sábado, 28 de novembro de 2015

OLHAI AS ONDAS DO MAR


Muitos admiradores da mitologia da cultura clássica desconhecem a mitologia brasileira. E isso realmente é lamentável.

Quando os africanos vieram cativos para o Brasil, trouxeram consigo sua fé, esperança e seus mitos.

Aqui, submetidos aos trabalhos forçados mais cruéis da história, foram impelidos a abdicar de suas crenças ancestrais e adotar a religião dos seus senhores.

Apesar de negro não ter alma, conforme a igreja, era preciso combater o paganismo.

Entretanto, a criatividade inata desse povo, ousou criar uma nova concepção religiosa que cresceu entre as frestas de liberdade permitindo, de alguma forma, continuar cultuando seus deuses.

O segredo era “botar uma roupagem” de homem branco em seus deuses e em suas crenças.

Essa mescla de culturas que dá origem a uma outra cultura, chamamos de sincretismo. E é devido ao sincretismo religioso que encontramos tantos elementos cristãos, como incenso, sinos e estatuetas de santos como São Jorge, São Jerônimo, Santa Bárbara e outros, nos terreiros dos cultos afro-brasileiros.

Nos cultos afro-brasileiros os orixás são elementos da natureza e suas relações com o mundo, entre eles e com a humanidade, explica uma série de segredos insondáveis pela razão.

Entre os orixás mais populares encontra-se Iemanjá, a rainha do mar.

Ao contrário dos gregos e latinos que imaginavam uma divindade homem assustadora (Posseidon ou Netuno) como o senhor dos sete mares, os africanos adoravam a figura meiga de uma mulher.

Em vez do homem de tridentes ameaçador, uma mulher, serenamente bela.

Em oposição ao temor, o amor de mãe.

O mar, caminho dos padecimentos desse povo e estrada natural entre seu passado de liberdade que findava com sua travessia e o mundo do cativeiro que o esperava, do outro lado, tinha tudo para representar o que mais doloroso se poderia carregar na alma, e a divindade dominante sobre as águas tinha tudo para ser tenebrosa e cruel.

Entretanto, Iemanjá é bela. É bondosa. É mãe amorosa de todos os seus filhos.

O mar, de onde saiu o primeiro aminoácido que daria origem à primeira célula, é mulher.

Como explicar visão tão sublime diante do caos?

Iemanjá não é a separação de um povo de seu passado, mas o elo que os une.

A estrela do mar, a rainha, a personificação da mãe, travestida de Nossa Senhora da Conceição, da Glória ou dos Navegantes nos cultos cristãos.

Ainda chamada em Angola de Kianda, rege todas as uniões, os aniversários além de todas as comemorações familiares e festas porque Iemanjá é alegria, é esperança, é compreensão, sem tridentes e sem ameaças.

Nos tempos em que os membros de uma mesma família eram separados pelos interesses comerciais de compra e venda, era a Iemanjá a geradora do sentimento de amor entre os entes queridos, dando sentimento e personalidade ao grupo formado por pai, mãe e filhos.

Enquanto os gregos viam no senhor dos mares o poder e a força que utiliza suas filhas, as sereias para encantar e levar os homens à morte, os africanos percebem tiveram uma visão mais humana na harmonia das ondas, a beleza das curvas e a eternidades dos seres

Em Cuba, também veste as cores azul e branca e é negra. Rainha negra do mar.

O mar se completa com a personificação feminina visto que nenhum outro lugar do planeta é tão fecundo.

Sabem os negros que no mar não existem senhores e diante de sua fúria não existem privilégios, por isso, todos sofrem do mesmo medo e suplicam do mesmo jeito por suas vidas.

Iemanjá tudo vê e a todos os seus filhos protege, não só aqui, mas lá na dimensão dos oceanos infinitos, onde a liberdade não se negocia pois está expressa em cada uma de suas gotas.

Haverá no universo mais segredos do que no mar e no coração de uma mulher?




Prof. Péricles



sexta-feira, 27 de novembro de 2015

REDE GLOBO, A TV QUE ILUDE O BRASIL

Por Vanessa Barbara


No ano passado, a revista "The Economist" publicou um artigo sobre a Rede Globo, a maior emissora do Brasil.

