terça-feira, 25 de setembro de 2012

CARTA ABERTA À FHC


Meu caro Fernando,

Vejo-me na obrigação de responder a carta aberta que você dirigiu ao Lula, em nome de uma velha polêmica que você e o José Serra iniciaram em 1978 contra o Rui Mauro Marini, eu, André Gunder Frank e Vânia Bambirra, rompendo com um esforço teórico comum que iniciamos no Chile na segunda metade dos nos 1960.

A discussão agora não é entre os cientistas sociais e sim a partir de uma experiência política que reflete contudo este debate teórico. Esta carta assinada por você como ex-presidente é uma defesa muito frágil teórica e politicamente de sua gestão. Quem a lê não pode compreender porque você saiu do governo com 23% de aprovação enquanto Lula deixa o seu governo com 96% de aprovação. Já discutimos em várias oportunidades os mitos que se criaram em torno dos chamados êxitos do seu governo. Já no seu governo vários estudiosos discutimos, o inevitável caminho de seu fracasso junto à maioria da população.

(...) Os dados mostram que até 1993 a economia mundial vivia uma hiperinflação na qual todas as economias apresentavam inflações superiores a 10%. A partir de 1994, Todas as economias do mundo apresentaram uma queda da inflação para menos de 10%. Claro que em cada pais apareceram os “gênios” locais que se apresentaram como os autores desta queda. Mas isto é falso: tratava-se de um movimento planetário. No caso brasileiro, a nossa inflação girou, durante todo seu governo, próxima dos 10% mais altos.

(...) E aqui chegamos no outro mito incrível. Segundo você e seus seguidores (e até setores de oposição ao seu governo que acreditam neste mito) sua política econômica assegurou a transformação do real numa moeda forte. Ora Fernando, sejamos cordatos: chamar uma moeda que começou em 1994 valendo 0,85 centavos por dólar e mantendo um valor falso até 1998, quando o próprio FMI exigia uma desvalorização de pelo menos uns 40% e o seu ministro da economia recusou-se a realizá-la “pelo menos até as eleições”, indicando assim a época em que esta desvalorização viria e quando os capitais estrangeiros deveriam sair do país antes de sua desvalorização, O fato é que quando você flexibilizou o cambio o real se desvalorizou chegando até a 4,00 reais por dólar. E não venha por a culpa da “ameaça petista” pois esta desvalorização ocorreu muito antes da “ameaça Lula”.

O plano Real não derrubou a inflação e sim uma deflação mundial que fez cair as inflações no mundo inteiro. A inflação brasileira continuou sendo uma das maiores do mundo durante o seu governo. O real foi uma moeda drasticamente debilitada. Isto é evidente: quando nossa inflação esteve acima da inflação mundial por vários anos, nossa moeda tinha que ser altamente desvalorizada. De maneira suicida ela foi mantida artificialmente com um alto valor que levou à crise brutal de 1999.

Segundo mito – Segundo você, o seu governo foi um exemplo de rigor fiscal. Meu Deus: um governo que elevou a dívida pública do Brasil de uns 60 bilhões de reais em 1994 para mais de 850 bilhões de dólares quando entregou o governo ao Lula, oito anos depois, é um exemplo de rigor fiscal? Gostaria de saber que economista poderia sustentar esta tese. Isto é um dos casos mais sérios de irresponsabilidade fiscal em toda a história da humanidade.

(...) Terceiro mito – Segundo você, o Brasil tinha dificuldade de pagar sua dívida externa por causa da ameaça de um caos econômico que se esperava do governo Lula. Fernando, não brinca com a compreensão das pessoas. Em 1999 o Brasil tinha chegado à drástica situação de ter perdido TODAS AS SUAS DIVISAS. Você teve que pedir ajuda ao seu amigo Clinton que colocou à sua disposição os 20 bilhões de dólares do tesouro dos Estados Unidos e mais uns 25 BILHÕES DE DÓLARES DO FMI, Banco Mundial e BID.
A loucura do endividamento interno colossal. A impossibilidade de realizar inversões públicas apesar dos enormes recursos obtidos com a venda de uns 100 bilhões de dólares de empresas brasileiras.

