quinta-feira, 7 de novembro de 2013

LEY DE MEDIOS


Por Altamiro Borges

A Suprema Corte da Argentina declarou nesta terça-feira (29/10) a constitucionalidade de quatro artigos da “Ley de Medios” que eram contestados pelo Grupo Clarín. Com esta decisão histórica, o governo de Cristina Kirchner poderá finalmente prosseguir com a aplicação integral da nova legislação, considerada uma das mais avançadas do mundo no processo de democratização da comunicação. A decisão representa um duríssimo golpe nos monopólios midiáticos não apenas na vizinha Argentina. Tanto que a TV Globo dedicou vários minutos do seu Jornal Nacional para atacar a nova lei.

Pelas regras agora aprovadas pela Suprema Corte, os grupos monopolistas do setor serão obrigados a vender parte dos seus ativos com o objetivo expresso de “evitar a concentração da mídia” na Argentina. O império mais atingido é o do Clarín, maior holding multimídia do país, que terá de ceder, transferir ou vender de 150 a 200 outorgas de rádio e televisão, além dos edifícios e equipamentos onde estão as suas emissoras. A batalha pela constitucionalidade dos quatro artigos durou quatro anos e agitou a sociedade argentina. O Clarín – que cresceu durante a ditadura militar – agora não tem mais como apelar.O discurso raivoso da TV Globo e de outros impérios midiáticos do Brasil e do mundo é de que a Ley de Medios é autoritária e fere a liberdade de expressão. Basta uma leitura honesta dos 166 artigos da nova lei para demonstrar exatamente o contrário. O próprio Relator Especial sobre Liberdade de Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU), Frank La Rue, já reconheceu que a nova legislação é uma das mais avançadas do planeta e visa garantir exatamente a verdadeira liberdade de expressão, que não se confunde com a liberdade dos monopólios midiáticos.

Aprovada por ampla maioria no Congresso Nacional e sancionada pela presidenta Cristina Kirchner em outubro de 2009, a nova lei substitui o decreto-lei da ditadura militar sobre o setor. Seu processo de elaboração envolveu vários setores da sociedade – academia, sindicatos, movimentos sociais e empresários. Após a primeira versão, ela recebeu mais de duzentas emendas parlamentares. No processo de pressão que agitou a Argentina, milhares de pessoas saíram às ruas para exigir a democratização dos meios de comunicação. A passeata final em Buenos Aires contou com mais 50 mil participantes.

Em breve será lançado um livro organizado pelo professor Venício Lima que apresenta a tradução na íntegra da Ley de Medios, além dos relatórios Leveson (Reino Unido) e da União Europeia sobre o tema. A obra é uma iniciativa conjunta das fundações Perseu Abramo e Maurício Grabois e do Centro de Estudos Barão de Itararé e visa ajudar na reflexão sobre este assunto estratégico no Brasil – hoje a “vanguarda do atraso” no enfrentamento da ditadura midiática.

domingo, 3 de novembro de 2013

SÍRIA, NÃO É TÃO SIMPLES



O mundo nunca foi tão informatizado como agora. As notícias se espalham com a velocidade de clics e numa intensidade quase imediata aos fatos.

As pessoas acabam convencidas da qualidade da informação e de sua atualização graças à conexão com o mundo.

Se tudo isso é verdade, também não é menos verdade que, nunca a informação foi tão vigiada (vide as revelações sobre a espionagem americana e a espionagem européia via Reino Unido) e deturpada. Dominar o que circula pela internet e selecionar a informação de acordo com seus interesses virou a obsessão dos governantes e das elites.

Em consequência temos uma população global que nunca foi tão informada e também que nunca foi tão mal informada.

A coisa toda é tão bem feita que, a maioria do público acaba repetindo conceitos e opiniões da mesma maneira que as colheram da rede, como se ela fossem despidas de outro interesse que não seja meramente, informar.

Goebels, chefe de informação do Reich, dizia que uma mentira repetida cem vezes vira uma verdade. Hoje, poderíamos adaptar a afirmativa dizendo que uma mentira compartilhada pode virar uma verdade e se dita por um âncora televisivo de olhar sério ao lado de uma moça fazendo careta de preocupada, mais ainda.