Ela relatou que "91 milhões de pessoas, pouco menos da metade da população, a assistem todo dia: o tipo de audiência que, nos Estados Unidos, só se tem uma vez por ano, e apenas para a emissora detentora dos direitos naquele ano de transmitir a partida do Super Bowl, a final do futebol americano".

Esse número pode parecer exagerado, mas basta andar por uma quadra para que pareça conservador. Em todo lugar aonde vou há um televisor ligado, geralmente na Globo, e todo mundo a está assistindo hipnoticamente.

Sem causar surpresa, um estudo de 2011 apoiado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que o percentual de lares com um aparelho de televisão em 2011 (96,9) era maior do que o percentual de lares com um refrigerador (95,8) e que 64% tinham mais de um televisor.

Outros pesquisadores relataram que os brasileiros assistem em média quatro horas e 31 minutos de TV por dia útil, e quatro horas e 14 minutos nos fins de semana; 73% assistem TV todo dia e apenas 4% nunca assistem televisão regularmente (eu sou uma destes últimos).

Entre eles, a Globo é ubíqua. Apesar de sua audiência estar em declínio há décadas, sua fatia ainda é de cerca de 34%. Sua concorrente mais próxima, a Record, tem 15%.

Assim, o que essa presença onipenetrante significa?

Em um país onde a educação deixa a desejar (a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico classificou o Brasil recentemente em 60º lugar entre 76 países em desempenho médio nos testes internacionais de avaliação de estudantes), implica que um conjunto de valores e pontos de vista sociais é amplamente compartilhado.

Além disso, por ser a maior empresa de mídia da América Latina, a Globo pode exercer influência considerável sobre nossa política.

Um exemplo: há dois anos, em um leve pedido de desculpas, o grupo Globo confessou ter apoiado a ditadura militar do Brasil entre 1964 e 1985.

Com esses riscos em mente, e em nome do bom jornalismo, eu assisti a um dia inteiro de programação da Globo em uma terça-feira recente, para ver o que podia aprender sobre os valores e ideias que ela promove.

A primeira coisa que a maioria das pessoas assiste toda manhã é o noticiário local, depois o noticiário nacional. A partir desses, é possível inferir que não há nada mais importante na vida do que o clima e o trânsito.

O fato de nossa presidente, Dilma Rousseff, enfrentar um sério risco de impeachment e que seu principal oponente político, Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, está sendo investigado por receber propina, recebe menos tempo no ar do que os detalhes dos congestionamentos. Esses boletins são atualizados pelo menos seis vezes por dia, com os âncoras conversando amigavelmente, como tias velhas na hora do chá, sobre o calor ou a chuva.

A partir dos talk shows matinais e outros programas, eu aprendi que o segredo da vida é ser famoso, rico, vagamente religioso e "do bem".

Todo mundo no ar ama todo mundo e sorri o tempo todo.

Histórias maravilhosas foram contadas de pessoas com deficiência que tiveram a força de vontade para serem bem-sucedidas em seus empregos. Especialistas e celebridades discutiam isso e outros assuntos com notável superficialidade.

Eu decidi pular os programas da tarde –a maioria reprises de novelas e filmes de Hollywood– e ir direto ao noticiário do horário nobre.

Há dez anos, um âncora da Globo, William Bonner, comparou o telespectador médio do noticiário "Jornal Nacional" a Homer Simpson –incapaz de entender notícias complexas. Pelo que vi, esse padrão ainda se aplica.

Um segmento sobre a escassez de água em São Paulo, por exemplo, foi destacado por um repórter, presente no jardim zoológico local, que disse ironicamente "É possível ver a expressão preocupada do leão com a crise da água".

Assistir à Globo significa se acostumar a chavões e fórmulas cansadas: muitos textos de notícias incluem pequenos trocadilhos no final ou uma futilidade dita por um transeunte. "Dunga disse que gosta de sorrir", disse um repórter sobre o técnico da seleção brasileira.

Com frequência, alguns poucos segundos são dedicados a notícias perturbadoras, como a revelação de que São Paulo manteria dados operacionais sobre a gestão de águas do Estado em segredo por 25 anos, enquanto minutos inteiros são gastos em assuntos como "o resgate de um homem que se afogava causa espanto e surpresa em uma pequena cidade".

O restante da noite foi preenchido com novelas, a partir das quais se pode aprender que as mulheres sempre usam maquiagem pesada, brincos enormes, unhas esmaltadas, saias justas, salto alto e cabelo liso. (Com base nisso, acho que não sou uma mulher.)

