sábado, 9 de agosto de 2014

CREU




Queridos amigos, estamos aqui reunidos para mais uma sessão do CREU – Clube dos Reacionários Enrustidos Unidos.

Com vocês o depoimento de nosso novo membro, Sr. Olavo.

Oi enrustidos.

- Oi Olavo (todos).

Sim, eu assumo, sou um reacionário enrustido.

Depois de muito tempo tentando ter respostas politicamente corretas, buscar ter um comportamento moderno e progressista, quero me assumir e sair do armário.

Foi difícil reconhecer, mas, tenho me sentido muito melhor depois que resolvi enfrentar essa condição, sem disfarces.

Comecei a ser um reacionário enrustido, ainda muito jovem. Andava de jeans, mas curtia roupas de mauricinho até para ir ao cinema. Odiava chamar a Revolução de 64 de Golpe Militar.

Escondia de todos o quanto os discursos de Bush (o pai) me fascinavam.

Tentava resistir, mas tinha verdadeira adoração por tudo que fosse norte-americano.

Wel tentei afogar aquele sentimento reacionário usando camisetas estampadas do Tche e do Mao, embora preferisse do Homem Aranha. Arranjei uma namorada rebelde pra ver se conseguia mudar o meu destino. Muito louca e esquisita como todas essas esquerdinhas, ela me falava em sexo livre, quando eu só pensava em me casar e ser seu dono.

Meus pesadelos, entretanto, começaram mesmo na faculdade.

Aqueles jovens todos, falando em uma sociedade mais justa (choro)... Aquelas leituras do “Capital” Oh céus, até em passeata de protesto com camiseta da CUT eu participei. (silêncio impactante na platéia).

Aquilo me doía demais, sabe? Meu desejo era gritar que queria ter nascido nos Estados Unidos ou na França. Que amava ler as Seleções “Reader’s Digest” e que odiava pobre.

Não que eu seja uma pessoa má. Não. Adoro dar uma esmolinha aqui e outra ali, comprar rifa de chá beneficente, sempre tive bom coração. Mas odeio pobre metido a besta e eles sempre são bestas quando esquecem seu nível inferior!

Mas, não podia fazer isso. Perderia a namorada rebelde que apesar de maluquinha era muito gostosa e eu queria que fosse minha. Seria olhado com desprezo no centro acadêmico e seria chamado de reaça.

Por isso, lia a Veja todas as semanas, escondido na solidão do meu quarto.

Nunca perdi uma só “Manhatan Conection”.

Sempre busquei apoio nas palavras de meus ídolos: Paulo Francis, Bóris Casoi, Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro, e oh! Arnaldo Jabour...

Vibrei com a eleição de FHC e chorei de emoção quando foi reeleito.

Mas, eu disfarçava bem.

Dizia que já tinha votado no PT e agora estava decepcionado e isso me encorajava a criticar esse partido de pobre.

(longo silêncio)

Hoje faço parte do CREU, com muito orgulho.

O CREU tem me ajudado a sair do armário e isso me faz muito bem.

É maravilhoso poder ser um reacionário assumido, podendo falar que odeia o Bolsa Família e todas as bolsas que beneficiam a gentalha.

Que delícia poder fazer piada de pobre em aeroporto, pobre dirigindo carro, pobre falando errado.

Estou assumindo minha postura política e isso só me faz bem.

Mas... não posso me iludir.

Ainda tenho recaídas.

Dia desses, no grupinho de colegas de trabalho o assunto descambou para as relações homo afetivas.

Não tive coragem de assumir que odeio essas bichas todas e menti... Sim, eu menti, que respeito às opções de todos.

(choro compulsivo acompanhado pela plateia)


Prof. Péricles

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

NA RÚSSIA, AMEAÇAS NÃO EXISTEM




O ocidente, apesar de tudo, parece que ainda não conhece a Rússia.

Na cultura russa as crianças aprendem que nunca se ameaça um adversário ou inimigo.

O menino é severamente advertido pelo pai se é visto ameaçando outros meninos naquelas brigas de rua ou na escola, com atitudes do tipo “vou isso ou vou aquilo”.

Não ameace, apenas faça se acha que deve e que pode, diz papai russo.

Pois os Estados Unidos e sua cachorrinha amestrada, a União Européia, parece que não sabem disso.

