sábado, 10 de dezembro de 2011

MÚSICA BRASILEIRA E A DITADURA MILITAR - Final

Belchior, que durante muito tempo foi considerado autor marginal, teve a música “Os Doze Pares de França” (Belchior – Toquinho) censurada, porque para os censores, os autores vangloriavam a França, fazendo dele um país melhor para se viver do que o Brasil.

Também a canção “Pequeno Mapa do Tempo” (Belchior), de 1977, uma crítica implícita ao regime, por causa dos versos “eu tenho medo e medo está por fora” e “eu tenho medo em que chegue a hora, em que eu precise entrar no avião“, uma alusão ao exílio, os censores concluíram que a música trazia mensagem de protesto político.

Ao contrário do que se pensa, o cantor e compositor Luiz Ayrão foi um dos artistas brasileiros que mais contestou a ditadura militar. A sua música “Quem Eu Devo é Que Deve Morrer”, tem como tema uma dívida pessoal que só será paga se Deus quiser. Também a dívida externa brasileira encontrava-se nessas condições. A canção é vetada, sendo a proibição justificada pela censura porque a letra era um incentivo ao homicídio, com uma mensagem de caráter negativo.

Sueli Costa deu a canção “Cordilheira” (Sueli Costa – Paulo César Pinheiro) para Erasmo Carlos gravar. Feito o registro, a canção jamais saiu, sendo proibida. Os autores chegaram a ir a Brasília em busca de uma explicação para o veto. Encontram o silêncio dos censores, sem nenhuma justificativa. Mas os versos falavam por si: “Eu quero ver a procissão dos suicidas, caminhando para a morte pelo bem de nossas vidas”. “Cordilheira” é uma das mais belas canções de teor contestatório já feita no Brasil. Quando liberada, seria gravada por Simone, em 1979, no álbum “Pedaços”. O registro de Erasmo Carlos só saiu em uma caixa de cds comemorativos à carreira do cantor.

O Brega ou Popularesco, nada escapa à Censura.

A censura da ditadura militar não obedecia a nenhum critério. Qualquer ameaça não só ao regime por ela imposto ao país, como à sociedade conservadora que a ajudou a ascender ao poder e nele continuar por mais de duas décadas. Vestido de uma moral hipócrita, o regime militar barrava qualquer obra que suspeitasse ofender à moral, ou que se mostrasse obscena a essa moral.

Em um mesmo contesto, tanto Chico Buarque, quanto Odair José, um cantor e compositor de sucessos popularescos, sem vínculos com qualquer militância política, ou mesmo o genial e popular Genival Lacerda, sofriam os reveses da censura. “Tanto Mar” (Chico Buarque), “Pare de Tomar a Pílula” (Odair José) e “Severina Xique Xique”, apesar de canções antagônicas, de vertentes diversas dentro da música brasileira, oscilando entre a canção política e a considerada “brega”, eram consideradas pela censura um perigo latente ao regime e à moral que se construía naquela época.

Em 1975, Genival Lacerda tinha transformado a sua música “Severina Xique Xique” (Genival Lacerda – João Gonçalves) em um grande sucesso de público no nordeste brasileiro, quando foi vítima do preconceito das famílias do Ceará, que acusavam a palavra “boutique” de ter duplo sentido, ofendendo os bons costumes do lugar. Diante do protesto, o departamento regional da polícia federal do Ceará encaminhou a letra à Divisão de Censura de Brasília. Surpreendentemente, o técnico de censura de Brasília, mantém a liberação da música e afirma que a canção “é um veículo de integração da nacionalidade“. Este fato prova que a censura não vinha só do regime militar, mas da sociedade que apoiava este regime, e que muitas vezes, era mais repressiva e conservadora do que ele.

Dentro do popularesco da canção brasileira, Odair José foi um dos compositores que mais sofreu com a censura. “O Motel” (Odair José), teve só pelo seu título, o veto da censura. O autor mudou o título da canção para “Noite de Desejos”, conseguindo liberá-la e gravá-la. A mais polêmica música de Odair José foi “Pare de Tomar a Pílula”, onde ele pedia para a namorada deixar de usar anticoncepcionais para que pudesse engravidá-la. Vista à ótica do tempo, a canção chega a ser ingênua, de uma simplicidade quase grotesca, absolutamente inofensiva para um público atual, mas aviltante para as velhas senhoras que em 1964, saíram às ruas de rosários nas mãos, saudando, em nome da família brasileira, os golpistas militares.