(...) Gostaria de destacar a qualidade do seu governo em algum campo mas não posso fazê-lo nem no campo cultural para o qual foi chamado o nosso querido Francisco Weffort (neste então secretário geral do PT) e não criou um só museu, uma só campanha significativa. Que vergonha foi a comemoração dos 500 anos da “descoberta do Brasil”. E no plano educacional onde você não criou uma só universidade e entrou em choque com a maioria dos professores universitários sucateados em seus salários e em seu prestígio profissional.

Não Fernando, não posso reconhecer nada que não pudesse ser feito por um medíocre presidente.Lamento muito o destino do Serra. Se ele não ganhar esta eleição vai ficar sem mandato, mas esta é a política. Vocês vão ter que revisar profundamente esta tentativa de encerrar a Era Vargas com a qual se identifica tão fortemente nosso povo. E terão que pensar que o capitalismo dependente que São Paulo construiu não é o que o povo brasileiro quer. E por mais que vocês tenham alcançado o domínio da imprensa brasileira, devido suas alianças internacionais e nacionais, está claro que isto não poderia assegurar ao PSDB um governo querido pelo nosso povo.

Vocês vão ficar na nossa história com um episódio de reação contra o verdadeiro progresso que Dilma nos promete aprofundar. Ela nos disse que a luta contra a desigualdade é o verdadeiro fundamento de uma política progressista. E dessa política vocês estão fora. Apesar de tudo isto, me dá pena colocar em choque tão radical uma velha amizade. Apesar deste caminho tão equivocado, eu ainda gosto de vocês (e tenho a melhor recordação de Ruth) mas quero vocês longe do poder no Brasil. Como a grande maioria do povo brasileiro. Poderemos bater um papo inocente em algum congresso internacional se é que vocês algum dia voltarão a frequentar este mundo dos intelectuais afastados das lides do poder.

Com a melhor disposição possível, mas com amor à verdade, me despeço.

Theotonio dos Santos

Theotonio dos Santos, economista, cientista político e um dos formuladores da Teoria da Dependência. Hoje é um dos principais expoentes da Teoria do Sistema Mundo. Mestre em Ciência Política pela UnB e doutor “notório saber” pela UFMG e pela UFF. Coordenador da cátedra e rede UNU-UNESCO de Economia Global e Desenvolvimento sustentável – REGGEN.

domingo, 23 de setembro de 2012

VERDADES E MENTIRAS



O estado não existe.

As fronteiras são mentiras criadas pela burguesia para racionalizar seus respectivos “mercados”. Pergunte a qualquer astronauta que já saiu de órbita se ele enxergou lá de cima, olhando a terra, os traçados das fronteiras...

Somos todos um só povo.

Os diferentes idiomas são riquezas a serem somadas e não empecilhos para a união.

Vivemos dentro de um grande sofisma que prega a diferença entre as nações e entre os povos como uma realidade.

Esse é o golpe de mestre, a obra-prima da sociedade burguesa. Fazer crer nas diferenças. Incentivar a divergência. Separar o trigo do trigo.

A mentira foi tão bem contada. O cantinela tão bem declamada, que ainda tem gente que acredita até que sua “raça” é superior.

Guerras se fizeram aos montes em nome dessa suposta superioridade.

E, apesar da genética colocar a última pá de cal sobre o conceito “raça” ainda persiste a xenofobia no mundo.

O estado moderno, o estado burguês nasceu de conceitos pré-concebidos que estabeleciam a demarcação de um território, uma pseudo unidade cultural e um governo que centralizasse a administração e aplicação das Leis.

A isso se chamou pátria e em seu nome foram cometidas as maiores atrocidades.