As personagens femininas são boas ou ruins, mas unanimemente magras. Elas lutam umas com as outras pelos homens. Seu propósito supremo na vida é vestir um vestido de noiva, dar à luz a um bebê loiro ou aparecer na televisão, ou todas as opções anteriores.

Pessoas normais têm mordomos em suas casas, que são visitadas por encanadores atraentes que seduzem donas de casa entediadas.

Duas das três atuais novelas falam sobre favelas, mas há pouca semelhança com a realidade.

Politicamente, elas têm uma inclinação conservadora. "A Regra do Jogo", por exemplo, tem um personagem que, em um episódio, alega ser um advogado de direitos humanos que trabalha para a Anistia Internacional visando contrabandear para dentro dos presídios materiais para fabricação de bombas para os presos.

A organização de defesa se queixou publicamente disso, acusando a Globo de tentar difamar os trabalhadores de direitos humanos por todo o Brasil.

Apesar do nível técnico elevado da produção, as novelas foram dolorosas de assistir, com suas altas doses de preconceito, melodrama, diálogo ruim e clichês.

Mas elas tiveram seu efeito. Ao final do dia, eu me senti menos preocupada com a crise da água ou com a possibilidade de outro golpe militar –assim como o leão apático e as mulheres vazias das novelas.



Vanessa Barbara é colunista do jornal "O Estado de São Paulo" e editora do site literário "A Hortaliça".






quarta-feira, 25 de novembro de 2015

UM RANZINZA EM PARIS


Por Apollo Natali


Outro dia me deu na telha de conhecer Paris. Ranzinzas como eu não devem ir a Paris.

Não me ligo a lugares, paisagens, museus, estátuas, viagens. História, sim. Tinha de ir a Paris. Sou chegado mais nos meus livros, no meu cachorro, no meu chuveiro, na minha cama de Romeu encalhado, na lembrança das mulheres que passaram.

Vidrado mesmo sou em gente e ideias. É isso.

Chegamos. Paris!

Nestas plagas só dá Torre Eiffel. É vista de qualquer canto, pois a cidade milenar é feita toda de prédios baixos, sem espigões. Estonteante, impactante a beleza desse entrelaçamento de aço de luzes douradas tremeluzentes que alcançam o céu.

O padre brasileiro Bartolomeu Lourenço de Gusmão, inventor do balão dirigível, esteve lá, faz alguns séculos, a dar voltas com seu brinquedo cheio de ar nessa torre da altura de um prédio de 100 andares.

Inaugurada em 1889 em comemoração ao centenário da Revolução Francesa, recebe pintura de 2 em 2 anos. Reformada a cada 7 anos. Está sempre lindamente nova.

Inquisição: o Santo Ofício cremou o padre brasileiro na fogueira, acusado de bruxaria por ter inventado o balão dirigível. Sabiam que Bartolomeu de Gusmão escondia dos inquisidores numa floresta os apetrechos do seu balão? Mais dia, menos dia, teria que subir. Foi pego. Só um ranzinza como eu pensa nessas coisas, em Paris.

Leia a placa da casa onde viveu Santos Dumont: o verdadeiro Pai da Aviação. Levantou vôo e aterrisou sob vivas no seu dirigível 14-BIS na Praça de Bagatelle, comecinho do século 20.

Os irmãos Wright, a História conta, não está na placa, isso digo eu, voavam com um fraquinho motor tipo um ponto zero. Esticavam um grande estilingue para pôr o avião no ar. Os manos americanos voavam em linha reta. Santos Dumont, motor potente, subia. Inventou apetrechos para dirigir a sua jeringonça para lá e para cá, para cima, para baixo, esquerda, direita. O brasileiro ainda cruzou os céus de Paris no seu Demoiselle, quer dizer Senhorita, um aviãozinho lindo lindo que voava como uma vespa, o delírio da Belle Èpoque. Grande Santos Dumont, resmunguei. 

O pessoal da fila acho que não entendeu.

Eis o Largo da Concórdia, não o do bairro do Brás, em São Paulo e, sim, o francês, o De la Concorde. É a praça onde a Revolução Francesa decepou na guilhotina o pescoço de mais de 20 mil nobres e aristocratas. Tanta pompa, tanto brilho, tanta arrogância, brutais relações de domínio sobre a pessoa, para, enfim, ficar todo mundo sem o mais valioso bem da espécie humana, o pescoço. O público se amontoava dias antes para ver o morticínio.

