segunda-feira, 11 de junho de 2012
UM SER MESQUINHO
Muitos foram os sonhadores de uma sociedade humana justa.
Afinal, somos um ser gregário que, fisicamente limitados, só sobreviveu por que se uniu, formou coletividades e dividiu o trabalho.
Então, se evoluímos tanto em termos de tecnologia vindo da pedra, passando pelo metal, desenvolvendo a agricultura, a indústria. Se já fomos à lua e nos aproximamos de Marte, se já fazemos transplante e descobrimos e controlamos o mundo microscópio, se inventamos o computador, se tudo isso já fizemos, por que somos incapazes de criar uma sociedade minimamente justa, onde não predomine o número de excluídos?
Na Idade Média se acreditou que a sociedade justa não seria possível por vontade divina. Afinal, Deus que tudo havia feito e tudo sabia, criara os homens dividindo-os entre os que rezavam, os que guerreavam e os que trabalhavam. Se essa era a sua vontade, quem poderia desafiá-la, diziam homens como Jean Bodin.
Na Idade Moderna, mesmo sonhadores iluministas mais humanistas como Rosseau, desistiam de seus sonhos acreditando numa natural diferença dos seres em sua capacidade de adquirir, manter e acumular patrimônios. Era o dogma da propriedade privada prevalecendo sobre a utopia de uma sociedade igualitária.
Na Idade Contemporânea Marx dizia que tudo isso, vontade divina, capacidade de acumular bens, tudo, era balela assim como balela eram as utopias sem politização e proclamou a necessidade da organização das massas estruturadas num partido e numa práxis revolucionária, para estabelecer a sociedade igualitária do proletariado. Mas, o socialismo real perpetrado no século XX levou a ditaduras ainda piores que as ditaduras das desigualdades.
Então, será impossível criar uma sociedade justa? Tantos pensadores, tantas teorias e obras...
Pois vou responder essa questão, tão profundamente analisada por honoráveis pensadores.
A sociedade justa é impossível e sabe por quê?
Porque o ser humano é mesquinho, e pobre por dentro.
Porque as criaturas que tem um pouquinho lutam desesperadamente para esse pouquinho continuar sendo a diferença em relação aos que não têm nada.
Veja o caso brasileiro, por exemplo.
Depois de 20 anos de Ditadura que economicamente nos chafurdou no atraso. Depois de décadas perdidas entre inflação descontrolada e pagamento interminável e impagável da dívida externa. Depois de tudo isso, finalmente entramos num período de desenvolvimento. Desenvolvimento real não interessa se de 20, 12, 8 ou 2 por cento, mas real, dentro de um cenário em que os países ricos estagnaram no zero.
Esse desenvolvimento, porém, só foi possível porque houve distribuição da riqueza, que impulsionou o pleno emprego e alavancou o consumo. Isso se comprova ao verificar o crescimento da classe média e a diminuição do número de pessoas em estado de pobreza e de miséria absoluta.
Então, o que vemos? Uma euforia solidária e um sentimento de cumplicidade?
Não.
O que se vê é gente reclamando desses tempos de tantos carros nas ruas. De tanta gente nas lojas fazendo aumentar as malditas filas. De tanta gente na praia. De tanta gente, nordestinos, negros, desdentados, principalmente, exigindo cidadania.
Há no ar um ódio muito mal disfarçado por um governo que tornou os miseráveis, consumidores.
Bons eram os tempos em que dar esmola era demonstração de status.
Bom era quando se podia olhar o mar de casebres, balançar a cabeça compadecido e dizer com cara de escândalo “Oh meu Deus, que absurdo!”.
Não que não mais existam favelas ou miseráveis pois a pobreza não desaparece como por milagre assim como os dentes permanentes não renascem. Mas a cantinela é de ultraje pela redução da desgraça.
A sociedade justa e igualitária imaginadas por Marx, Bakunin, e tantos outros não é possível e jamais será possível por causa da nossa pobreza de dentro enquanto eles pensaram apenas na pobreza de fora.
Se é verdade que a sobrevivência só foi possível porque somos um ser gregário, também é verdade que nossa desgraça só é possível porque somos um ser egoísta.
O homem que ser feliz, mas feliz sozinho, tendo o máximo possível de miseráveis que lhe invejem a fartura!
