que a que julgava própria a um Fuhrer, mas esse, todos nós sabemos como terminou.

Hoje em dia, falar bobagens e rir de piadas sem graça não só é aconselhável como uma boa estratégia para suportar a avalanche de besteiras que se pretendem sérias que temos que ouvir, ou ler.

Tipo assim, falar mal do treinador do nosso time ou do juiz, mesmo sabendo que ele tinha razão ao não marcar pênalti a nosso favor, ou por ter marcado, contra.

Salve as besteiras e os assuntos amenos! São eles que impedem a superlotação dos hospícios.

É uma espécie de defesa contra os absurdos a que estamos sujeitos.

Bom fim de semana a todos. Que possamos jogar bastante conversa fora para voltar afiados e dispostos à guerra, na segunda-feira.


Prof. Péricles

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

QUERO SABER


Por Maria Fernanda Arruda


Não estou interessada na peruca do Eike ou no rivotril do Cabral ou na depressão da mulher dele.

Quero saber da morte do Teori.

Da delação da Odebrecht (950 depoimentos de 77 executivos - pronta há meses).

Da delação do Cunha (rasparam a cabeça dele?) e daqueles 200 milhões que disseram ser dele.

Da liberdade de Cláudia Cunha e filhos.

Dos 23 milhões do Serra depositados no exterior.

Do enriquecimento meteórico da filha de Serra.

Das 43 menções ao golpista Temer nas delações e seu cheque propina nominal.

Do terço de Aécio em Furnas - e tudo mais.

Do suicido do policial Lucas Arcanjo em BH.

Da prisão do jornalista Marco Aurélio Carone por 9 meses em BH.

Da liberdade da irmã de Aécio.

Da propriedade de quase meia tonelada de pasta de cocaina voando num helicóptero da família Parrella.

Da propriedade do jatinho que vitimou Eduardo Campos.

Da propina do filho legítimo de FHC.

Do sustento da amante de FHC com dinheiro público.

Dos milhões recebidos por Alckmin.

Das provas contra Lula.

Das provas contra o filho de Lula.

Dos bens bloqueados do Eliseu Padilha.

Das propinas do Moreira Franco.

Das menções do nome Dilma nas delações.

Do roubo da merenda de SP.

Dos desvios no metro de SP.

Do terreno roubado por Doria em Campos do Jordão.

Da sonegação fiscal do vice prefeito do Rio.

Da sonegação milionária das Organizações Globo.

Da propriedade daquela mansão de praia que os Marinhos negam ser os donos.

Da sonegação dos membros da FIESP.

Do bloqueio dos bens de Eduardo Paes.

Do empresariado carioca que chupou mais de 180 bilhões do RJ em isenções fiscais duvidosas em 9 anos.

Dos privilégios absurdos do nosso judiciário.

Etc... e põe etc nisso. E só pra ficarmos nos últimos anos.

Faço questão de não fazer coro com a pauta ditada e imposta por esta mídia canalha por pura conveniência.



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O GALO DESAFINADO



Um amigo, nos tenebrosos anos da ditadura militar, passou por momentos terríveis.

Logo após a decretação do “Pacote de Abril”, em 1977, no governo pendular do General Geisel (pendular porque oscilava entre medidas de abertura política e retrocessos) ele foi, literalmente sequestrado, quando saía do colégio onde fazia o segundo grau e era líder do grêmio estudantil, lá pelas 23 hs de uma quarta-feira.

Jogado ao solo de um carro, foi imobilizado sob a mira de um trezoitão, como se dizia naquela época, sendo levado para algum ponto da periferia de Porto Alegre. Durante o trajeto não pode levantar a cabeça e foi ameaçado de morte o tempo todo.

Quando o carro finalmente parou, foi jogado para dentro de uma pequena casa de material, com telhadinho clássico, onde passou imediatamente a ser brutalmente agredido por três e às vezes quatro agressores simultaneamente, enquanto outros dois apenas assistiam. Quando as agressões paravam, um dos “assistentes” fazia perguntas que ele não sabia e outras que ele não queria responder.