E se conceituou soberania e segurança nacional. E se armaram exércitos, mais e mais treinados para defendera a tal de pátria.

E o povo acreditou!

Acreditou porque precisava acreditar.

Acreditou porque aquelas vozes que sempre clamaram pela união de todos formando uma só nação, sempre foram sufocadas pela força da violência.

Acreditou porque sua antiga forma de organização, o feudalismo, estava superada pelas pestes, pelas guerras de seus senhores e pela fome, só que sua superação não deu lugar a uma organização mais justa.

O Estado burguês estimula a individualidade, a concorrência, o maior salário, o maior consumo.

Como aqueles cães que correm atrás de um filé estrategicamente colocado a frente para fazer correr, corremos em busca da mentira que é ficar “bem de vida” que é bem diferente de ficar “bem com a vida”.

De que vale a riqueza se não houver a miséria? De que vale a beleza se não houver a feiúra?

Nossa própria vida é uma contradição.

Assim como se constrói vencedores massifica-se “perdedores” porque os perdedores são necessários tanto quanto os vencedores.

O capitalismo, incentivando a individualidade construiu uma sociedade egoísta, endeusando a concorrência forjou uma sociedade de solitários e supervalorizando o consumo fez uma sociedade fria e desumana que despreza aquele que ficou no meio do caminho.

A evolução tecnológica é apontada como fruto da concorrência burguesa, mas quem pode garantir que essa mesma evolução não se daria numa sociedade mais fraterna?

Se hoje se investe milhões para a produção de novos antigripais, se investe de menos nas pesquisas para combater o Mal de Alzheimer, isso porque enquanto todos consomem antigripais, poucos gastam em medicação para uma camada quase rara portadora de senilidade, embora os males do Alzheimer sejam infinitamente mais dolorosos e degradantes do que os efeitos de uma gripe.

Se essa é a lógica do capital, não é a lógica da solidariedade.

Será mesmo que a evolução tecnológica não se daria se fosse menos contabilística?

O estado não existe. As fronteiras foram criadas. O vencedor é uma falácia. A compaixão uma fraqueza e a caridade só se implicar em isenção de impostos.

O ser humano fica esquecido na balança comercial.

Impossível não rir quando te chamam de utópico.

Quem afinal é mais utópico: os que acreditam numa sociedade humanizada, mesmo que distante ou os que acreditam e vivem sem questionar as mentiras criadas por cartéis?

Ando desconfiado que a utopia seja a realidade e a realidade existente uma mentira real.

Prof. Péricles

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O CHICOTE NO LOMBO DO CHICOTEADOR



Fiquei tão triste e furioso quanto qualquer norte-americano, quando ouvi sobre as bombas no Consulado dos EUA em Bengazi, Líbia. Também chorei a morte dos que morreram ali. O embaixador parecia ser alguém que realmente conhecia a região e se preocupava com os seres humanos que lá vivem. Americanos e líbios têm a chorar, mais essas mortes.

Mas não entendo o que todos ouvimos, pura retórica, da boca de Hillary Clinton, depois dos acontecimentos. Chegou ao ponto de dizer que os EUA “libertaram” Bengazi e que ajudamos o país a livrar-se do “ditador do mal” Muammar Gaddafi. Pelo que se vê, as bombas surpreenderam Clinton, que não esperava que pudessem acontecer, sobretudo no consulado dos EUA, localizado em tranquila área residencial.

Instalar o consulado naquela área residencial, mal protegido, foi terrível erro dos EUA. Sinal de arrogância. Se se vê a extensão do dano que a chamada revolução “democrática” causou à Líbia, se se vê a destruição que EUA e OTAN levaram à Líbia – EUA e OTAN ativamente armaram os chamados ‘revolucionários’ líbios, processo que implantou o caos em metade do país, quando a outra metade é governada por um conselho revolucionário que não governa – é bem fácil entender a ira, a fúria, que agora se vê entre os líbios, contra os EUA.