Prof. Péricles
domingo, 10 de junho de 2012
O PASTOR E SUAS OVELHINHAS
No primeiro dia foram oito horas de torturas patrocinadas por sete militares. Pau de arara, choque elétrico, cadeira do dragão e insultos, na tentativa de lhe quebrar a resistência física e moral. “Eu tinha muito medo do que ia sentir na pele, mas principalmente de não suportar e falar.
Queriam que eu desse o nome de todos os meus amigos, endereços…
Eu dizia: “Não posso fazer isso. Como eu poderia trazê-los para passar pelo que eu estava passando?”
O estudante de ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP) Anivaldo Pereira Padilha, da Igreja Metodista do bairro da Luz, tinha 29 anos quando foi preso pelo temido órgão do Exército. Foram mais de 20 dias de torturas a partir de 28 de fevereiro de 1970, nos porões do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo. Chegou apensar em suicídio, com medo de trair os companheiros de igreja que comungavam de sua sede por justiça social. Mas o mineiro acredita piamente que conseguiu manter o silêncio, apesar das atrocidades que sofreu no corpo franzino, por causa da fé.
A mesma crença que o manteve calado e o conduziu, depois de dez meses preso, para um exílio de 13 anos em países como Uruguai, Suíça e Estados Unidos levou vários evangélicos a colaborar com a máquina repressora da ditadura. Delatando irmãos de igreja, promovendo eventos em favor dos militares e até torturando.
Os primeiros eram ecumênicos e promoviam ações sociais e os segundos eram herméticos e
lutavam contra a ameaça comunista.
Padilha foi um entre muitos que tombaram pelas mãos de religiosos protestantes. O metodista só descobriu quem foram seus delatores há cinco anos, quando teve acesso a documentos do antigo Sistema Nacional de Informações: os irmãos José Sucasas Jr. e Isaías Fernandes Sucasas, pastor e bispo da Igreja Metodista, já falecidos, aos quais era subordinado em São Paulo. “Eu acreditava ser impossível que alguém que se dedica a ser padre ou pastor, cuja função é proteger suas ovelhas, pudesse dedurar alguém”, diz Padilha, que não chegou a se surpreender com a descoberta. “Seis meses antes de ser preso, achei na mesa do pastor José Sucasas uma carteirinha de informante do Dops”, afirma o altivo senhor de 71 anos, quatro filhos, entre eles Alexandre, atual ministro da Saúde da Presidência de Dilma Rousseff, que ele só conheceu aos 8 anos de idade.
Somente em 1968, quatro anos após a ascensão dos militares ao poder, o catolicismo começou a se distanciar daquele papel que tradicionalmente lhe cabia na legitimação da ordem político-econômica estabelecida. Foi aí, quando no Brasil religiosos dominicanos como Frei Betto passaram a ser perseguidos, que a Igreja assumiu posturas contrárias às ditaduras na maioria dos países latino-americanos.
Os protestantes, por sua vez, antes mesmo de 1964, viveram uma espécie de golpe endógeno em suas denominações, perseguindo a juventude que caminhava na contramão da
ortodoxia teológica.
Em novembro de 1963, quatro meses antes de o marechal Humberto Castelo Branco assumir a Presidência, o líder batista carismático Enéas Tognini convocou milhares de evangélicos para um dia nacional de oração e jejum, para que Deus salvasse o País do perigo comunista. Aos 97 anos, o pastor Tognini segue acreditando que Deus, além de brasileiro, se tornou um anticomunista simpático ao movimento militar golpista. “Não me arrependo (de ter se alinhado ao discurso dos militares). Eles fizeram um bom trabalho, salvaram a Pátria do comunismo”.
Assim, foi no exercício de sua fé que os evangélicos – que colaboraram ou foram perseguidos pelo regime – entraram na alça de mira dos militares. Enquanto líderes conservadores propagavam o discurso da Guerra Fria em torno do medo do comunismo nos templos e recrutavam formadores de opinião, jovens batistas, metodistas e presbiterianos, principalmente, com idéias liberais eram interrogados, presos, torturados e mortos.
“Fui expulso, com mais oito colegas, do Seminário Presbiteriano de Campinas, em 1962, porque o nosso discurso teológico de salvação das almas passava pela ética e a preocupação social”, diz o mineiro Zwinglio Mota Dias, 70 anos, pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, da Penha, no Rio de Janeiro.