Fui dar uma olhada na rua Dè Sevres, onde viveu o líder de outra revolução que se seguiu na França, 60 anos depois desse corte em massa de cabeças. Uma revolução espiritual, liderada pelo ex-ministro da Educação do país, cientista, professor de astronomia, física, química, diretor do Instituto Educacional Pestalozzi, na Suíça, messieur Alan Kadec.

O novo revolucionário mostrou no seu livro O Céu e o Inferno o lugar para onde vão as almas dos déspotas depois da morte do corpo físico, os tiranos de todos os tipos, os do Estado, os domésticos, os midiáticos. O livro descreve a Justiça Divina, segundo o Espiritismo.

Estou de frente para a viela onde Alan Kardec morou e codificou as leis que regem o intercâmbio entre o mundo espiritual e o mundo físico, a chamada Doutrina Espírita.

A Rue Dè Sevre é hoje uma via de passagem deteriorada, abandonada, esquecida, as casas parecendo desabar.

Durante a realização, no século vinte e um, de um encontro espírita mundial, me contaram, a polícia cercou o pavilhão dos espíritas. As lojas de Paris exibiam placas: proibida a entrada de cachorros e de brasileiros. Isso no coração da cidade-berço do Espiritismo. Uma revolução ao avesso.

No meio da praça histórica de La Concorde.

Nesse chão de La Concorde, a Rainha Maria Antonieta chora para não ver seus filhos morrer na frente dela. Suplica para ser guilhotinada antes. Negativo. A senhora vai ver com seus próprios olhos a maneira brutal e sanguinária como o seu governo tirânico matava os filhos dos outros, rangem os revolucionários. Rios de sangue não teriam se formado, talvez, se a Rainha não tivesse mandado os pobres que não tinham pão, comer brioches. Infeliz rainha, desabafei irônica e ranzinzamente.

O passeio no metrô de Paris. Por baixo da cidade, uma rede de trilhos como teia de aranha com rodas de aço. Dão mapas para ninguém se perder no labirintão. Alguém já viu trens de metrô com pneus em vez de rodas de aço? Tem alguns, lá.

E não se vai a Paris sem ir ao Louvre. Um mundo de obras de arte e antiguidades juntas!

Para visitá-las todas, apregoou o guia do museu, levaríamos seis meses contemplando cada uma delas por um minuto e sem interrupção, nas 24 horas do dia. Ao delirar diante do encanto do original da obra mais visitada, a Monalisa, de Leonardo Da Vinci, apertado entre outros turistas, bateram-me a carteira. Do bolso de trás levaram-me os euros. Idênticas algumas ideias, lá como cá.

O Arco do Triunfo!

Em Roma, os legionários vencedores desfilavam por baixo do arco do triunfo deles. Em Paris, foram as tropas vitoriosas de Napoleão Bonaparte que cruzaram esse monumento francês. Decepção: o ranzinza aqui se amargurou lá, em plena Paris, com a reprise mental das tropas nazistas violando o Arco do Triunfo francês, chafurdando por baixo dele. Que horror.

No mais, uma visita à periferia de Paris me fez parecer que eu estava na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. Não me vi muito vidrado nas gentes da atual Paris. Os franceses que mudaram o mundo, hoje não se dão a mão ao se cumprimentar, não se abraçam, não são efusivos como gente italiana e brasileira como eu. Você lá, eu cá, assim me parecem os franceses de Paris.

Acontece que eu abomino um abismo afetivo entre seres humanos. Prefiro a calorosa Vila Cruzeiro. As francesas são lindas, lindas, eu vi, eu vi! As afetuosas vilacruzeirenses, muito mais.

Nada mais a declarar.




Apollo Natali foi o primeiro redator da antiga Agência Estado, foi redator da Rádio Eldorado, do Estadão e do antigo Jornal da Tarde. Escreve atualmete para diversos sites e blogs de notícia, como o Observatório da Imprensa.




segunda-feira, 23 de novembro de 2015

A FLAUTA DE PÃ




Pã (para os gregos) ou Lupércio, Fauno ou Silvano (para os latinos) era o deus dos bosques e dos campos. Deus dos rebanhos e protetor dos pastores.