Sofreu uns cem números de socos, tapas e telefones, que eram golpes dados com as mãos espalmadas ao mesmo tempo em ambos os ouvidos que davam uma sensação difícil de definir de tão angustiantes (às vezes com saco na cabeça que não lhe permitia ver nada, nem se “encolher” ante o golpe iminente).

A boca ficou tão inchada que adormeceu de forma que ele achava que estava com todos os dentes quebrados, mas não conseguia verificar se era verdade.

Os rins foram tão atingidos por chutes e pisões com o salto de botas que até hoje carregam sequelas.

Seu padecimento durou dias. As pancadarias eram realizadas a qualquer hora e quando ele não estava apanhando era trancado num cubículo totalmente vazio e sem luz onde ficava por um tempo indefinido, imaginando quando seria a próxima sessão de torturas.

Certa feita, lá pela terceira madrugada, sua atenção foi despertada pelo cantar de um galo. Ele lembrou do galo vermelho cantador de sua vó e riu por entender que esse, cantava algo que desafinado. Ficou pensando quem era ela para ser crítico do canto dos galos.

Estabeleceu-se, então, uma estranha relação entre ele e aquele galo desafinado de quem só ouvia o canto. De certa forma, tornou-se seu amigo invisível, como definem as crianças os seus amigos imaginários.

Aquele cantador da madrugada era o único elo de sua razão que ameaçava abandona-lo com o mundo além daquelas paredes lúgubres que, naquele momento, pareciam ser seu túmulo.

A partir de então, até mesmo quando estava apanhando pensava no “seu amigo” e que, mais tarde, ouviria o seu canto novamente e então poderia julgar se estava afinado ou não.

Foi a forma que encontrou para distrair a mente, manter-se calado e não enlouquecer.

Finalmente, sem aviso, foi carregado, já que não conseguia caminhar, até o mesmo veículo que o trouxera, e novamente circulou sem que soubesse para onde iria. Imaginou que seria fuzilado em algum lugar ermo.

Mas, não foi isso que aconteceu. O carro freou em determinado ponto de uma Porto Alegre adormecida na madrugada, e foi jogado na calçada, onde permaneceu semiconsciente, sonhando embolado com a mãe, com o galo, com a avó, a namorada, o mar e outras coisas confusas, sentindo gosto de sangue na boca, até o sol despontar, quando foi visto por transeuntes e alguma alma piedosa pediu socorro, sendo, então, levado para o hospital.

Hoje ele já esqueceu a cara dos agressores e até mesmo o tom maligno de suas vozes, mas não esqueceu o cantar do galo amigo.

Diz que foi sua âncora que o prendeu a realidade e salvou sua lucidez.

Atualmente, predomina uma ciranda de cretinices espalhadas pelos meios reais e virtuais que transformou-se em uma inédita tortura aos que acreditam na justiça social, na solidariedade e no respeito às dores alheias.

São tantos os cânticos de ódio, os hinos ao preconceito, tão absurdas as agressões aos valores mais fraternos e democráticos que necessita-se, urgentemente, de elos e âncoras que finquem as relações saudáveis ao terreno da lucidez política.

Num mundo em que a morte de alguém é comemorada com escárnio é vital renovar a interação com o que é certo e errado e lembrar que o ódio pode enlouquecer.

A fé de que o homem seja majoritariamente bom e que os imbecis são minoria, deve ser a âncora que assegure a sobrevivência da razão sobre o sentimento de vingança.

Todos, os que acreditam no poder do bem, estão precisando de um galo desafinado, para suportar os golpes da prepotência e da covardia e para não esquecer que os que agridem hoje são, os mesmos que agrediram ontem.

Quanto ao galo desafinado, ainda aparece nos sonhos do meu amigo e seu canto enternece como fonte de coragem e esperança.