“Levei um pescoção, me ameaçavam mostrando gente torturada e davam choques em pessoas na minha frente”, conta o irmão do também presbiteriano Ivan Mota, preso e desaparecido desde 1971. Hoje professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Dias lembra que, enquanto estava no Doi-Codi, militares enviaram observadores para a sua igreja, para analisar o comportamento dos fiéis.
Segundo Rubem Cesar Fernandes, 68 anos, antropólogo de origem presbiteriana, preso em 1962, antes do golpe, por participar de movimentos estudantis, os evangélicos carregam uma mancha em sua história por convidar a repressão a entrar na Igreja e perseguir os
fiéis. “Os católicos não fizeram isso. Não é justificável usar o poder militar para prender irmãos”, diz ele, considerado “elemento perigoso” no templo que freqüentava em Niterói (RJ).
“Pastores fizeram uma lista com 40 nomes e entregaram aos militares. Um almirante que vivia na igreja achava que tinha o dever de me prender. Não me encontrou porque eu estava escondido e, depois, fui para o exílio”, conta o hoje diretor da ONG Viva Rio.
O protestantismo histórico no Brasil também registra um alto grau de envolvimento de suas lideranças com a repressão. Em sua tese de pós-graduação, defendida na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), Daniel Augusto Schmidt teve acesso ao diário do irmão de José, um dos delatores de Anivaldo Padilha, o bispo Isaías. Na folha relativa a 25 de março de 1969, o líder metodista escreveu: “Eu e o reverendo Sucasas fomos até o quartel do Dops. Conseguimos o que queríamos, de maneira que recebemos o documento que nos habilita aos serviços secretos dessa organização nacional da alta polícia do Brasil.”
Nenhum religioso, porém, parece superar a obediência canina ao regime militar do pastor batista Roberto Pontuschka, capelão do Exército que à noite torturava os presos e de dia visitava celas distribuindo o “Novo Testamento”. O teólogo Leonildo Silveira Campos, que era seminarista na Igreja Presbiteriana Independente e ficou dez dias encarcerado nas dependências da Operação Bandeirante (Oban), em São Paulo, em 1969, não esquece o modus operandi de Pontuschka. “Um dia bateram na cela: ‘Quem é o seminarista que está aqui?’”, conta ele, 21 anos à época. “De terno e gravata, ele se apresentou como capelão e disse que trazia uma “Bíblia” para eu ler para os comunistas f.d.p. e tentar converter alguém.”
O capelão chegou a ser questionado por um encarcerado se não tinha vergonha de torturar e tentar evangelizar. Como resposta, o pastor batista afirmou, apontando para uma pistola debaixo do paletó: “Para os que desejam se converter, eu tenho a palavra de Deus. Para quem não quiser, há outras alternativas.”
Professor de sociologia da religião na Umesp, Campos, 64 anos, tem uma marca de queimadura no polegar e no indicador da mão esquerda produzida por descargas elétricas. “Enrolavam fios na nossa mão e descarregavam eletricidade”, conta. Uma carta escrita por ele a um amigo, na qual relata a sua participação em movimentos estudantis, o levou à prisão. “Fui acordado à 1h por uma metralhadora encostada na barriga.” Solto por falta de provas, foi tachado de subversivo e perdeu o emprego em um banco.
Para seguir em frente, Anivaldo Padilha trilhou o caminho do perdão – tanto dos delatores quanto dos torturadores. Em 1983, ele encontrou um de seus torturadores em um baile de Carnaval. “Você quis me matar, seu f.d.p., mas eu estou vivo aqui”, pensou, antes de virar as costas. Enquanto o mineiro, que colabora com uma entidade ecumênica focada na defesa de direitos, cutuca suas memórias, uma lágrima desce do lado direito de seu rosto e, depois de enxuta, dá vez para outra, no esquerdo. Um choro tão contido e vívido quanto suas lembranças e sua dor.
Ednaldo Correia Fonseca
ecfon@yahoo.com.br
Queriam que eu desse o nome de todos os meus amigos, endereços…
Eu dizia: “Não posso fazer isso. Como eu poderia trazê-los para passar pelo que eu estava passando?”
O estudante de ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP) Anivaldo Pereira Padilha, da Igreja Metodista do bairro da Luz, tinha 29 anos quando foi preso pelo temido órgão do Exército. Foram mais de 20 dias de torturas a partir de 28 de fevereiro de 1970, nos porões do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo. Chegou apensar em suicídio, com medo de trair os companheiros de igreja que comungavam de sua sede por justiça social. Mas o mineiro acredita piamente que conseguiu manter o silêncio, apesar das atrocidades que sofreu no corpo franzino, por causa da fé.