Numa versão Pã é filho de Dryope com o Deus Hermes (Mercúrio), mensageiro dos deuses.


Sendo filho de um deus transitório (entre os deuses e mortais) Pã seria um ser de forma transitória (entre antropo e zoo). É representado com orelhas, chifres, pernas e barba de bode.

Em outra versão ele teria sido um dos filhos de Zeus com sua ama de leite, a cabra Amalteia.

Na visão latina era um deus alegre, que adorava tocar sua flauta e dançar com as ninfas instigando a sensualidade. Nos bacanais (orgias sexuais de Baco, deus do vinho) era constante a sua presença.

Era um ser instável que às vezes podia ser perverso e em outras extremamente bondoso.

Em Roma havia um festival em sua homenagem (Lupercália), celebrado nos dias 15, 16 e 17 de fevereiro. Os sacerdotes que o cultuavam vestiam-se de pele de bode.

Os antigos romanos, nos tempos em que Roma era pouco mais que uma aldeia, temiam a fúria dos lobos famintos e rogavam a sua presença para mantê-los afastados.

Na visão dos gregos era um ser extremamente angustiado pelas zombarias causadas por sua estranha forma animal. Com o tempo, essa divindade tornou-se inspiração dos solitários.

Vivia nas grutas mais profundas, ou como andarilho sem destino nas matas e campos.

O silêncio e a tristeza emanados por Pã impregnavam de tal maneira os seus domínios (os campos, bosques e matas) que podiam atingir aquele que perambulava sozinho esses lugares fazendo brotar em seu coração um medo aparentemente sem sentido dando origem a palavra pânico (de pã).

Em sua homenagem Zeus criou a constelação de Capricórnio.

Já, os senhores da Igreja cristã primitiva associaram sua forma com o demônio e a sedução e luxúria com o som de sua flauta.





Prof. Péricles

sábado, 21 de novembro de 2015

A SOLIDÃO DOS REJEITADOS



Nasci numa noite fria, sem lua.

Feio e repulsivo.

Minha própria mãe, Dríope, me abandonou ao ver meu rosto.

Meu pai, Hermes, foi zombado de tal forma pela minha aparência que me proibiu de chama-lo de pai por toda a eternidade.

Na terra dos deuses belos e conquistadores, nasci com pés de bode, chifres e uma barba espessa e áspera.

Desde criança convivi com as galhofas e zombarias. Com o olhar divertido dos fanfarrões reconhecidamente belos.

Só me restava a solidão.

Passei a viver nos campos e nas matas.

Conversava com o sussurrar dos ventos nas folhas mortas, e agradecia a neblina alta que escondia meu rosto dos desavisados.

Minha dor sempre foi imensa e ela contagiou todo o meu reino, dos pastos aos picos mais altos, das matas verdejantes até a restingas e dunas.

 Passei a ser temido por todos os viajantes que tinham que atravessar as florestas à noite, pois na solidão da travessia, quando só ouviam as batidas do próprio coração era comum serem contaminados por minha melancolia e por um medo inexplicável de estar sozinho.

As ninfas zombavam de mim sem a menor piedade.

Por isso, jurei nunca me apaixonar.

Mas fui traído pelo desejo duas vezes.

Na primeira vez me apaixonei por Syrinx que como eu, amava a solidão apesar de bela e encantadora.

Mas, ela preferiu a solidão eterna dos caniços a se entregar a uma entidade bizarra como eu.

Na segunda vez foi pela ninfa Pítis, que era tão bondosa e tinha o coração tão doce que conseguiu ver em mim mais do que a forma deprimente.

Mas Pítis era amada por Bóreas, o maligno vento do Norte que, num acesso de ciúmes soprou com tamanha impetuosidade que jogou minha amada ninfa num precipício sem fim.

Pítis foi transformada por Zeus numa árvore consagrada a mim (Pitis, pinheiro em grego).

Cada vez mais sofrido e isolado fiz uma flauta com sete tubos.

Meu irmão Cupido à abençoou e me disse que seus sons mágicos deixariam enfeitiçadas as mais belas, apaixonadas pela doce música de minha flauta.

Cupido me disse que o coração da mulher, quando enfeitiçado pela paixão, pode achar a beleza na alma de um homem e no seu talento, mesmo que dele nem mesmo o próprio homem suspeite.

