domingo, 20 de agosto de 2017

JOÃO SALDANHA - O FUTEBOL E O JOGO DA VIDA


Por Osvaldo Bertolino

A explosão de popularidade do futebol no Brasil nas primeiras décadas do século XX despertou análises como as de Gilberto Freyre que já em 1936, no livro Sobrados e Mucambos, mencionou “a ascensão do mulato não só mais claro como mais escuro entre os atletas, os nadadores, os jogadores de futebol, que são hoje, no Brasil, quase todos mestiços”. No artigo A propósito de Pelé, publicado na Folha de S. Paulo em 3 de setembro de 1977, Freyre comparou o rei a Machado de Assis, Euclides da Cunha, Heitor Villa-Lobos e Oscar Niemeyer. O que os une? A genialidade.

Um personagem que sintetiza o potencial do universo futebolístico é João Saldanha. 

Como jornalista, técnico e dirigente ele traduziu, mais do que ninguém, o que a crônica esportiva chama de “magia do futebol” - história brilhantemente reconstituída pelo jornalista André Iki Siqueira no livro João Saldanha, uma vida em jogo, publicado pela Companhia Editora Nacional. Em 550 páginas, Siqueira conta os 73 anos de vida do jornalista - dos quais a maioria vivida também como militante do Partido Comunista.

Saldanha chegou ao posto mais alto do futebol brasileiro em fevereiro de 1969, quando assumiu o cargo de técnico da seleção. Dirigiu o time brilhantemente em pleno governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, o general que comandou o período mais violento da ditadura imposta pelo golpe de 1964. Para ele, Médici era o maior assassino da história do Brasil. 

O paradoxo terminou treze meses depois, em 17 de março de 1970, quando Saldanha foi demitido depois de um turbulento período de interferência do presidente na seleção. Em uma “Carta aberta ao futebol brasileiro”, publicada pela revista Placar de 27 de março de 1970, o já ex-técnico da seleção puxou o fio da meada e explicou como o regime colocou verdadeiros cães de guarda para vigiar seus passos.

Foi uma trama urdida pelo presidente da então Confederação Brasileira de Desportos (CBD), João Havelange, e o ministro da Educação, o coronel Jarbas Passarinho. O ministro nega, no livro de Siqueira, que Médici tenha dado ordem para demitir Saldanha. Mas, em entrevista publicada pela Fundação Getúlio Vargas, o general e também ex-presidente da República Ernesto Geisel afirma que:

“Médici teve um papel importante nessa vitória (da Copa de 1970), porque influiu na nossa representação, inclusive na escalação da delegação brasileira e na escolha dos técnicos".

A crise começou quando surgiu o boato de que Médici queria a convocação de Dario, centroavante do Atlético Mineiro, sem o perfil das “feras do Saldanha” - como era chamada a seleção.

"O senhor organiza o seu ministério, e eu organizo o meu time”, respondeu o técnico por meio dos jornalistas".

Dias antes, em janeiro de 1970, ele esteve no México para acompanhar o sorteio das chaves da Copa do Mundo de 1970 e disse que havia terríveis torturas no Brasil.

“Levei para o México uma pilha de documentos sobre 3 mil e poucos presos, trezentos e tantos mortos e não sei quantos torturados”, afirmou.

O clima ficou pesado. Convidado para um jantar com Médici em Porto Alegre, Saldanha respondeu:

“Não vou. O cara matou amigos meus. Tenho um nome a zelar".

O caso terminou com duas sentenças sumárias.

“Está dissolvida a comissão técnica”, disse Havelange.

“Não sou sorvete para ser dissolvido”, rebateu Saldanha.

Franco, ele imediatamente foi ao microfone da Rádio Globo, onde trabalhava, e desancou:

“O futebol brasileiro tem tanta força que passará por cima desses homens, covardes e pusilânimes.”

A personalidade forte era uma herança dos pais. Gaspar Saldanha, o pai, além de renomado advogado foi maragato e participou das batalhas contra os chimangos no extremo Sul do Brasil. Era bisneto de Rodriguez Chávez, conhecido como Arredondo, nome de peso na independência do Uruguai. No Acre, o gaúcho que comandou a reconquista daquele espaço, José Plácido de Castro Jobim, era tio-avô materno de João Saldanha - sua mãe chamava-se Jenny Jobim Saldanha.

(CONTINUA)


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