Muito obrigado, galo desafinado.





Prof. Péricles

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

PRECISAMOS FALAR SOBRE A MISS CANADÁ




Por Nathali Macedo


No século da diversidade, há alguma coisa mais antiquada do que concursos de beleza? Pior: Há algo que faça menos sentido do que eleger apenas uma mulher que represente uma “beleza universal” que simplesmente não existe?

O Miss Universo, maior deles, é mais obsoleto que aparelho de fax. Mais cafona que os quadros de Romero Britto. Mais desnecessário que os tweets de Janaína Paschoal.

Mas a indústria da moda insiste, e esses concursos atravessam os anos, invictos, e se mantêm como um pedaço horrendo de tempos que já deveriam estar superados: Os tempos em que promover a futilidade, a competição feminina e a ditadura da beleza não é só aceito – é lucrativo.

Este ano, o vexame não poderia ter sido maior: A Miss Canadá Siera Bearchell foi duramente criticada nas redes – e pelos apresentadores da Band, Cássio Reis e Renata Fan, é bom ressaltar – por estar supostamente acima do peso. “Ela não tem corpo de miss”, repetiam insistentemente.

Que os concursos de beleza não dão visibilidade a mulheres gordas de verdade nós já sabemos, mas dizer, em pleno século XXI, que uma mulher indiscutivelmente magra está acima do peso é um golpe na jugular. Beira o insano. (Um parêntese: meu manequim é 44 e eu me sinto maravilhosa).

Ter “corpo de miss”, lamento, está fora de moda. A ressignificação da beleza é um sintoma do empoderamento feminino, quer queira a indústria da moda, quer não.

A indústria da moda e a indústria da beleza são, aliás, unha e carne, são quase uma coisa só. Uma colabora com a outra e ninguém sai perdendo – ninguém além de todas nós, é claro.

Quanto, em números, vale a nossa autoestima para a indústria da beleza?

Quantos bilhões ela deixaria de lucrar se todas as mulheres acordassem amanhã se sentindo fabulosas? Quantos shakes milagrosos seriam jogados no lixo, quantas cintas modeladoras teriam de ser incineradas, quantos centros de estética iriam à falência?

Penso, não sem algum pesar, que é esta a lógica cruel da indústria da beleza: Quanto mais nos sentirmos gordas, feias e insuficientes, mais seremos lucrativas. Não importa se isso custa vidas de mulheres anoréxicas/bulímicas, ou das que morrem em procedimentos estéticos mal feitos. Não importa se isso custa a felicidade de quem vive todos os seus anos buscando uma beleza fictícia.

Permitam-me repetir o óbvio: O padrão de beleza não existe na realidade – é criado na mídia, retocado no photoshop e endossado pelos concursos de beleza e blogueiras fitness.

A beleza plástica reverenciada por estes concursos é uma fraude: As mulheres reais – que pagam contas, vão ao supermercado, buscam o filho na creche – nunca chegarão lá, não importa o quanto se esforcem, e não importa o quanto a indústria da beleza procure convencê-las de quem basta que se esforcem. Não basta.

Não basta ser linda, tem que ter barriga de tanquinho e espaço entre as pernas. Concursos de beleza são cruéis demais para aceitarem menos que a perfeição. São verdadeiras máquinas de opressões – que o digam Melissa Gurgel, Miss Brasil 2014, linchada nas redes por ser nordestina, ou Lupita Nyong, vítima de ataques racistas ao ser eleita a mulher mais bonita do mundo pela Revista People no mesmo ano, e, agora, Siera Bearchell.

Quando acordarmos para o fato de que podemos simplesmente recusar este lugar de bibelôs que desde sempre nos impuseram, quando nos convencermos de que beleza não se resume a barrigas chapadas e rostos perfeitos, talvez a “indústria da beleza” compreenda finalmente que somos mais que uma casca.

Comece uma revolução: Ame o seu corpo.