Quando a OTAN ameaçava atacar a Líbia de Kadaffi trouxemos aqui para o Blog algumas informações sobre a Líbia que deixou muita gente chocada. Nas aulas, muitos manifestaram até uma certa descrença.

Da mesma forma que fizemos no caso da Líbia, relacionamos a seguir alguns fatos interessantes sobre a Síria, na nossa sessão “Você sabia?”.

São algumas informações importantes para quem deseja formar uma opinião sobre apóiam uma eventual interferência militar dos Estados e seus aliados e se o governo de Bashar AL-Assad merece ou não ser esmagado.

Um conflito na Síria carrega uma ameaça de internacionalização trazendo um perigo real para a paz mundial, tendo em vista que o país é o ponto forte dos interesses estratégicos da Rússia e da China. Vale à pena?

Tire você suas conclusões, mas antes, reflita se você sabia:

- A família Assad pertence à corrente mais tolerante da religião islâmica, a orientação Alawid. As mulheres sírias têm os mesmos direitos que os homens ao estudo, à saúde e educação.

- A síria é o único país árabe com uma constituição laica (totalmente independente da religião) e não tolera os movimentos extremistas islâmicos. As mulheres não são obrigadas a usar Burca.

- Cerca de 10% da população síria pertence a alguma das muitas confissões cristãs presentes desde sempre na vida política e social. Noutros países árabes a população cristã não chega a 1% devido à hostilidade sofrida.

- A Síria é o único país do mediterrâneo que continua proprietário da sua empresa petrolífera, que não quis privatizar.

- Antes dessa guerra civil era o único país pacífico da zona, sem guerras nem conflitos internos.

- Na denominada “Gerra dos Seis Dias” em 1967, Israel invadiu o território Sírio e ocupou as belíssimas Colinas de Golan, e lá permanecem até hoje, mesmo havendo uma resolução da ONU para que sejam imediatamente desocupadas (é que os amigos dos Estados Unidos não precisam obedecer a ONU).

- Nas Colinas de Golan Israel desenvolveu uma indústria leve de ótima qualidade a partir de uma mão-de-obra (israelense) muito bem paga, tão bem paga que tornaram-se opositores à qualquer processo de paz, pois a paz obrigaria a retirada israelense da região e a perda de salários tão elevados.

- A Síria é o único país árabe sem dívidas ao Fundo Monetário Internacional.

- Foi o único país do mundo que admitiu refugiados iraquianos sem nenhuma descriminação social, política ou religiosa.

- Bashar Al Assad tem um suporte popular extremamente elevado. Os especialistas o consideram imbatível numa eleição livre e democrática.

- O país possui uma reserva de petróleo de 2500 milhões de barris, cuja exploração está reservada a empresas estatais, e isso irrita profundamente os senhores do petróleo do mundo.

Já se falou isso na grande mídia? Quem sabe agora, com esses novos elementos, a gente entenda melhor porque tanto interesse do ocidente em “proteger o povo contra Bashar AL-Assad e suas armas químicas”.

Temos que estar alertas para não permitir que nossos conceitos sejam formados com o conhecimento apenas de fatos parciais que embasam um posicionamento. E lutar para manter o nosso direito de livre pensar.

Prof. Péricles

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O SEGREDO DE CALABAR


Em 1624 os holandeses invadiram sukerland (como chamavam Brasil) a “terra do açúcar”. Enquanto uma guerra de grandes proporções explodia na Europa, o Brasil, praticamente abandonado por Portugal, parecia um alvo fácil, quase gratuito, às necessidades holandesas de manter o ciclo do comércio do açúcar, responsável pela maior parte de seu PIB.

Entretanto. O inesperado: Liderados por um bispo com alma de militar chamado D. Marcos Teixeira, os luso-brasileiros embrenharam-se nas matas e deram início a uma guerra de guerrilha que enlouqueceria o invasor. Como resultado ficaram restritos à Salvador e tiveram que bater em retirada em 1625. A terra do açúcar lhe fora demasiadamente amarga.

Cinco anos depois, eles retornaram. Mas, nada de se meter com o bispo louco. Dessa vez os batavos preferiram invadir Pernambuco.