A mesma crença que o manteve calado e o conduziu, depois de dez meses preso, para um exílio de 13 anos em países como Uruguai, Suíça e Estados Unidos levou vários evangélicos a colaborar com a máquina repressora da ditadura. Delatando irmãos de igreja, promovendo eventos em favor dos militares e até torturando.
Os primeiros eram ecumênicos e promoviam ações sociais e os segundos eram herméticos e
lutavam contra a ameaça comunista.
Padilha foi um entre muitos que tombaram pelas mãos de religiosos protestantes. O metodista só descobriu quem foram seus delatores há cinco anos, quando teve acesso a documentos do antigo Sistema Nacional de Informações: os irmãos José Sucasas Jr. e Isaías Fernandes Sucasas, pastor e bispo da Igreja Metodista, já falecidos, aos quais era subordinado em São Paulo. “Eu acreditava ser impossível que alguém que se dedica a ser padre ou pastor, cuja função é proteger suas ovelhas, pudesse dedurar alguém”, diz Padilha, que não chegou a se surpreender com a descoberta. “Seis meses antes de ser preso, achei na mesa do pastor José Sucasas uma carteirinha de informante do Dops”, afirma o altivo senhor de 71 anos, quatro filhos, entre eles Alexandre, atual ministro da Saúde da Presidência de Dilma Rousseff, que ele só conheceu aos 8 anos de idade.
Somente em 1968, quatro anos após a ascensão dos militares ao poder, o catolicismo começou a se distanciar daquele papel que tradicionalmente lhe cabia na legitimação da ordem político-econômica estabelecida. Foi aí, quando no Brasil religiosos dominicanos como Frei Betto passaram a ser perseguidos, que a Igreja assumiu posturas contrárias às ditaduras na maioria dos países latino-americanos.
Os protestantes, por sua vez, antes mesmo de 1964, viveram uma espécie de golpe endógeno em suas denominações, perseguindo a juventude que caminhava na contramão da
ortodoxia teológica.
Em novembro de 1963, quatro meses antes de o marechal Humberto Castelo Branco assumir a Presidência, o líder batista carismático Enéas Tognini convocou milhares de evangélicos para um dia nacional de oração e jejum, para que Deus salvasse o País do perigo comunista. Aos 97 anos, o pastor Tognini segue acreditando que Deus, além de brasileiro, se tornou um anticomunista simpático ao movimento militar golpista. “Não me arrependo (de ter se alinhado ao discurso dos militares). Eles fizeram um bom trabalho, salvaram a Pátria do comunismo”.
Assim, foi no exercício de sua fé que os evangélicos – que colaboraram ou foram perseguidos pelo regime – entraram na alça de mira dos militares. Enquanto líderes conservadores propagavam o discurso da Guerra Fria em torno do medo do comunismo nos templos e recrutavam formadores de opinião, jovens batistas, metodistas e presbiterianos, principalmente, com idéias liberais eram interrogados, presos, torturados e mortos.
“Fui expulso, com mais oito colegas, do Seminário Presbiteriano de Campinas, em 1962, porque o nosso discurso teológico de salvação das almas passava pela ética e a preocupação social”, diz o mineiro Zwinglio Mota Dias, 70 anos, pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, da Penha, no Rio de Janeiro.
“Levei um pescoção, me ameaçavam mostrando gente torturada e davam choques em pessoas na minha frente”, conta o irmão do também presbiteriano Ivan Mota, preso e desaparecido desde 1971. Hoje professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Dias lembra que, enquanto estava no Doi-Codi, militares enviaram observadores para a sua igreja, para analisar o comportamento dos fiéis.
Segundo Rubem Cesar Fernandes, 68 anos, antropólogo de origem presbiteriana, preso em 1962, antes do golpe, por participar de movimentos estudantis, os evangélicos carregam uma mancha em sua história por convidar a repressão a entrar na Igreja e perseguir os
fiéis. “Os católicos não fizeram isso. Não é justificável usar o poder militar para prender irmãos”, diz ele, considerado “elemento perigoso” no templo que freqüentava em Niterói (RJ).
“Pastores fizeram uma lista com 40 nomes e entregaram aos militares. Um almirante que vivia na igreja achava que tinha o dever de me prender. Não me encontrou porque eu estava escondido e, depois, fui para o exílio”, conta o hoje diretor da ONG Viva Rio.