Por semanas anunciaram que iriam boicotar os negócios russos no ocidente, em retaliação ao apoio do Kremlin aos separatistas do leste da Ucrânia e por sua “interferência” na Criméia.

Vamos fazer e acontecer anunciaram Obama, presidentes e ministros das relações exteriores dos países satélites.

O governo da Rússia manteve silêncio, apenas informando que o país se sentiria no direito de responder a qualquer tipo de retaliação contra ela. E mais nada falou.

Pois no início da semana, primeiro a União Européia e posteriormente os Estados Unidos (sempre jogada ensaiada) anunciaram sanções fortes contra a Rússia por um período de de três meses. Essas sanções, basicamente, concentraram-se nos setores armamentistas (não importação de equipamentos russos) e suspensão da venda de alimentos e produtos agrícolas da União Europeia e dos EUA para aquele país, além de impedir bancos russos de uma série de transações financeiras.

Ontem, o governo de Vladimir Putin anunciou sua resposta, com medidas duríssimas que valerão não por 3, mas por 12 meses.

Entre essas medidas estão a proibição do uso do espaço aéreo da Rússia para aviões comerciais da Europa que fazem linhas para a Ásia (o que irá encarecer um bocado os transportes aéreos desses países) e a suspensão da venda de gás para antigos parceiros do ocidente. Além disso,o Ministro da Agricultura da Rússia, Nikolai Fyodorov, anunciou a suspensão da importação de matérias-primas de países que decidiram sancionar o país por causa do conflito no leste da Ucrânia e que está abrindo novas parcerias com os países que não votaram por sanções contra eles.

As medidas atingem Estados Unidos, União Européia, Canadá, Austrália e Noruega.

Entre os mais gravemente afetados estão a Espanha, a Grécia, a Itália e a França.

Entre os maiores beneficiados está, o Brasil. Para nossa economia os benefícios podem ser imensos.


O secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Seneri Paludo da Rússia disse à agência de notícias russa Interfax, que a situação pode representar uma “revolução” para a indústria brasileira, comparável à que a China provocou na última década.

Só na área da carne de frangos a estimativa gira num aumento em torno de 150 mil toneladas, o que acrescentaria US$ 300 milhões de receitas à balança comercial.

Silenciosamente, Putin está dizendo ao ocidente que os tempos são outros e que quem tem mais a perder agora é a economia dos Estados Unidos e aliados e não a dos BRICS. Lembra que, os governos da União Européia, ao persistirem numa política de vergonhosa adesão a tudo que é proposto pelos Estados Unidos, assumem riscos que podem ser fatais aos seus próprios interesses.

E, enquanto a mídia ocidental canta de galo, diz que faz e acontece, na Rússia, não se ameaça, simplesmente se faz.


Prof. Péricles


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

DIÁLOGO EM SEGREDO




Cena urbana da pequena cidade gaúcha de Segredo.

Duas “segredinas” ou seria “segredenses” ou “secretas”? Bem, não importa, duas amigas moradoras de Segredo se encontram na fila do supermercado da cidade e estabelecem o seguinte diálogo:

- Menina, tu não imagina o que eu vi ontem, aqui mesmo nesse supermercado...
(silêncio estratégico). Sei que tu vai dizer que é invencionice minha, fofoca, mas juro que é verdade. (novo silêncio)

A “menina” não resiste por muito tempo à curiosidade.

- Conta logo Dalva, o que tu viste aqui mesmo nesse supermercado de tão extraordinário?

- Não sei se te conto Carmem. Lembro bem do dia que me chamou de fofoqueira... conto ou não conto?

- Grrrrr

- Ta bem vou contar, mas sei que não vai me acreditar...

- Pelo amor de Deus Dalva, desembucha. Viu o Leonardo di Caprio?

- Não.

- Viu um ET?

- Não.

- Então um fantasma?

- Também não.

- o Lelo, aquele desalmado que...
- Não, não.

- Então o que foi que tu viu mulher?

- Carmem (cara de grande revelação), eu vi, aqui mesmo, nesse supermercado, um... um médico!

Não só a Carmem mas as duas outras pessoas da fila fitaram Dalva com incredulidade.

- Um médico? (risos)

- Não disse que tu não irias acreditar. Francamente...

- Desculpa querida, é que foi muito engraçado, não sei como tens tanta imaginação pra...

-Não é imaginação, eu vi mesmo!! (aos gritos)

Silêncio.