Na falta de um estrategista do calibre de D. Marcos, o rei enviou para o Brasil o militar Matias de Albuquerque, que assumiria as funções de governador das terras livres e empreenderia a resistência aos holandeses.

Matias de Albuquerque criou no coração da mata uma aldeia, chamada de Arraial do Bom Jesus, arregimentou homens, e dali partia para incursões de guerrilhas muito parecidas com as usadas com sucesso na Bahia. Tão parecidas que, novamente o inimigo estancou e parecia não saber o que fazer.

Embora o comandante militar fosse Matias de Albuquerque, o estrategista e comandante de fato era Domingos Fernandes Calabar, um sujeito que nascera em Alagoas (então parte integrante da Capitania de Pernambuco), mulato (ou mameluco, há controvérsias), profundo conhecedor da região, que tinha, na época, aproximadamente 30 anos.
Inteligente, havia feito fortuna com o contrabando de drogas do sertão e vaquejadas, chegando até a se tornar dono de terras e de engenhos.

Pois quando a guerra adquiria cada vez mais um gosto de filme já visto, tudo mudou, de forma dramática e inesperada.
Ninguém, jamais, conseguiu explicar porque, mas o fato é que, em abril de 1632, depois de dois anos muitas vitórias e atos de heroísmo, além de dois ferimentos graves em batalha, quando os holandeses já haviam desistido de Olinda e recuado, ocupando apenas Recife, Calabar, simplesmente, mudou de lado.

Será que ele pretendia mais riqueza (que se saiba não ganhou nenhuma moeda dos holandeses)? Terras? Poder? Como pode um guerreiro entusiasmado mudar de lado como quem muda de roupa?

Com Calabar a seu lado a guerra muda completamente de rumo. Os neerlandeses conquistam as vilas de Goiana e de Igaraçu, a ilha de Itamaracá, o forte do Rio Formoso. Os nativos com espanto enxergam Calabar à frente das tropas decretando a virtual vitória dos invasores.

Pessoalmente, Domingos Fernandes procura lideranças entre cristãos-novos (judeus), negros, índios e mulatos e os convencem a lutar contra os luso-brasileiros.

Matias de Albuquerque é forçado a recuar cada vez mais. O Arraial do Bom Jesus vira fumaça. Seus melhores homens mortos ou presos e a tática de guerrilha já não dava mais resultados, pois o inimigo conhecia as matas, tanto ou melhor do que ele. Amaldiçoava Calabar, que um dia chegara a considerar um amigo, todos os dias.

Em março de 1635, próximo ao Porto Calvo é informado da presença, na região, de um grupo de 380 holandeses. Entre eles, o próprio Calabar. Febrilmente Albuquerque cria uma cilada, pede ajuda dos moradores locais, promete recompensa, fala da traição e acaba obtendo êxito. Os holandeses caem prisioneiros, Calabar está lá.

Não há julgamento, nem mesmo um enforcamento oficial. Calabar é declarado traidor e condenado à morte. É garroteado, isso é, seu pescoço é apertado por uma corda até ser transpassado completamente por um prego. Depois, seu corpo esquartejado fica exposto em praça pública.

Os holandeses prestariam homenagens fúnebres de herói a ele, que, inclusive, já ocupava o posto de Major de suas forças.

No silêncio das cinzas, Calabar tornou-se um dos maiores mistérios da história do Brasil.

A vingança pessoal de Matias de Albuquerque, não evitou a derrota, e os holandeses acabaram ocupando toda a região açucareira que objetivavam.

Ele foi um traidor? Mas, a quem traiu? Ao Brasil que ainda não existia como nação? A Portugal, então dominado pelos reis Felipes da Espanha, ou à Espanha a quem ele sequer conhecia?

Na única concessão antes da execução, Calabar pode confessar seus pecados ao Frei Manuel do Salvador. Apesar de toda a pressão esse religioso morreu sem jamais dizer o que o condenado lhe dissera.

Para muitos Calabar era um agente holandês que primeiro se infiltrou nas forças brasileiras para depois repassar informações privilegiadas a seus comandantes.

Para outros foi um vil traidor por dinheiro, mesmo sem provas sobre isso.

Para outros ainda, Domingos Fernandes Calabar era um brasileiro de visão à frente de seu tempo que entendia ser mais vantajoso ao futuro do Brasil pertencer aos domínios holandeses do que ser colônia portuguesa.