Assim passei a jogar no ar os sons de minha dor misturados com a harmonia das saudades de Pítias.

As ninfas dançavam ao meu redor e me seguiam.

Mas, o amor enfeitiçado não é amor verdadeiro e mantive minha jura de nunca mais amar ninguém.

Quem eu sou?

Eu sou Pã, a divindade protetora dos rebanhos. Deus dos bosques e dos pastos. Protetor dos pastores.

Mas também sou o deus dos rejeitados, o senhor da solidão e mestre do amor perdido.

Quando se sentir só, apure seus ouvidos nas janelas de seu quarto.

Se tiver o coração enfeitiçado ouviras minha música no gemido enlouquecido do vento, que como eu, nunca será de ninguém.



Prof. Péricles



quinta-feira, 19 de novembro de 2015

SÍRIA, A EQUAÇÃO DO INFERNO

Criança Síria se rende ao confundir uma máquina fotográfica com uma arma




País de largas planícies e de desertos, além de altas montanhas, seu relevo facilitou desde tempos remotos a fixação de várias etnias, onde se destacam os curdos, armênios e turcos.

A região era espécie de protetorado da França e se tornou independente, após o fim da segunda guerra mundial, mas precisamente em 24 de outubro de 1945.

Após a retirada das tropas francesas da região, apenas em 1946, o país passou por um período de instabilidade até que em 1963 surgiu um partido poderoso, o Partido Baath, que uniu a maioria dos sírios e deu um golpe, assumindo o poder.

A Síria é inimiga mortal de Israel que, desde 1967, ocupa militarmente, as Colinas de Golan, território sabidamente Sírio e onde os israelenses desenvolveram uma indústria moderna de aços finos, altamente lucrativa.

Ao longo dos anos afastou-se da esfera dos Estados Unidos, tradicional aliado de Israel, aproximando-se da União Soviética, mais tarde Rússia, além da China.

Hafez al-Assad governou de 1970 até 2000, e seu filho, o atual presidente, Bashar al-Assad governa desde então, ou seja, há 15 anos.

Em 18 de dezembro de 2010, na Tunísia, teve início uma série de revoltas de cunho nacionalista e popular, que se expandiria para vários países muçulmanos, denominadas de “Primavera Árabe”.

Em março de 2011, ocorreram revoltas contra Assad e contra o Partido Baath.

Para alguns essas revoltas foram consequência da onda democratizante da Primavera Árabe. Para outros ela foi criada pelos Estados Unidos e aliados dentro da Síria, interessados em derrubar Assad o mais importante aliado da Rússia na região.

Embora o governo Assad se destaque pelo autoritarismo e pela eternização no poder, também se destaca por políticas sociais que lhe davam forte apoio popular.

Talvez, por isso, os rebeldes não obtiveram todo o apoio esperado da população e, assim sendo, não conseguiram derrubar o presidente ou fazê-lo renunciar.

Apoiado por importantes setores da sociedade e também de fora do país (especialmente o Irã), o Presidente manteve o poder, mas não conseguiu aniquilar o movimento de rebeldia.

Diante disso, a Síria vive desde 2011 uma horrenda guerra civil que literalmente destrói o país e massacra seu povo.

De um lado as forças do governo oficial; de outro as forças da “Coalizão Nacional Síria” como passaram a se chamar as forças da oposição.

A “Coalizão Nacional” recebe apoio logístico dos Estados Unidos e da OTAN.

A oposição rebelde é dominada por muçulmanos sunitas enquanto as principais figuras do governo são alauitas.

Essas denominações representam diferentes alas de pensamento dentro da mesma religião (islâmica) sendo que os sunitas (seguem as sunas além do Corão) são tradicionalmente considerados menos radicais e próximos do ocidente, enquanto os alauitas são xiitas, isso é, mais ortodoxos e distantes do ocidente (isso, claro, nem sempre ocorre de forma tão simplista).

A partir de 2013 a situação caótica de um país dividido (acredita-se que o governo tenha poderes apenas sobre 60% da população e 30 a 40% do território) surge o autoproclamado “estado Islâmico”.

O EI surgiu como uma das facções da al-Qaeda de Osama Bin Laden, depois se desmembrou desse grupo. Inicialmente lutou ao lado da oposição contra Bashar al-Assad, mas, nesse ano de 2013 passa a reivindicar um território próprio cuja área é composta por territórios da Síria e uma parte do Iraque.