- Amiga, queres que eu acredite que tinha aqui, nesse supermercado, na nossa Segredo, um médico? Médico, de verdade, médico?

- Sim... e falava espanhol e...

- Falava? Ele falava?

- Sim, Carmem, e falou comigo e...

- rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs

Se tu rir de mim de novo eu vou começar a gritar e dizer o que o Lelo fez e...

- Ok. Stop. Não vou rir. Mas não queira que eu acredite numa mentira dessas!

- Olha aqui sua descrente, não é mentira, nem fofoca. Ele faz parte daquele programa do governo, como é mesmo... “Mais Médicos”.

- Sério? Bem que me disseram que eles olham pra gente na consulta. Mas eu não acreditei...

- Mas, é verdade menina, pura verdade. Eu vi, ele estava aqui e... madre de dios!

- O que foi mulher?

- Ele esta vindo pra cá?

- Ele quem, o Lelo?

- Não, o médico que fala, e olha pra gente...

Onde... onde?

Até bem pouco tempo, a população brasileira nos rincões mais escondidos e distantes, conhecia bem pouco de atendimento médico.

Simplesmente, quase não havia médicos que aceitassem trabalhar em lugares tão distantes dos centros urbanos. Isso exigiria, entre outras coisas, exclusividade na atenção à população dos lugarejos e distanciamento de outras fontes de trabalho.

As políticas públicas de saúde resumiam-se ao atendimento das emergências nos centros regionais ou no encaminhamento a Porto Alegre através da ironicamente denominada “ambulanciaterapia”.

Ser atendida por um médico era coisa de cidade grande, tanto que uma simples consulta levava a uma preparação quase ritualística. Dias antes de um atendimento as pessoas já escolhiam a roupa com que deveriam comparecer aquele evento importante, e preocupavam-se que o que dizer ao médico na tão esperada oportunidade.

Geralmente, essa preparação meticulosa era dissolvida por um atendimento sumário e massificado onde se perdia a identidade e se tornava estatística.

Uma atenção maior do que um olhar profissional, era quase inimaginável.

Talvez, o maior mérito do “Mais Médicos” nem seja apenas o atendimento ambulatorial aos que dele precisam, mas, o atendimento da necessidade de se sentir cidadão pleno onde a saúde não é privilégio, nem favor, mas um direito da cidadania.

Podemos mensurar tudo isso na queda dos atendimentos nas emergências dos hospitais que atendem essas regiões.

Não apenas a emergência médica, mas, principalmente a urgência humana está sendo atendida.

Médicos compram em supermercados, lembram nomes e preocupam-se com pacientes... e falam.


Prof. Péricles
Agradecimento especial aos colegas Clarice e Eduardo, testemunhas oculares dessa história e inspiradores do diálogo fictício.



domingo, 3 de agosto de 2014

ANTROPOCENTRISMO


A maioria das coisas que sabemos sobre os deuses da mitologia grega, chegou até nós escritas pelo poeta Hesíodo, que viveu em algum momento entre 700 e 600 anos antes de Cristo.

Para Hesíodo em primeiro lugar houve o caos, que é o caos, mas é alguma coisa, ou seja, mais do que o nada.

Em seu livro, Hesíodo nos diz que no princípio havia Gaia (a Terra) e a noite (a escuridão). Noite, aliás, é uma palavra que em todos os idiomas começa com “N” que representa infinito, seguida da palavra “oito” que, deitado, também simboliza o infinito.

Havia também o Tártaro (inferno), Eros (o desejo) e Érebo (a escuridão do inferno).

Urano, filho de Gaia, reinava sobre o caos.

Durante seu reinado ante o infinito, surgem as montanhas, os mares, o éter e o dia.

Urano foi destronado por seu filho, Cronos, a divindade do tempo.

Cronos inaugura um novo tempo. Os titãs (que eram poucos e se dividiam entre entidades femininas e masculinas) e novos deuses iniciam o povoamento da Terra.

Foi uma espécie de vale tudo em que não havia a monogamia e a variação de parceiros era fundamental para a própria existência.
Cronos se casou com sua irmã Reia e deu origem à linhagem que mais tarde ocuparia o monte Olimpo. Hipérion, um dos titãs, foi pai de Hélio, deus do Sol, e Eros da aurora. A geração dos filhos dos titãs permeia toda a mitologia futura.