O protestantismo histórico no Brasil também registra um alto grau de envolvimento de suas lideranças com a repressão. Em sua tese de pós-graduação, defendida na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), Daniel Augusto Schmidt teve acesso ao diário do irmão de José, um dos delatores de Anivaldo Padilha, o bispo Isaías. Na folha relativa a 25 de março de 1969, o líder metodista escreveu: “Eu e o reverendo Sucasas fomos até o quartel do Dops. Conseguimos o que queríamos, de maneira que recebemos o documento que nos habilita aos serviços secretos dessa organização nacional da alta polícia do Brasil.”
Nenhum religioso, porém, parece superar a obediência canina ao regime militar do pastor batista Roberto Pontuschka, capelão do Exército que à noite torturava os presos e de dia visitava celas distribuindo o “Novo Testamento”. O teólogo Leonildo Silveira Campos, que era seminarista na Igreja Presbiteriana Independente e ficou dez dias encarcerado nas dependências da Operação Bandeirante (Oban), em São Paulo, em 1969, não esquece o modus operandi de Pontuschka. “Um dia bateram na cela: ‘Quem é o seminarista que está aqui?’”, conta ele, 21 anos à época. “De terno e gravata, ele se apresentou como capelão e disse que trazia uma “Bíblia” para eu ler para os comunistas f.d.p. e tentar converter alguém.”
O capelão chegou a ser questionado por um encarcerado se não tinha vergonha de torturar e tentar evangelizar. Como resposta, o pastor batista afirmou, apontando para uma pistola debaixo do paletó: “Para os que desejam se converter, eu tenho a palavra de Deus. Para quem não quiser, há outras alternativas.”
Professor de sociologia da religião na Umesp, Campos, 64 anos, tem uma marca de queimadura no polegar e no indicador da mão esquerda produzida por descargas elétricas. “Enrolavam fios na nossa mão e descarregavam eletricidade”, conta. Uma carta escrita por ele a um amigo, na qual relata a sua participação em movimentos estudantis, o levou à prisão. “Fui acordado à 1h por uma metralhadora encostada na barriga.” Solto por falta de provas, foi tachado de subversivo e perdeu o emprego em um banco.
Para seguir em frente, Anivaldo Padilha trilhou o caminho do perdão – tanto dos delatores quanto dos torturadores. Em 1983, ele encontrou um de seus torturadores em um baile de Carnaval. “Você quis me matar, seu f.d.p., mas eu estou vivo aqui”, pensou, antes de virar as costas. Enquanto o mineiro, que colabora com uma entidade ecumênica focada na defesa de direitos, cutuca suas memórias, uma lágrima desce do lado direito de seu rosto e, depois de enxuta, dá vez para outra, no esquerdo. Um choro tão contido e vívido quanto suas lembranças e sua dor.
Ednaldo Correia Fonseca
ecfon@yahoo.com.br
quarta-feira, 6 de junho de 2012
BIOGRAFIA
Aos 10 anos acompanhou toda conversa que seu pai e seu Tio Manco mantinham sobre a Revolução Cubana.
Embora ameaçado de palmadas, e o tio manco baixasse por demais o volume da voz, ainda assim, escondido entre os sacos de batatas e cebolas do armazém, conseguia ouvir alguns relatos.
Passou a admirar Tche Guevara, como o grande lutador da liberdade e apesar da confundir o nome de Fidel com a designação de “comandante” achando que eram duas pessoas, amou a ambos.
Aos 14 anos abraços seu Tio Manco que chorava com o jornal amassado entre os braços noticiando que o Presidente se retirava do país sem lutar. Fez que não percebia que seu pai fugia quando com apenas uma pequena bagagem se despediu de sua mãe, dele e de sua irmãzinha, com o beijo mais dolorido que jamais sentiu um dia.
Aos 18 entrou na faculdade em março, tornou-se freqüentador das reuniões sigilosas do centro acadêmico em maio e soube que o centro estava fechado com o AI-5 em dezembro.
Aos 19 anos uma carta de sua mãe anunciava a morte do Tio Manco, surrado até a morte numa delegacia de polícia.
Bem sabia que o velho Tio Manco não resistiria muito às torturas, mas o surpreendeu, quando aos 20 anos soube que seu pai morrera nas dependências do DOPS de Pernambuco, estado que ele nem conhecia.