Por mais que a Líbia implicasse dificuldades para os EUA, jamais poderia ter sido destruída como foi, por EUA e OTAN. Gaddafi, por pior que talvez fosse, nunca poderia ter sido assassinado como foi, pelos ‘combatentes da liberdade’ que os EUA apoiavam. O insulto dos insultos foi a frase que Clinton usou quando chegou à Líbia: “Viemos, vimos e ele morreu”. Disse e riu!

Claro que muita gente não gostou. Claro que muitos líbios odeiam furiosamente a destruição que desabou sobre eles dos aviões da OTAN. Claro que há líbios que não apoiam nem aceitam o regime que substituiu o governo de Gaddafi e o caos que reina hoje em metade daquele grande país, transformado em zona de guerra que parece não ter fim.

Como é possível que não vissem que, para muitos, Gaddafi é o herói que deu à Líbia nível de vida superior a tudo que o norte da África algum dia conheceu?
Para muitos, a destruição da Líbia foi vista como show de arrogância e poder imposto lá pelas armas de europeus e norte-americanos. A OTAN foi instrumento de violenta ‘mudança de regime’. EUA e OTAN serviram-se do povo líbio, usaram a Líbia como exemplo para outros que tentassem desafiar as potências ocidentais.

Hoje, os EUA estão pesadamente comprometidos também com a destruição da Síria, outra nação que não se rende servilmente ao que ordenem as potências ocidentais.

Líbia e Síria eram governos seculares que trilhavam caminhos próprios e bem-sucedidos. Esse, sim, é o motivo pelo qual EUA e OTAN decidiram que não poderiam sobreviver. Que teriam de ser destruídos, até não restar pedra sobre pedra e Líbia e Síria estarem reduzidas a ruínas, como hoje estão.

O Dr. Paul Craig Roberts não se cansa de ensinar que, no Oriente Médio, os governos seculares conseguem que várias facções e diferentes religiões convivam em paz, lado a lado. Instalar ali governos de fundamentalistas sunitas sempre levará à destruição e fragmentará as populações e gerará lutas internas, em que diferentes facções combaterão umas contra as outras, o que gerará estados impotentes e sem lei. É o que EUA e OTAN desejam! Assim, desaparecem os obstáculos que os interesses ocidentais enfrentam naquela parte do mundo. E rachar em mil pedaços o governo líbio também foi visto como meio para impedir que os interesses chineses avançassem na região.

Depois do ataque ao consulado, Clinton falou como se não soubesse da destruição que EUA e OTAN levaram à Líbia. Quem, em pleno juízo, acreditaria que os líbios receberiam bem os norte-americanos? É inconcebível! Clinton parecia ‘ofendida’ por haver líbios dispostos a atacar instalações dos EUA, depois de os EUA terem ajudado a “libertar” Bengazi! Essa atitude ensandecida, só ontem, matou três cidadãos norte-americanos.

Se Hillary Clinton crê, de fato, que os líbios teriam alguma obrigação de receber os EUA de braços abertos, depois de os EUA os termos bombardeado até devolver um país próspero à idade da pedra lascada, Clinton errou. O que se viu na Líbia foi a volta do chicote no lombo do chicoteador.

É mais que hora de o Congresso dos EUA intervir e impor que as aventuras ensandecidas dos militares norte-americanos em outros países sejam votadas no Congresso, autorizadas ou impedidas por quem tem o dever de falar pelo povo norte-americano.
Isso se aplica à carnificina que os EUA estamos promovendo também na Síria.

É hora de os norte-americanos assumirmos o controle sobre nosso próprio governo e pormos fim ao envolvimento dos EUA nos conflitos internos de outros países. Se realmente sabemos respeitar o direito de autodeterminação das nações, temos de parar de interferir em outros países. Temos de parar de assumir posição, a favor de um lado ou de outro, em questões que não conhecemos.