Em junho de 2014 o EI proclama a criação de um Califado e Abu Bakr al-Baghdadi, seu líder, o califa da região.

Califa é o chefe de estado, um governante político e religioso e Califado, uma comunidade muçulmana governada pela sharia (a Lei do Corão) que iam se formando a partir da expansão muçulmana do século VII e VIII.

O primeiro a usar o título de califa foi Abu Bakr, sogro de Maomé após sua morte em 632.

O título de Califa deixou de existir no século XX, principalmente após o fim do Império Turco Otomano em 1924.

Em outubro de 2015 a Rússia anunciou sua participação direta no conflito com ataques aéreos ao Estado Islâmico.

A presença da Rússia preocupa pelos efeitos colaterais que pode ter.

Como aliados de Assad provavelmente aproveitem a oportunidade para atacar também os grupos rebeldes (aliados dos EUA lembra?) e um enfrentamento entre as duas superpotências não seria bom para ninguém.

A Rússia, inclusive, acusa as forças da coalizão EUA-Europa de estarem fazendo “corpo-mole”, não atacando adequadamente o EI, preferindo atacar as tropas leais ao presidente.

Existem ainda fortes indícios que o califado receba do próprio EUA aparato militar para manter os combates.

Os ataques do EI em Paris, são significativos. Eles demonstram que o grupo está sentindo a pressão militar russa já tendo, segundo algumas fontes, perdido cerca de 20% do território que já dominou.

O ataque fora da Síria é politicamente arriscado e militarmente suicida e o EI sabe disso.

Ao optar assim mesmo pela ação, parece ter concluído não haver possibilidade de sustentar a guerra por muito tempo e prepara-se para agir como a Al-Quaeda, ou seja, com ações do tipo guerrilha e fora do Oriente Médio.

Hoje a Síria é expressão do horror.

Com o governo atuante apenas em 40% do território a manutenção dos serviços públicos estrangulou. O respeito aos direitos mínimos da população não são assegurados por nenhuma das forças em conflito.

Abastecimentio de água e provisões, energia elétrica, transporte, etc deixaram de existir enquanto serviços básicos e a população, abandonada à própria sorte sofre com o desabastecimento e os combates que não respeitam nenhum limite geográfico.

Não há mais escolas para as crianças, nem trabalho para os jovens, pois toda a estrutura do país entrou em colapso.

Mais de 2,5 milhões de sírios fugiram para países vizinhos, especialmente Jordânia e Líbano, além de tentarem a fuga desesperada para a Europa (a foto do corpo do menino Aylan, recentemente, chocou o mundo).

Cerca de 500 mil cristãos movem-se com extremo cuidado em uma fuga cautelosa e solitária, pois foram jurados de morte pelo exército do Califa.

Em terra o território convulsionado está repartido entre vários atores: o governo que mantém a fidelidade do exército nacional, armado com equipamentos russos e chineses domina de 30 a 40% do território, especialmente o leste, incluindo a capital Damasco.

Grupos armados da Coalizão Nacional (treinados e equipados pelos Estados Unidos); Forças militares e paramilitares do Estado islâmico e seu califado ao centro e norte.

Grupos armados curdos que habitam o norte da Síria e combatem o EI tendo significativas vitórias; comandos especiais do Irã, também ao norte.

Comandos da Al-Quaeda que dominam a região sudoeste, tropas turcas estacionadas a oeste, na fronteira e determiandas a impedir qualquer aproximação de seu território e tropas israelenses, ao sul, ocupam Golan e impedem qualquer aproximação temendo um envolvimento que poderia ser catastrófico aos seus interesses.

No ar aviões de guerra dos Estados Unidos, França, Inglaterra e Rússia, além de misseis de médio alcance, e conforme recentes informações, misseis de cruzeiro disparados de navios franceses estacionados no Golfo Pérsico.

Por tudo isso, poucas coisas parecem claras na Síria além de que, é muito fácil morrer, enquanto muitas indagações assombram o mundo.

Pilhas de crianças mortas, adultos inválidos, mulheres estupradas e escravizadas compõem seu novo cenário.

Talvez a maior dúvida seja, afinal, como civis ainda sobrevivam no meio do caos e, na equação do inferno, quem é mocinho e quem é bandido nas terras de Alá?



Prof. Péricles