Dentro da corrente popularesca, a censura não poupou nem mesmo a dupla Dom e Ravel, que em 1970, tornara-se a menina dos olhos da repressão, com uma música que exaltava a nação, tornando-se o hino da ditadura: “Eu Te Amo, Meu Brasil”. O motivo que levou o regime a interrogar Dom e Ravel, foi quando eles apresentaram, em 1972, a canção “A Árvore”, os censores desconfiaram do trecho “venha, vamos penetrar”. Além de imaginar que o tema que falava de árvores, seria supostamente sobre a canabilis (planta da maconha). A música foi proibida, apesar de ter uma gravação da banda Os Incríveis, nunca foi lançada.

A esta altura, a incoerência da censura já dava passagem para uma certa esquizofrenia social e política, sem ideologia ou razão.

Dentro de um processo repressivo, todos os argumentos tornam-se incoerentes, a razão é substituída pela força bruta. A censura não constrói uma lógica, muitas vezes ela percorre movida pelas decisões pessoais dos censores.

Para manter as necessidades de uma ditadura, a censura fazia parte da arma de propaganda do estado repressivo, podava a liberdade de expressão, principalmente as que feriam os princípios que justificam um governo ilegítimo, emanado da força, da opressão e da traição aos princípios da democracia.


eltheatro11@eltheatro.com
Editor: Elpídio Navarro

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

PINTORES DA NOITE

Ela olhou pra mim como quem está prestes a fazer uma grande revelação e disse “sabe, eu nunca te contei, mas, detesto cachorros”.

Comecei a rir baixinho distraído. Mas o riso foi crescendo e ela, escorando a cabeça no meu ombro foi me acompanhando, e quando vimos as gargalhadas já não podiam ser contidas.

Ergui os olhos pras estrelas e perguntei pra uma delas: mas do que mesmo estou rindo?

Do fato de estar pendurado no alto de um poste numa dessas madrugadas de Porto Alegre?

Ou da escada velha que rangia e que ainda por cima, teve que ser inclinada entre o muro da calçada e o poste por dentro do terreno?

Talvez fosse dos dois cachorros furiosos que babavam de ódio por não poder nos alcançar e que ansiavam por nossa queda?

Ou do jeito de madame daquela guria com tinta nos ombros e na testa me sussurrando ter medo de cachorros?

Até hoje não sei.

Eram tantas coisas que precisavam de respostas e tantas respostas que não valiam à pena naqueles tempos.

Só sei que nossas gargalhadas calaram os cachorros como se nem eles entendessem, afinal, qual era a graça da situação grotesca.

Quando paramos de sacolejar de tanto rir, a escada diminuiu seu rangido, e continuamos a gloriosa tarefa de prender no poste, com arame pouco resistente, mais uma placa pintada à mão com a sigla de nosso partido.

Não só uma sigla, não senhor! Muito mais que isso. Um sentimento de resistência materializado na forma de três letras recém pintadas no quintal da casa de algum companheiro de sonhos.

Descemos altivos diante da indignação dos cachorros e recolhemos o material restante, pois era preciso ter pressa, pois outros postes nos esperavam, outros cachorros talvez, e com certeza, o sol, não demoraria.

A polícia odeia a hora entre o fim da madrugada e o início da manhã, e chamávamos esse momento de, a hora boa.

Os cachorros odeiam escadas e ela odiava cachorros. E eu achava graça. Uma graça que carecia de argumentos mas que transbordava de dor e de energia.

Que nos importam os vadios da madrugada que vagueiam embriagados?

Não estavam, com certeza, mais embriagados do que nós, em nossos desatinos.

Lá, em cima do poste, vendo a cidade “do alto” a gente desafiava a repressão, os medos, os ventos do inverno, os cachorros e o destino.

As vezes, virávamos artistas e pintávamos muros.

Muros estreitos e largos. Inteiros e lascados. Muros simpáticos e carrancudos. De casas, de cemitérios, de colégios. Muros de ruela e de avenidas.

Tinta vermelha de cheiro forte, artesanal, feita por nós mesmos, em balde que abraçávamos para que não derramasse enquanto a velha kombi sacudia sobre as ruas de uma Porto Alegre adormecida. "Cuidado gente, a tinta é cara"...

Pintávamos palavras de ordem. Pintávamos ultimatos. Pintávamos desafios de forma altiva, e imaginávamos Picasso pintando Guernica.

Ela, como ninguém desenhava nossos símbolos.

Ao contrário de Picasso, não podíamos assinar nossas obras. Mas no outro dia... ah no outro dia ninguém podia impedir o orgulho que sentíamos ao ver expostas nos muro da cidade em cores fortes com a tinta que ainda nos fedia, o nosso trabalho noturno. Depressa, dizia em silêncio ao mundo, leiam antes que eles apaguem.

Talvez seja assim mesmo.

Quando nos tiram os livros inventamos arte.

Quando nos tiram as montanhas, escalamos escadas que rangem.

Quando nos tiram oportunidades descobrimos talentos, e somos Picassos que pintam Guernicas com tinta barata em muros estreitos.

Quando nos tiram a graça rimos de nós, rimos a sós, e rimos das dores.