Leu livros proibidos: Marx, Lênin, Bakunin, Hegel. Sonhou que namorava com Olga, com Rosa e que pedia conselhos a Antônio. Escreveu panfletos subversivos. E passou a militar em partido clandestino. O mesmo PC do B de seu pai e do Tio Manco.
Aos 21 tornou-se clandestino. Sem endereço, sem lenço e sem documento, e viajou para destino ignorado até por ele.
Aos 22 anos, em certa noite de lua cheia, devido à insônia, mesmo torturado pela malária, pôs de lado os trapos que serviam de coberta e ao erguer-se da cama improvisada foi atingido sem aviso e sem chance de defesa por uma rajada de metralha.
Morreu no Araguaia.
Hoje seu corpo continua desaparecido, mas sua alma, junto com seu pai e com o Tio Manco, faz versos de liberdade que, juntos, recitam para as estrelas.
Prof. Péricles
segunda-feira, 4 de junho de 2012
COMO ÓLEO SOBRE A ÁGUA
A Comissão da Verdade, nomeada pela presidente Dilma, corre o risco de se transformar em Comissão da Vaidade, caso seus integrantes façam dela alavanca de vaidades pessoais.
No dia seguinte às nomeações, ainda antes da posse, opiniões díspares dos membros da comissão quanto a seu objetivo precípuo surgiram na mídia.
O ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, se enquadra nos critérios definidos pela lei que criou a comissão?
Nos termos de seu artigo 2º, §1, inciso II, "Não poderão participar da Comissão Nacional da Verdade aqueles que (...) não tenham condições de atuar com imparcialidade no exercício das competências da Comissão".
Ao atuar como perito do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, Dipp se posicionou contra familiares dos guerrilheiros do Araguaia, cujos corpos encontram-se desaparecidos. Agirá agora com imparcialidade?
O papel dos sete nomeados é investigar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. O foco principal é, em nome do Estado, abraçarem a postura épica e ética de Antígona e dar sepultura digna aos mortos e desaparecidos sob a ditadura militar (1964-1985).
A comissão atuará sob a obscura luz da injusta Lei da Anistia, promulgada em 1979 e referendada pelo STF em 2010. Essa lei nivela torturadores e torturados, assassinos e assassinados. Ora, como anistiar quem jamais sofreu julgamento, sentença e punição?
Não houve "dois lados". Houve o golpe de Estado perpetrado por militares e a derrubada de um governo constitucional e democraticamente eleito.
A ditadura implantada cassou e caçou partidos e políticos, e criou um aparelho repressivo ("o monstro", segundo o general Golbery) que instalou centros de torturas mantido com recursos públicos e privados.
O aparelho repressivo, em nome da "segurança nacional", prendeu, seviciou, assassinou, exilou, baniu e fez desaparecer os que ousaram combater a ditadura e também inúmeras pessoas que jamais se envolveram com a resistência organizada, como o ex-deputado Rubens Paiva, o jornalista Vladimir Herzog e o padre Antônio Henrique Pereira Neto.
Cabe à comissão elucidar a morte das vítimas da ditadura, o que ocorreu aos desaparecidos e quem são os responsáveis por tais atrocidades. Militares cumprem ordens superiores. É preciso apurar quem determinou a prática de torturas, a eliminação sumária de militantes políticos e o ocultamento de seus corpos.
A comissão deverá, enfim, abrir os arquivos das Forças Armadas, ouvir algozes e seus superiores hierárquicos, ouvir vítimas e parentes dos desaparecidos e esclarecer episódios emblemáticos jamais devidamente investigados, como o atentado ao Riocentro, em 1981, preparado para ceifar a vida de milhares de pessoas.
Defender o conceito acaciano de "crimes conexos" e convocar como suspeitos aqueles a quem o Brasil deve, hoje, o resgate da democracia e do Estado de Direito, equivaleria a imputar à Resistência Francesa crimes contra a ocupação nazista de Paris ou convocar os judeus como réus no Tribunal de Nuremberg.
Os integrantes da Comissão da Verdade sabem muito bem que legalidade e justiça não são sinônimos. E tenham presente a afirmação de Cervantes: "A verdade alivia mais do que machuca. E estará sempre acima de qualquer falsidade, como o óleo sobre a água".