Para os criadores de mito, Domingos Fernandes Calabar em carta dirigida a Matias de Albuquerque, teria afirmado que passara para o outro lado não como traidor, mas como patriota.

Esse, será, talvez, para sempre, o segredo de Calabar.


Prof. Péricles




domingo, 27 de outubro de 2013

HOJE NÃO HAVERÁ SESSÃO


Na minha cidade de Porto Alegre, havia um cinema chamado “Cine Astor”.

Levado pela onda dos shoppings, de exibições em salas menores, praticamente, todos os cinemas tradicionais da cidade fecharam.

No dia seguinte a seu fechamento, após o última filme, alguém colocou na frente do prédio, um cartaz, feito a mão, que quase passava despercebido. Nele se lia “Hoje não haverá sessão”.

Todos sabiam do fechamento definitivo da casa. Mas, alguém, acalentou a ilusão de que um dia o velho cinema voltaria a ser freqüentado, que um dia voltaria a ter platéia. A prova estava lá no teimoso “hoje” não haverá sessão.

Certas coisas nas nossas vidas são assim mesmo.

Gostaríamos de poder negar seu fim.

Gostaríamos de acreditar que tudo o que é bom dura para sempre.

Que o romantismo jamais será superado pelo mercado, que a modernidade nunca tornará obsoleto os nossos maiores prazeres.

Que bom seria poder dizer “hoje não seremos jovens” ou “apenas hoje estaremos morrendo”.

“Hoje não te amarei” na esperança pueril de que o amor retorne um dia, com seu antigo vigor, reconquistando seu lugar no coração vazio.

Enquanto queremos que as coisas boas sejam eternas, queremos provisórias as coisas que nos machucam.

Estamos doentes, mas somos saudáveis, estamos deprimidos, mas somos felizes.

O que é bom é definitivo, o que é ruim é temporário. Ou, pelo menos, deveria ser.

Foi sábio o autor do cartaz do cine Astor.

A teimosia em anunciar uma transitoriedade e não o final deveria inspirar todos os finais.

Hoje, somente hoje, e nada mais.

Quando estivermos com raiva, com desejos de vingança, nos sentindo menores do que somos. Quando o sentimento for de ser a última das opções, não esqueçamos, lá no fundo do coração, escrever “hoje”, mantendo aberta a porta para a ilusão benevolente.

E quando chegar nossa última sessão, que nosso cartaz seja rebelde, teimoso e repleto de confiança e coragem, mesmo que escrito numa simples folha de papel.

Prof. Péricles


sexta-feira, 25 de outubro de 2013

ENTULHOS DA DITADURA


Por Chico Otávio e Aloy Jupiara

Isolado na tropa, o capitão Aílton Guimarães Jorge pediu demissão do Exército no dia 9 de março de 1981. O gesto do oficial, ao trancar a farda no armário, selou uma aliança que mudaria o perfil do crime organizado no Brasil: a de agentes da ditadura com a contravenção. Capitão Guimarães é a face mais exposta desse processo, mas não a única. A partir dos anos 1970, um pequeno pelotão de agentes migrou dos porões da tortura para as fileiras do jogo do bicho, levando junto a brutalidade, a arapongagem e a disciplina da guerra suja contra as esquerdas. Bicheiros ajudaram a perseguir inimigos do regime, e a ditadura retribuiu com proteção e impunidade.

Sob a influência da doutrina militar e ao custo de uma guerra nas ruas, o jogo do bicho antes fracionado e informal tornou-se centralizado e organizado.

Esvaziados pelo processo de distensão política ou excluídos por envolvimento em crimes comuns, agentes da repressão encontraram abrigo na máfia do jogo do bicho quando a guerra suja perdia a força na metade dos anos 1970. O coronel Freddie Perdigão Pereira, os capitães Ronald José Motta Baptista de Leão e Luiz Fernandes de Brito, o sargento Ariedisse Barbosa Torres, o cabo Marco Antônio Povoleri, os delegados Luiz Cláudio de Azeredo Vianna, Mauro Magalhães e Cláudio Guerra, e o detetive Fernando Gargaglione, além do Capitão Guimarães, todos com folha de serviços prestados à ditadura, são citados por essas fontes e documentos como integrantes desse pelotão arregimentado pelo bicho.