Zeus, filho de Cronos, tal como ele mesmo, Cronos, fizera a seu pai, destrona o progenitor e inaugura uma nova era divina.

O novo soberano, ao lado de seus irmãos Posêidon, Hera, Hades, Héstia e Deméter, teve seu poder desafiado pelos titãs, liderados por Cronos numa batalha que hoje se conhece como Guerra Cósmica ou Titanomaquia.

Para vencer os poderosos titãs e seu pai, Zeus libertou os ciclopes, que viviam no Submundo desde os tempos em que foram exilados por Urano. Eles eram excelentes ferreiros e criaram armas mágicas para os deuses. Zeus ganhou os raios do céu, Posêidon, um tridente com o qual podia provocar tempestades e terremotos e armas forjadas para cada deus.

Um dos líderes dos titãs era Atlas.

Nascido de um titã e uma ninfa, Atlas governava Atlântida. Os deuses decidiram puni-lo e acabar com toda sua raça. Enviaram uma inundação e a ilha foi varrida do mapa, mas ele continuou lutando. Quando afinal os titãs foram derrotados, os deuses fizeram Atlas carregar o céu para sempre.

Portanto, assim como outros povos, notadamente os autores do Antigo Testamento, os gregos definiam a criação a partir do caos, e o surgimento do homem muito posterior à definição da existência, traçada por forças inteligentes da natureza, indefiníveis.

Como o homem não suporta o indefinível e, como fazem as crianças, criam definições onde lhe falta a compreensão, os gregos explicaram a ordem possível do impossível, com a elaboração de divindades, que, apesar de indecifráveis mantém alguma aparência humana.

A grande contribuição da cultura helênica está no seu antropocentrismo.

Estando o homem no centro de todas as explicações, e sendo a medida para mensurar todas as coisas, ao contrário dos hebreus que teorizaram um Deus perfeito e uma raça humana eternamente pecadora, para os gregos os deuses são falhos, cometem erros, são orgulhosos e tudo aquilo que nos caracteriza como criaturas pensantes e falíveis.

Já, o homem, mesmo com todas as suas fraquezas, mantém as características dos deuses.

Ao contrário do divino explicar as emoções e os medos humanos, o humano, seus limites e emoções, explicam o divino.

De certa forma, deuses e heróis são o próprio homem imaginado na condição de criador, algo que o homem sempre quis ser, e jamais conseguiu, pois tudo o que faz é transformar o já existente.

Ódio, ciúmes, vingança, desejo, elevados a infinita potenciação.

A infidelidade compulsiva de Zeus, o orgulho de Apolo, a vaidade de Afrodite, os ciúmes de Hera, o rancor de Ares, toda a condição humana está exposta no panteão do Olimpo e nos seus heróis, semi-heróis e coadjuvantes.

Dessa forma, quando entramos no mundo dos mitos da Grécia, devemos ter em mente que estamos trilhando, não o caminho do macro cosmos que irá nos trazer as descobertas da vida, mas, no micro cosmos que nos trás a descoberta de nós mesmos.

Não estamos trilhando caminho nas estrelas, mas apenas caminhando em nossa própria condição humana.


Prof. Péricles

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O ENCONTRO



Por Luiz Fernando Veríssimo

Os peixinhos nadavam por entre as nossas pernas. Estávamos no mar em frente à casa do José Paulo e da Maria Lecticia Cavalcanti, Praia do Toquinho, Lagoa Azul, Pernambuco, Brasil, América do Sul, Terra, Via Láctea, Universo, com água pela cintura.

Quem éramos nós? Millôr e Cora, Gravatá, Lucia, eu e peixinhos anônimos. Zé Paulinho e Maria Lecticia tinham providenciado tudo para que o prazer dos seus hóspedes fosse completo: sol decididamente pernambucano, céu e mar de um azul irretocável, uma mesa flutuante com guarda-sol em cima coberta de coisinhas para comer e bebidinhas para beber.

A um sinal do Zé Paulinho vinham mais camarão, mais marisco, mais caipirinha, mais pássaros, menos pássaros, mais brisa, menos brisa – e de repente, descendo na nossa direção pela praia como uma aparição, um convidado convocado pelos Cavalcanti para que o dia fosse mais que perfeito: o Ariano Suassuna. De calção de banho !

