quarta-feira, 10 de junho de 2015

TRABALHADORAS DE TURNOS DIFERENTES



Por Prof. Maria Alice Mendes


Quando eu volto para casa, à noite (e encerrando mais um dia de trabalho) eu volto pela Avenida Farrapos.

E os meus olhos se enchem de luzes vermelhas e mulheres quase nuas. E eu as vejo com tanta frequência, que já existe uma intimidade entre nós.

Eu olho para elas e percebo que elas entendem o meu olhar. Eu percebo que elas percebem que eu não estou nem reprovando, nem julgando.

Elas sabem que eu estou voltando, cansada, de mais uma jornada. Que eu estava trabalhando, ganhando o pão de cada dia, usando dos recursos que a vida me deu, dos talentos que me foram confiados. Das oportunidades que tive. Dos diplomas que conquistei.

Elas sabem tanto quanto eu sei: eu sei que elas também estão ali, lutando. E enfrentando o desconhecido.

Somos trabalhadoras, que trabalhamos em turnos diferentes. Mas somos a classe operária do Brasil.

É claro que há uma diferença fundamental entre nós - e a diferença está no risco.

Eu sei o que me espera, quando entro na sala de aula. Elas não sabem o que as espera, quando o cliente entra e bebe e paga pelo serviço que será prestado.

E não é piedade o sentimento que me invade, no momento em que nossos olhares se cruzam. Eu tento fazê-las ver que sou solidária. Que carrego outras cruzes, também pesadas.

Que tenho cicatrizes na alma. Que já fui humilhada, que já estive em várias encruzilhadas, acuada, que fiz escolhas erradas. Que já vivi tantos anos (e tantos enganos) que eu posso entender que a vida não é assim, tão simples, tão fácil, tão perfeitamente calculada.

Que há muitas pedras no meio do caminho e que "o mundo é um vasto mundo e que se eu me chamasse Raimundo, seria só uma rima, não seria solução."

Não, não há uma grande distância entre nós.

Mulheres são mulheres e mulheres se viram, mulheres sobrevivem e vivem conforme dá para viver.

Mas a Farrapos, a Farrapos é a minha rua noturna. Eu volto pela Farrapos. E hoje (eu nem sei por que motivo mudei a minha rota) hoje eu fui pela Farrapos.

Às quinze horas, eu estava numa Farrapos que eu não conhecia: cheia de sol, um céu muito azul, e essa árvore imensa, linda, de raízes profundas e antigas.

Então eu pensei nas operárias da noite (que certamente estariam dormindo, esgotadas). E parei no meio da avenida. E fotografei a vida. A outra face da vida.

Existem, sim, faces permitidas e faces proibidas.

Existem, sim, dívidas contraídas.


Maria Alice é professora de Português e Redação do Curso Vigor, de Porto Alegre.
Minha querida colega, das mais amadas de nosso meio.

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