Com eles, a experiência de violência e espionagem adquirida nos porões somou-se às práticas da contravenção.

Guimarães, que caíra em desgraça no Exército ao ser flagrado comandando uma quadrilha de contrabandistas fardados, encontrou na jogatina fora dos quartéis o caminho para o topo de uma nova hierarquia, à paisana. Aniz Abraão David, o Anísio da Beija-Flor, estabeleceu seu clã político na Baixada Fluminense e se blindou da ação da polícia sobre seus negócios. Castor Gonçalves de Andrade e Silva, o Castor da Mocidade Independente, íntimo de agentes da repressão, negociou com o regime, sendo beneficiado quando sua metalúrgica beirava a falência. Ângelo Maria Longas, o Tio Patinhas, expandiu seus negócios em Niterói com a ajuda de Guimarães.

Assassinatos do período misturaram interesses militares e civis, envolvendo bicheiros e ex-torturadores, desde o de pequenos contraventores, como Agostinho Lopes da Silva Júnior, o Guto (em junho de 1979), cujos pontos em Niterói, São Gonçalo e Itaboraí foram assumidos pelo Capitão Guimarães, a crimes famosos, como o de Misaque José Marques e Luiz Carlos Jatobá (em janeiro de 1981), acusados de invadir a casa de Anísio em Piratininga, Niterói, e do policial Mariel Maryscotte de Mattos (em outubro de 1981), depois de tentar comprar os pontos do bicheiro Jorge Romeu, o Jorge Elefante, em Niterói.

A guarnição da 1ª Companhia de Polícia do Exército (PE), da Vila Militar, em Deodoro, foi a gênese desse fenômeno. No final dos anos 60, a PE desencadeou uma repressão contra políticos da Baixada Fluminense, a maioria prefeitos e vereadores cassados pelo regime sob acusação de corrupção. Foi essa limpeza que abriu o terreno para que, em Nilópolis, o clã liderado por Anísio assumisse o controle político local e se apoderasse dos pontos de pequenos bicheiros. Nos anos 1970, Guimarães, Luiz Fernandes e Povoleri, todos da PE e integrantes de um grupo processado por extorquir contrabandistas, começaram seu movimento em direção à contravenção.

Dois dos principais centros de tortura do Rio, o Destacamento de Operações de Informações (DOI) da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, e a Casa da Morte, aparelho montado pelo Centro de Informações do Exército (CIE) em Petrópolis, também foram incubadoras de capangas da contravenção. Na Casa, por exemplo, atuou o então comissário e depois delegado da Polícia Civil Luiz Cláudio, codinome na repressão Laurindo, mais tarde braço-direito de Anísio. O sargento Torres, que teria feito parte da equipe de interrogadores do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido em 1971, é outro que migrou do DOI à contravenção. Ele se tornou segurança de Anísio e chefe de barracão da escola de samba Beija-Flor.

Os resultados dessa aliança, pouco depois, seriam vistos com a consolidação de uma nova cúpula do bicho a verticalização do poder, a eliminação gradual de lideranças de pequeno e médio porte, a anexação de territórios antes fracionados e a organização de rotinas. São dessa época a adoção do sistema de atas nas reuniões e o mapeamento dos pontos, até então distribuídos de forma improvisada. Também foram os agentes da ditadura que ensinaram os bicheiros a grampear seus adversários.

Unidos pelos interesses da contravenção e por um projeto de poder, Castor, Anísio e Guimarães (que passara a controlar a Unidos da Vila Isabel) fundaram em 1984 a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Castor foi o primeiro presidente, entre 1984 e 1985; Anísio, o segundo, entre 1986 e 1987; Guimarães reinou entre 1987 e 1993, e, depois, entre 2001 e 2007.

O sistema discricionário de acusações, apurações e punições da ditadura militar deu poder excepcional a certos grupos ligados às polícias, ao SNI e ao sistema DOI-Codi. Deu-lhes, especialmente, tecnologia e know-how para conseguir ou fabricar informações que custavam vidas e rendiam muito dinheiro. Montou-se com a ajuda desses operadores da repressão e da tortura a quase inexpugnável rede mafiosa do jogo do bicho e empresas de arapongas.