Sempre que a OTAN ou os EUA (que, de fato, são a mesma coisa) tomam partido de um ou de outro lado em conflitos internos de outros países, não se trata de defender algum princípio de autodeterminação. Trata-se, isso sim, de os EUA determinarem quem vence e quem perde. Sempre que os EUA interferem nas lutas de outros povos, são as armas norte-americanas, não o povo das outras nações, quem decide.

No Oriente Médio, só isso explica porque tantos nos desprezam tanto. Não compete aos EUA determinar que caminho outros povos devam seguir. Quanto antes os EUA aprendermos essa lição, mais depressa conseguiremos ter relações normais com aqueles povos. Se Clinton vivesse no mundo real, teria protegido aquele consulado como a fortaleza que teria de ser, metida, como está em território inimigo. Clinton tem, mais uma vez, as mãos sujas de sangue.


Timothy V. Gatto
Tim Gatto é sargento aposentado do Exército e ex-presidente do Liberal Party of America, LPA [Partido ‘de esquerda’ da América].

terça-feira, 18 de setembro de 2012

ORAÇÃO PELOS LANCEIROS NEGROS



Cauê era um negro forte, robusto, afeito aos trabalhos mais duros da fazenda.

Desde que se conhecia por gente sonhava com a liberdade. Não lembrava de uma só noite que não tivesse sonhado ser um homem livre.

Foi com o coração pulando mais do que cavalo bravio que Cauê ouviu de seu patrão, a proposta para a luta. Segundo o caudilho, seu “proprietário”, estava engajado na luta dos sulistas contra o império e se vencedor, a república seria proclamada e a escravidão abolida. Queria lutar pela causa?

Cauê nem mesmo ouviu o fim da frase e já erguera a mão com toda altivez.

Nenhuma outra coisa o faria mais feliz do que a oportunidade de lutar sem amarras.

Tinha medo de morrer? Não. Tinha era medo de ser escravo pelo resto da vida.

Aceitava o desafio? Sem dúvida, agora mesmo.

Assim como Cauê, centenas de outros escravos, fortes e destemidos pegaram em armas para lutar na Revolução Farroupilha.

Exímio cavaleiro, Cauê lutou nos bravos “lanceiros negros” contingente cavalariano formado pelo Coronel Joaquim Pedro e comandado pelo Major Joaquim Teixeira Nunes e por Antonio de Sousa Neto.

Organizados em 8 companhias de 51 homens cada, totalizando 426 lanceiros, lutaram com a força do desespero pela sua vida e pela vida de seus irmãos.
Destaram-se de tal maneira em combate que, um dia, o revolucionário Giuseppe Garibaldi escreveria que nunca encontrou, em suas lutas intermináveis, homens tão valorosos e destemidos e que, com certeza, com uma tropa daquelas teria vencido todas as suas lutas em solo italiano.

A luta farroupilha foi dura e entusiasmada nos primeiros 5 anos, desgastante nos outros 3, enquanto seus dois últimos anos foram de negociações secretas entre os dois lados, farroupilhas e federais. Como terminar o conflito de forma digna e sem seqüelas, visto que, o Imperador precisaria desses militares para breve, para enfrentar as questões do Prata que levariam o Brasil a mais devastadora das guerras sul-americanas, a Guerra do Paraguai?

O maior entrave era, justamente, o que fazer com os negros a quem fora prometida a liberdade? Enquanto os gaúchos não aceitavam o simples retorno à condição de escravidão, os federais não podiam admitir uma abolição em separada do restante do país.

A solução parece ter sido favorecida na localidade de Porongos, hoje parte do município de Pinheiro Machado, em 14 de novembro de 1844. Naquela noite o General David Canabarro anuncia que por força de negociações correntes e para ganhar tempo com montarias mais leves, todos os lanceiros negros deveriam entregar suas armas ao comandante, devendo recebê-las de volta ao raiar do dia. Pela madrugada forças imperiais atacaram o acampamento e os lanceiros, desarmados, foram mortos em mais de uma centena.