Frei Betto
quinta-feira, 31 de maio de 2012
LOBO EM PELE DE CORDEIRO
Por decisão unânime da Comissão de Anistia, proferida na noite desta terça (22/05), José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, constará nas páginas da história do Brasil como um agente infiltrado que contribuiu para a prisão, tortura e morte de mais de uma centena de militantes contrários à ditadura militar, entre eles sua companheira, a paraguaia Soledad Barret Viedma, grávida de sete meses de um filho dele. E não como um anistiado político, digno do pedido de perdão do Estado brasileiro e merecedor de reparação financeira da ordem de R$ 100 mil, como ele requer, desde 2003.
A Comissão da Anistia negou provimento ao seu pleito, no mais emblemático julgamento já realizado nos seus dez anos de trabalho. Em parecer histórico, o relator do processo, o ex-ministro dos Direitos Humanos Nilmário Miranda, destacou que, conforme a Constituição de 1988, a anistia só pode ser concedida aos perseguidos pelo regime, categoria em que Anselmo
não se enquadra, por se tratar delator confesso que contribuiu com a prisão de 100 a 200 companheiros, muitos deles assinados nos porões da ditadura.
Segundo Miranda, a Constituição estabelece a anistia como “reparação às vítimas”, ao contrário do entendimento reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010, com base em Lei de 1979, que a classifica como “esquecimento”, válida tanto para ações de militantes políticos quanto para crimes cometidos por agentes do estado. “Não foi uma contestação à decisão do STF. Minha interpretação sobre a anistia é pública e anterior”, explicou o ex-ministro, ao final do julgamento.
O presidente da Comissão e secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, reiterou, em plenário, o entendimento do relator. Segundo ele, são várias as leis brasileiras que tratam do conceito de anistia. “Após a Lei de 1979, já tivemos a Emenda 36, o Artigo 8ª das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 e a Lei 10.559/2001, que regulamenta a
Constituição. O conceito que trabalhamos aqui é o atual”, esclareceu.
No seu parecer, Miranda reconheceu que o período em que o ex-cabo trabalhou para o regime é ainda controverso. Anselmo admitiu a colaboração com os militares a partir de 1971, quando teria sido preso e, conforme seu advogado, Luciano Blandy, obrigado a trabalhar para o então delegado chefe do DOPS de São Paulo, Sérgio Fleury. Depoimentos do próprio requerente,
entretanto, colocam a versão sob suspeição. Em entrevista à revista Isto É, em 1985, ele admitiu que sua prisão foi uma farsa e que trabalhava para o regime por convicções ideológicas.
Outros colaboradores que se apresentaram durante o julgamento também atestaram que a contribuição dele com o regime é anterior ao golpe de 64. O jornalista da Folha de S. Paulo, Mário Magalhães, apresentou o áudio de uma entrevista que fez com o ex-delegado do DOPS do Rio de Janeiro, Cecil de Macedo Borer, em 2001, no qual o reconhecido agente da ditadura confirmava que Anselmo trabalhava para os militares desde o início da década. Dessa forma, a expulsão dele da Marinha, com base no Ato Institucional n 1 da Ditadura, fora apenas uma estratégia para que ele ganhasse a confiança dos grupos de esquerda que iria ajudar a dizimar no futuro.
O jornalista, historiador e ex-preso político Jarbas Marques acrescentou que, segundo denúncias ainda não comprovadas, o cabo já recebe uma pensão do governo, por meio de documentos falsos que lhe foram fornecidos pelo também ex-delegado do DOPS, Romeu Tuma.
O relator, porém, minimizou a persistência desta dúvida histórica para efeitos da sua decisão. Para ele, mesmo que Anselmo tenha sido perseguido pelo regime nos primeiros anos após o golpe, seu comportamento preponderante foi o de perseguidor de militantes. De acordo com Miranda, os autos mostram que ele trabalhou para Fleury como um legítimo agente do estado, morando em apartamento cedido pela ditadura e recebendo proventos por seus serviços.
“Anistiá-lo seria um situação de tal forma esdrúxula, que não encontraria precedentes em outras comissões de outros países”, ponderou.
terça-feira, 29 de maio de 2012
O POEMA DE TERROR DE SOLEDAD
José Anselmo dos Santos foi figura destacada nos momentos mais dramáticos que levaram ao Golpe militar de 1964. Conhecido como “Cabo Anselmo” proferiu discursos e dirigiu o movimento de revolta dos marinheiros, usado, largamente pelos defensores da necessidade do golpe como, clara demonstração de quebra de hierarquia. Foi preso logo depois do 31 de março. Fugiu. Reapareceu em Cuba, e retornou clandestinamente ao Brasil em 1971.