Mas nunca... nunca jamais, deixamos de rir, pois, muitas vezes, em nosso riso, mais do que em mil manifestos, está a força de nossa resistência.

Prof. Péricles

MÚSICA BRASILEIRA E A DITADURA MILITAR - 04

Outro exemplo eloqüente da ignorância e do despreparo dos censores foi com o compositor e cantor Adoniran Barbosa. Conhecido como o mais paulista dos compositores, Adoniran Barbosa usava em suas canções o jeito coloquial de falar dos paulistanos.

Não querendo problemas com a censura, em 1973 o artista decidiu lançar um álbum com várias canções já gravadas na década de cinqüenta.

Inesperadamente, cinco das suas canções foram vetadas, mesmo não sendo inéditas.

Diante da linguagem coloquial de “Samba do Arnesto” (Adoniran Barbosa – Alocin), que trazia nos seus versos:

“O Arnesto nos convidou prum samba, Ele mora no Brás
Nóis fumo, Num encontremo ninguém.
Fiquemo cuma baita duma réiva,
Da outra veiz nóis num vai mais (Nóis num semo tatu)”,

O censor só liberaria a música se ele regravasse cantando assim:
“Ficamos com um baita de uma raiva,
Em outra vez nós não vamos mais (Nós não somos tatus)”.

Adoniran Barbosa não mudou a sua obra, deixou para gravar as músicas mais tarde, quando a burrice já tivesse passado.

Também a belíssima canção “Valsa do Bordel” (Vinícius de Moraes – Toquinho), sobre a vida de uma velha prostituta, esteve proibida por dez anos. Vinícius cantava esta música em shows, ironicamente chamando-a de “A Valsa da Pura”, por causa da censura.

Paulinho da Viola, em 1971, teve no seu álbum “Paulinho da Viola”, duas canções proibidas: “Chico Brito” (Wilson Batista – Afonso Teixeira), música composta em 1949, e “Um Barato, Meu Sapato” (Paulinho da Viola – Milton Nascimento), ambas vetadas sob a alegação de que evidenciavam o clima marginal do samba.

Sérgio Bittencourt, jornalista e compositor, filho de Jacob do Bandolim, em 1970, teve a sua música “Acorda, Alice”, proibida pela censura da ditadura militar por causa do verso “Acorda, Alice/ Que o país das maravilhas acabou”. Esta canção seria gravada por Waleska já na época da abertura política.

Rita Lee teve as músicas “Moleque Sacana” (Rita Lee e Mu) e “Gente Fina” (Rita Lee) censuradas, a primeira por causa da palavra sacana, considerada obscena, a segunda porque poderia ferir os bons costumes da época.

Carlos Lyra sentiu o gosto da censura com a sua música “Herói do Medo”, proibida por causa dos versos “odeio a mãe por ter parido” e “o passatempo estéril dos covardes“.
Carlos Lyra não alterou o conteúdo da letra, preferiu sair do país.



eltheatro11@eltheatro.com
Editor: Elpídio Navarro

sábado, 3 de dezembro de 2011

ANARQUISTAS E SOCIALISTAS

Os anarquistas buscam eliminar as distâncias entre os seres humanos criando um companheirismo maior que o individualismo. O gigantismo do Estado afasta as criaturas. Dessa forma, ao contrário do que muitos afirmam, os anarquistas não querem o fim da sociedade, mas, ao contrário, querem estreitar os laços sociais.
A idéia principal é, basicamente, reverter a ordem do poder que se apresenta acachapante do Estado sobre o indivíduo, para o indivíduo acima do Estado.

Diferentemente dos Marxistas, os Anarquistas jamais pregaram qualquer tipo de governo sobre o cidadão, como a ditadura do proletariado.

Enquanto Marx é citado como o antecessor do comunismo, Proudhon e Bakunin se tornariam os fundadores do anarquismo.

Sobre Karl Marx, sociólogo, historiador e pensador do chamado socialismo científico, nos diz Bakunin:

“Marx e eu éramos amigos naquela época. Nos víamos com freqüência, pois o respeitava por sua sabedoria e devoção séria e apaixonada, ainda que com uma certa vaidade pessoal, à causa do proletariado, e o procurava por sua conversa sempre inteligente e instrutiva. Mas não havia intimidade entre nós. Nossos temperamentos não se adaptavam. Ele me chamava de idealista sentimental, e estava certo. Eu o chamava de vaidoso, traiçoeiro e ardiloso, e eu também estava certo!”

Enquanto o pensamento marxista via nas revoluções contemporâneas (Inglesas e francesa) apenas conquistas burguesas sem avançar em direção a uma sociedade justa, devendo essa ser conquistada por uma revolução do proletariado, Bakunin ou Proudhon consideraram a possibilidade de que tal revolução do proletariado apenas trocasse uma elite por outra. Para eles uma revolução que não se desfaz da autoridade criará sempre um poder mais penetrante e mais duradouro do que aquele a que substitui.