Ele entrou no mar, e os peixinhos continuaram nadando entre as nossas pernas, sem nenhuma curiosidade intelectual. Eles só estavam ali para pegar os restos da mesa flutuante, alheios ao grande momento, como se um encontro de Millôr Fernandes e Ariano Suassuna com água pela cintura acontecesse todos os dias.

Nós, ao contrário dos peixinhos, nos encharcávamos do momento. Eu, chupando um picolé de mangaba – eu mencionei que também havia picolés de mangaba? –, finalmente descobria o sentido da palavra “embasbacado”.

Depois do encontro no mar, um almoço magnífico –, não fosse comandado pela dona Maria Lecticia. E o dia mais que perfeito terminou com uma visita a um terreno próximo onde o Zé Paulinho criava bodes. Nosso anfitrião queria nos mostrar um animal que importara da África do Sul e que, de tão antipático e posudo, recebera do Suassuna o apelido de “Somebode”.

Uma aula do Suassuna era um show, um show do Suassuna era uma aula.

Além de produzir ele mesmo boa parte da cultura contemporânea da sua terra, Suassuna conhecia como ninguém a história (e as histórias), as artes e as tradições do Nordeste, esse outro mundo dentro do Brasil, e lutava para mantê-las vivas.

Tinha uma memória fantástica, poemas enormes decorados inteiros para qualquer ocasião, e era notável sua capacidade de, aparentemente, se perder em digressões quando falava sobre determinado assunto, a ponto de criar uma expectativa nervosa na plateia – será que ele volta para o assunto ou não volta? –, e retomar o que estava dizendo do ponto exato da digressão, para alívio geral.

O Brasil perdeu um tesouro.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

APOLO E O GIRASSOL




O romance foi breve, mas para ela, profundo e único. Clítia, a ninfa das águas, uma das filhas do Oceano, apaixonou-se perdidamente por Apolo, o Deus das artes, da música, das profecias.

Clítia sonhava com aquele jovem Deus, atraente, dono de um rosto de menino e de uma voz encantadora. Por ele, ela seria capaz de qualquer coisa e entregou-se inteira, cega de amor.

Mas Apolo, divindade relacionada ao sol, que era seu carro dourado com o qual percorria o firmamento, tinha outras paixões e foi surdo aos seus clamores. Clítia mostrou que a única que o amava realmente era ela e que ela era a sua melhor escolha. Mas, tudo em vão.

Apolo continuou apaixonado por Castália, que, no entanto, corria dele e acabou preferindo se transformar numa fonte cristalina no Monte Parnaso, onde está correndo até hoje, ou Coronis que ofendeu o deus ao troca-lo por Isquis, um simples mortal. Ou ainda por Marpessa, disputada por Apolo e por Idas, príncipe da Messênia, que preferiu o mortal quando Zeus ordenou que fizesse uma opção: Apolo não me serve como parceiro, disse ela. "Para um deus, o tempo não passa; para os humanos, porém, cada hora deixa a vida mais curta".

Definitivamente Apolo, o mais belo dos deuses do Olimpo, não tinha sorte no amor, mas preferia sofrer por quem não o amava do que olhar para Clítia.

Então, a ninfa das águas com a alma despedaçada, afastou-se do convívio feliz das outras ninfas e foi sentar na terra, nua, no lugar mais solitário da campina. Ali, no raiar de cada manhã, ela esperava que Apolo apontasse no horizonte, dirigindo ocarro do Sol, e dali mesmo ela seguia sua luminosa trajetória no azul do firmamento, até que o manto da Noite viesse cobrir o Universo.

Segundo o poeta Ovidio, ela ficou assim imóvel, sem sentir fome nem sede, nutrida apenas pelo orvalho e pelas lágrimas que derramava, por nove dias e nove noites, quando então os deuses, por piedade, transformaram-na numa flor, o girassol, que até hoje acompanha nos céus a passagem de seu amado.

As mulheres mais práticas perceberam que, o deus da perfeição também era o deus da morte súbita, das pragas e doenças, e que, portanto, sua luz de beleza indescritível podia ser mortal como a luz que atrai e arrasta a mariposa para a morte.

Clítia, porém, foi ingênua ao acreditar no amor impossível entre ela, que vivia na planície e Apolo, que brilhava entre os astros do céu.

Amem, meninas e meninos, intensamente, mas cuidem-se do brilho falso e não permitam que seu amor se transforme num belo girassol, perdidamente solitário nas dobras do coração.


Prof. Péricles