A Liga das Escolas de Samba é patrocinada e dirigida por contraventores. Ironicamente, no carnaval, nenhum político ou governante posa ao lado de seus organizadores.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O PASTOR E A FLOR


O vento curtia seu corpo franzino.

No deserto é acompanhado por milhares de fragmentos de areia que machucam a pele nua, como pequenos cacos de vidro.

Seu trabalho era estafante.

Cuidava das ovelhas, todos os dias, desde manhã quando as levava ao pasto, até a noite quando as fazia retornar ao cercado.

Apesar de uma família feliz, da esposa jovem e companheira e de filhos saudáveis, sentia-se infeliz pela rotina. Achava tudo monótono e que todos os dias eram o mesmo que apenas se repetia infindáveis vezes.

Um dia, enquanto abrigava-se sobre a sombra de um cedro, viu uma pequena flor branca que nunca havia antes reparado.

Arrancou uma de suas pétalas e a levou a boca.

Sentiu-se estranho. Sentiu-se embriagar, da forma mais forte que já sentira, mais até do que com o vinho que sorvia nas noites mais frias.

Colocou outra pétala e mais outra à boca.

Viu-se então num carrossel invisível.

Sem perceber passou a dançar sozinho no deserto sobre os olhares opacos de suas ovelhas.

E dançou e dançou e dançou, volvendo a areia num turbilhão ciclônico.

Ao despertar já era noite.

As cabras juntaram-se para se proteger do frio, outras haviam se desgarrado, enquanto ao longe o uivo dos lobos alertava para o perigo.

Com a boca seca e o coração batendo muito forte, empurrou em meio às trevas os animais que podia enxergar.

Foi o retorno mais longo e dolorido pra casa, onde a esposa aflita e os filhos em prantos o imaginavam morto.

Nos dias seguintes não contou a ninguém sua estranha experiência.

Continuou seu trabalho de pastoreio, mas nunca mais pode ficar sem aquelas estranhas pétalas e seus efeitos.

Dançava sozinho ao vento, mugia como animal cantava músicas sem rima, ria e fazia discurso às cabras.

Não percebeu quando o prazer deu lugar à loucura.

Por sua negligência seus animais foram se perdendo, devorados por predadores ou roubados pelos salteadores, até não restar mais nenhum.

Ele mesmo muitas vezes ficou nu após ser impiedosamente atacado e agredido por ladrões.

Misturava sangue às lágrimas e já não as mais distinguiam.

Sem as cabras, não havia porque retornar ao deserto, mas ele retornava todos os dias, apenas para provar o sabor das pétalas.

Logo a fome se abateu sobre o seu lar e sua esposa recolhendo seus filhos se foi embora, tratar da sobrevivência.

Ficou só e sem ninguém para retornar passou a dormir no deserto, encolhido entre os trapos que se tornaram suas roupas e alimentando-se apenas das pétalas que, se não lhe davam substância, lhe tiravam a fome.

Um dia, quando o vento do deserto lhe bateu mais forte na pele nua, se percebeu um velho prematuro, coberto de andrajos, com o olhar eternamente voltado para baixo, em busca das migalhas e tendo apenas o prazer efêmero da flor, e de seu prazer esdrúxulo.

Então o vento solitário do deserto fez uma curva e foi balançar as flores estranhas. A ventania se fez tornado e seu gemido dolorido se tornou rugido levando uma a uma todas as flores que ainda restavam.

Ele correu em círculos mas não pode pega-las.

Ao mesmo tempo se fez noite e uma lágrima silenciosa acompanhou distante o uivo derradeiro de um predador faminto. Só então ele percebeu que as flores brotaram de sua própria alma mesquinha e faminta de aventuras. Flores do jardim árido de sua alma preocupada apenas consigo e com seus desejos.

Ninguém é feliz sozinho, foram as derradeiras palavras que lhe chegaram aos ouvidos.

Foi numa noite distante, a última de seus devaneios que ele percebeu que, nenhuma flor verdadeira nasce de terra árida, regada pelo egoísmo, que não seja à flor da loucura.


Prof. Péricles
Texto psicografado de uma vítima das drogas