Foi uma traição?

A solução final se daria com o acordo selado entre Canabarro e Caxias determinando que os lanceiros negros fossem retirados do Rio Grande, sendo incorporados ao exército imperial do Rio de Janeiro, mas não fugindo da condição de escravos.
Quanto aos demais escravos o retorno à rotina da escravidão.

Cauê foi um dos últimos a fechar os olhos para sempre, em Porongos.

Antes, porém, compreendeu como a traição pode ser pintada com as cores do heroísmo e como a história pode ser mentirosa.

No aniversário da Revolução Farroupilha não custa nada aos que cultivam essa data, um olhar para o céu e um pedido silencioso de desculpas a Cauê e às centenas de negros que lutaram pela República Rio-Grandense.

Nos campos do céu, os lanceiros negros ainda galopam rebeldes e libertos.
Um oração? Sim, pode ser proferia na imensidão das serras e dos planaltos e coxilhas do Rio Grande em nome de seus verdadeiros heróis e de todos aqueles que amam a liberdade.

Prof. Péricles

domingo, 16 de setembro de 2012

AFEGANISTÃO: O POÇO SEM FUNDO





Os EUA declararam o Afeganistão como o seu “mais importante aliado fora da OTAN”, estatuto idêntico ao de Israel. A ocupação imperialista do Afeganistão, plataforma estratégica para outras aventuras ainda mais perigosas, não é apenas um pântano para o qual não encontram saída. É um poço sem fundo de recursos todos os dias consumidos pela máquina de guerra.

«É maravilhoso ouvir os pássaros saudar com o seu canto este belo dia aqui em Cabul». Estas foram as palavras cheias de romantismo com que Hillary Clinton abriu a cerimónia oficial, no meio das árvores do blindado palácio presidencial na capital afegã. Enquanto falava, outros pássaros com listras e estrelas na cauda voavam no céu afegão: os caças F/A 18 que, depois de descolar do porta-aviões Stennis no Mar Arábico sobrevoavam o Afeganistão.

Uma vez escolhida a sua presa, atacam com misseis e bombas teleguiadas por laser e metralham com o seu canhão de 20mm, que dispara em cada rajada 200 projécteis de urânio empobrecido. Estes aviões, e outros cujo preço ultrapassa os 100 milhões de dólares, custam 20 mil dólares por cada hora de voo: cada missão dura à volta de oito horas, o que significa um custo de 150.000 dólares, a que há que acrescentar ainda o custo das armas utilizadas. O ano passado, de acordo com dados oficiais, os aviões EUA/NATO efectuaram 35 mil missões de ataque sobre o Afeganistão. Não é surpreendente que os Estados Unidos, só eles,
tenham gastado nesta guerra, até agora, 550 mil milhões de dólares. Um poço sem fundo que continuará a delapidar milhões e milhões de dólares e de euros.

Em Cabul, Clinton anunciou uma boa notícia: «Tenho o prazer de anunciar que o presidente Obama designou oficialmente o Afeganistão como o mais importante aliado dos Estados Unidos fora da OTAN». O que quer dizer que este país conseguiu o estatuto que têm Israel e que, na base do «Acordo de Cooperação Estratégica», os Estados Unidos se comprometem a garantir a sua «segurança».

O «mais importante aliado fora da OTAN» receberá desta organização uma ajuda militar de mais de 4 mil milhões de dólares anuais. A Itália, que se comprometeu a pagar 120
milhões anuais, continuará a proporcionar, segundo as palavras do ministro da Defesa Di Paola, «assistência e apoio às forças de segurança afegãs».

Além disso, o governo afegão receberá, como ficou decidido na conferência de «doadores» de Tóquio, 4 mil milhões anuais mais para «exigências civis». E também nesse campo, «a Itália cumprirá com a sua parte», declarou Terzi, o ministro das Relações Exteriores. Pela experiência real, cada dólar e cada euro gasto oficialmente em fins civis será utilizado para reforçar o domínio militar dos EUA/OTAN nesse país. País cuja posição geográfica é de primeira importância estratégica para as potências ocidentais e os seus grupos multinacionais, que avançam cada vez mais para Este, desafiando a Rússia e a China.