Em Cuba conheceu uma revolucionária romântica, a paraguaia Soledad Barrett Viedma, capaz de escrever poemas de amor e de justiça naqueles tempos de horror. Soledad envolveu-se emocionalmente com ele e,ficou grávida do Cabo Anselmo, sendo sua companheira na clandestinidade.
O que Soledade e ninguém das organizações clandestinas sabia, é que “Cabo Anselmo” trabalhava para a repressão. Segundo ele, a partir de 1971 passou a ser informante ligado ao famigerado policial-assassino Sérgio Paranhos Fleury, por motivação ideológica (teria se desiludido com a revolução cubana). Para muitos, já seria um elemento pago e mantido pelo regime, desde 1964.
Em suas próprias palavras, perto de 200 pessoas foram entregues por ele. Gente com quem dividia o quarto, a mesa, visitava a família, beijava seus filhos e seus pais. A maioria dessas pessoas acabou morta sob torturas nos porões da Ditadura.
Uma de suas vítimas foi a própria Soledad Barrett, morta com outros 6 militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Até hoje não se sabe se o grupo foi morto numa emboscada assim que descobriram a verdadeira identidade do Cabo Anselmo e preparavam para detê-lo, ou se foram antes, presos e morreram sobre sádicas torturas.
Cabo Anselmo, com certeza, é uma das mais sinistras e maléficas figuras do grande pesadelo que foi a “guerra suja” no Brasil. Até hoje vive escondido, teme vingança, mas diz não ter nenhum remorso por qualquer coisa que tenha feito.
Transcrevemos abaixo texto do livro “Soledade no Recife” de Urariano Mota, publicado pela Boitempo escrito sob uma pesquisa histórica, documental, que fala do horror e da surpresa de Soledad, ao descobrir entre os policiais a cara do marido, o agente duplo a quem amava:
“A cara de Anselmo, no conjunto dos sinais, Soledad não via. Não tanto porque a desconfiança nunca lhe houvesse batido à percepção. Mas porque isso era tão horrível, que o seu senso estético repugnava. Uma coisa que o seu peito de justiça não queria nem podia aceitar. E recuava, no mesmo passo em que os indícios cresciam.
(...) A pergunta que Soledad não se fizera diante das imagens que a perseguiam nos últimos meses, por quê? qual a razão delas, agora à luz do dia em Boa Viagem, em uma butique da ensolarada praia de Boa Viagem, aonde ela foi para vender roupas, onde ela está com Pauline, ali, sob a prazenteira luz física do Brasil, a pergunta pelas razões dos sonhos e pesadelos que ela não se fizera, agora vêm com um susto, um terror, diante do real bruto. José Anselmo dos Santos se encontra entre os homens que lhe batem na cabeça com armas e punhos.
- Por quê? Por quê?
Pauline está muda e petrificada, incapaz de correr e falar. Soledad olha para os olhos do homem que pensara ser o seu companheiro, e isso, essa realidade, o pesadelo por guardar uma altura ética jamais mostrou. O pesadelo fora incapaz de exibir toda a crueza. Anselmo não sorri agora, sorrirá depois, quando lhe perguntarem
- Você dorme bem?
- Putz, tranquilamente.
Ou mais textualmente:
- Você dorme tranqüilo? Nunca sentiu pesadelo durante a noite? Não tem remorso pelo que fez?
- Absolutamente (risos)....
Por enquanto, não, agora na butique em Boa Viagem ele não ri, embora a cena lhe pareça um tanto cômica.
- Por quê? Por quê?
Ele apenas assiste ao espancamento e suplício. Como uma prova de que é contra esses terroristas.
‘Eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério... em um barril estava Soledad Barret Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto’.
Quando Mércia Albuquerque declarou essas palavras, não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao feio e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco falou entre lágrimas, com a pressão sangüínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: ‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror’.
No depoimento da advogada não há uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa se fraterniza e confraterniza com pessoas. ‘Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela’. Distante dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se refere a cadáveres, mas a gente. Chama-a pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo, Evaldo, Manuel, Soledad.
Recorda a situação vexatória em que estavam – porque eram homens e mulheres – despidos. O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmara de sofrimento. ‘A boca de Soledad estava entreaberta’ “.
Prof. Péricles
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