sábado, 7 de novembro de 2015

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE FLORES



Por Vitor Nuzzi


Pouca coisa se sabe efetivamente sobre a obra de Geraldo Vandré. Sua carreira de músico profissional foi relativamente curta e prejudicada por um certo folclore alimentado pelo silêncio.


São apenas cinco LPs lançados, de 1964 a 1973, data de seu retorno ao Brasil, após quatro anos e cinco meses de andanças pelo exterior, em uma saída forçada pela repercussão de sua música mais conhecida, Pra não Dizer que não Falei das ­Flores (Caminhando), de 1968.


A partir daí, prevaleceram as lendas. Para usar uma expressão do escritor Eric Nepomuceno, em artigo recente no jornal Valor Econômico, o artista "alcançou píncaros de luz para depois mergulhar numa névoa densa, carregada de perguntas sem resposta e mistérios sem solução".


As perguntas mais recorrentes são se Vandré foi mesmo torturado, se enlouqueceu. Ou por que motivo nunca mais se apresentou no Brasil – seu último show foi do lado paraguaio da fronteira, em 1982. A alguns artistas, como Jair Rodrigues e Ney Matogrosso, chegou a falar em fazer apresentações "nas fronteiras", que nunca aconteceram.


Vandré estava no radar do regime, mas tortura física nunca houve. Talvez algo mais grave tivesse acontecido se ficasse no Brasil. Depois da decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, ele permaneceu escondido – na casa de praia do pai de sua namorada, no litoral sul paulista, e depois no apartamento de dona Aracy, viúva de Guimarães Rosa, no Rio de Janeiro, perto do Forte de Copacabana. Os soldados faziam manobras e Vandré, versos.


Durante o carnaval de 1969, ele deixou o país disfarçado em direção ao Uruguai, e de lá para o Chile. Partiu para a Europa, andou pelo Velho Continente, fixou-se na França e, por fim, voltou ao Chile, de onde saiu dois meses antes do golpe que em setembro de 1973 derrubou Salvador Allende e iniciou um período de terror.


Artistas como Caetano Veloso e Chico­ Buarque, presos naquela época, dizem que nos interrogatórios era possível perceber certa "prioridade" dos militares em relação a Vandré. Alguns falavam mesmo em matá-lo, segundo o compositor baiano.


Famoso produtor de festivais, Solano Ribeiro acredita que ele poderia ser morto se fosse preso no pós AI-5. Por ironia, seu último show no Brasil como cantor profissional foi em 13 de dezembro, data do ato institucional, em Anápolis (GO).


O motivo de tanta raiva seriam alguns versos de Caminhando, que teriam sido especificamente destinados aos militares, em um período que culminaria no período mais violento da ditadura.


Em 2007, à então estudante de Jornalismo Jeane Vidal, o autor chamaria sua obra mais famosa de expiação. "Mais do que uma canção, Caminhando foi um desnudamento. Um dizer-se tudo quando era proibido dizer-se quase tudo. Sem ofensas e sem reivindicações. Um relato indeclinável para todos nós, brasileiros, que ali nos reunimos num concurso de arte, sem paradigma e sem igual, até hoje, para mim."


O concurso a que Vandré se refere foi o Festival Internacional da Canção (FIC). Um representante do Brasil seria escolhido previamente para a fase internacional. Ganhou Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque. Uma música delicada, que tratava do exílio, mas de forma sutil.


O público queria a canção explícita de Vandré e vaiou longamente a decisão dos jurados. Não era exatamente para Tom, mas ficou marcada como a maior vaia que o compositor recebeu.


O médico otorrino José Vandregíselo (do qual se origina o nome artístico) foi ligado ao Partido Comunista, mas seu filho Geraldo nunca foi militante político.


Paraibano de João Pessoa, no Chile, chegou a ser internado para tratamentos psiquiátricos.


Uma condição para a permanência no Brasil foi uma falsa entrevista, forjada pelos militares e exibida no Jornal Nacional, da Globo, um mês depois da real data de seu retorno. Ali, Vandré renegou qualquer uso político de sua obra. Foi uma espécie de retratação, como se dizia na época.


O silêncio foi imposto e também assumido.


Vandré deu entrevista em 1974 para o programa de estreia de Flávio Cavalcanti, mas o censor viu "apologia" à figura do artista e vetou o quadro. O Brasil também era outro.


Para a pesquisadora Dalva Silveira, autora do livro A Vida não se Resume em Festivais, houve uma tentativa do governo autoritário de "apagar Vandré e sua obra da memória coletiva nacional", à medida que a imprensa não podia fazer referência ao seu nome, nem ele podia se apresentar.


Mas o compositor faz também sua crítica à sociedade que, de alguma forma, deu as costas quando ele retornou, doente e fragilizado, e que talvez o preferisse como mártir.


Assim, há muito o que se explorar e descobrir no universo musical criado por Vandré. Sem se preocupar tanto com o festival que representou seu auge e o fim, ao mesmo tempo. Até hoje fala-se em uma possível pressão militar para que Caminhando não ganhasse em 1968.


"A história reserva às peças desse tabuleiro as suas posições corretas, não adianta você mexer. Tanto filme ganha Festival de Cannes e cai no esquecimento em seguida... E tantos filmes que não ganham prêmio nenhum e ficam eternos na memória de todos os cinéfilos", O que traduz este momento? Naquele momento, traduzimos com Caminhando."


Em Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro, onde tem vivido nos últimos tempos e onde sua mãe morava (dona Marta morreu em 2011; "seu “José, em 1986), ele se ocupa, fazendo canções e versos em silêncio.





O repórter Vitor Nuzzi lançou em abril o livro Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida.




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