Para convencer os cidadãos estadunidenses e europeus, muito sensíveis pelos cortes nos gastos sociais, que convém tirar uns tantos milhões de dólares e de euros dos tesouros públicos para os destinar ao Afeganistão, dizem que servem para melhorar as condições de vida do povo afegão, particularmente das mulheres e crianças. Esta é a fábula que Hillary Clinton explicou, acompanhada pelo trinar dos pequenos passaritos de Cabul e pelo coro de todos os que se aproveitam desta magnanimidade.




Manlio Dinucci
Este texto foi publicado em www.lahaine.org
Tradução de José Paulo Gascão

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

ESPELHO, ESPELHO MEU


Dizem os entendidos da mente humana que, nós temos uma especial antipatia por pessoas que tenham os mesmos trejeitos e manias que nós próprios temos.

Aquele rapaz que bate insistentemente com o lápis na mesa é capaz de ficar furioso ao encontrar alguém que faça o mesmo. A moça que sopra os cabelos quando estes caem sobre seus olhos odeia aquela outra que faz a mesma coisa e assim por diante.

Ao que parece, não só os salamaleques incomodam, mas, também, os aspectos físicos. Talvez não haja alguém mais cruel com o menino gordinho do que o gordão da outra turma.

Talvez seja o fenômeno “espelho da rainha má” aquela da Branca de Neve que, apesar de ser linda não se via no reflexo, mas sim, a Branquinha, que era mais linda que ela.

O reflexo do “espelho da rainha má” nos agride quando nos mostra nossos piores ângulos, nossas piores imagens, aquelas, que gostaríamos de esquecer.

Essa aversão ao que é nosso poderia explicar algumas coisas difíceis de entender no Brasil .

Por que nosso povo odeia tanto os corruptos, mas sistematicamente, vota neles?

Por que Lula, um político de muita liderança e de belos resultados, citado como grande estadista no resto do mundo é odiado com a força do fanatismo por outros milhares de pessoas de pouca educação formal e que baseiam nisso sua maior crítica?

Será que continuamos amando o senhor da Casa Grande e odiamos o escravo que se destaca?

Por que a reforma agrária, tão necessária ao desenvolvimento do país, é combatida e execrada, justamente por quem nunca teve um só centímetro quadrado de terras?

Por que os eleitores dos partidos tradicionais se dizem tão chocados pelo PT fazer justamente o que seus tradicionais partidos sempre fizeram: alianças espúrias, pacto para manter o poder e, ao que parece, planos corruptos de caixa 2 para comprar aliados?

Por que mulheres, tradicionalmente tão sacrificadas pela tradição machista e pela falta de liberdade, num estado conservador, como Minas Gerais, foram, justamente elas, que organizaram com mais alegria a “Marcha com Deus, pela Família e a Liberdade” praticamente implorando que os militares desse um golpe contra... a liberdade?

E por que será que nosso povo corrupto, que fura fila, compra artigos piratas, engana e se julga malandro, odeia tanto a corrupção que é, afinal das contas, a “malandragem” nas mais altas cúpulas?

Talvez porque possamos enganar as pessoas com nossas firulas e nossas interpretações pela vida a fora, mas não possamos enganar a nós mesmo que conhecemos bem o que guardamos no porão de nossas almas.

Talvez a construção de uma sociedade mais justa, mais ética, mais solidária, passe pelo quebrar esse espelho da alma, para enfrentar de cara limpa os nossos fantasmas.

Enquanto isso não acontece, tenhamos a coragem de perguntar antes de criticar, ou de se indignar: “Espelho, espelho meu... existe alguém mais corrupto que eu?”


Prof. Péricles