Marx reconhecia o que significava o poder, mas acreditava que era possível criar uma nova forma de poder, o poder do proletariado, através do partido, que ao fim se dissolveria e produziria uma sociedade anarquista ideal, a que ele acreditava ser o objetivo final do esforço humano, enquanto que a dupla de anarquistas profetizava que a organização política marxista se tornaria uma rígida oligarquia de funcionários e tecnocratas.

Proudhon foi preso em 1849 por suas críticas a Luís Napoleão (sobrinho de Napoleão e que se tornaria imperador com o título de Napoleão III). Passou o resto de sua vida na prisão ou no exílio. Morreu em 1865 sustentando que os partidos políticos eram operados por membros de uma elite social e que os trabalhadores só controlariam seus próprios destinos quando criassem e controlassem suas próprias organizações para mudar a sociedade. Seus seguidores formaram um movimento denominado mutualista que queriam atingir seus resultados pacificamente, através da cooperação entre produtores.


O conflito entre Marx e Bakunin não apenas refletiu diferenças de temperamento entre os protagonistas, mas também diferenças fundamentais de idéias, ou seja, de finalidades entre socialistas autoritários e anarquistas libertários.

O debate transformou-se em conflito, e em 1872 os marxistas expulsaram Bakunin.

As idéias marxistas, adaptadas por Lênin, chegaram ao poder com a revolução bolchevique na Rússia, em 1917.

O movimento anarquista sobreviveu como uma ideologia e não como organização.

(adaptado do texto de George Woodcock)

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A SÍNDROME DAS OVELHINHAS

Então a aldeia de ovelhinhas entrou em pânico. Definitivamente essa situação era intolerável. De três em três dias, uma ovelhinha era morta por um tigre que atacava à noite, protegido pelas sombras e pelo silêncio.
Houve uma reunião no centro da aldeia à qual todas as ovelhinhas foram convocadas.

Uma sarada dirigiu os trabalhos, ou tentava, pois os apupos e as discussões pareciam intermináveis (vocês sabem como as ovelhinhas são nervosas, não sabem?).

Foi então, que em meio aos acalorados debates, uma ovelhinha jovem, de lãs alvas e sedosas pediu a palavra e se pronunciou...

“...béééé...minhas irmãs. Esse tigre assassino não pode continuar impune. Devemos nos livrar dele imediatamente. Fiquei sabendo que na colina, próxima da aldeia, mora um jovem leão, forte e poderoso. O que acham, minhas irmãs, de contratá-lo para dar cabo desse tigre?”

Foi uma explosão de aplausos. Muito bem! Muito bem! É isso mesmo, vamos contratar o leão e acabar com esse tigre sanguinário! Viva!

No meio da multidão, porém, uma ovelha, velhinha, ergueu sua patinha.

“Meninas, meninas!” Disse com a paciência de quem conhece a impulsividade da juventude: “Esse tigre está velho e decadente. Tanto que já não caça atacando ovelhinhas indefesas como nós. Basta nos organizarmos. Nada de pedir uma ajuda dos céus. Vamos fazer turnos de guarda e sem conseguir encontrar uma só ovelhinha distraída durante a noite, acabará morrendo de fome ou irá embora. Estaremos livres e salvas por nós mesmas”.

“Buuuuu...foi a reação da maioria. Cala a boca velha caduca, replicaram as massas jovens da aldeia das ovelhas.”

E, dessa forma, calou-se a ovelha que os anos fizeram sábia, e a jovem e enérgica idéia foi adotada.

O leão alegremente aceitou o convite. Veio para a aldeia, e à noite, numa emboscada, matou sem maiores problemas o velho e fraco tigre.

Na manhã seguinte as ovelhas entraram em euforia. Cataram, dançaram funk, soltaram fogos. Nomearam o leão "o cara" e por um dia inteiro comemoraram a morte do tigre.

Encerradas as festividades foram pagar a quantia combinada ao leão.

Esse sorriu num rugido assustador e diante das ovelhinhas de olhos arregalados exclamou: “Suas tolas. Gostei do lugar e na verdade estou me mudando para essa aldeia. Quanto a sua dívida... não se preocupem, cobrarei em prestações, tipo, uma ovelha por dia.”

Em sua cabana a velha e sábia ovelha sofria enroscada em suas lanzinhas, pois só ela havia percebido que, para se livrar de um problema menor, suas imprudentes companheiras haviam buscado a solução criando um problema muito, muito maior.

Na história dos povos muitas vezes se repete a síndrome das ovelhinhas.

Em 1898, para se livrar do velho e decadente império espanhol, sua última colônia das Américas, Cuba, pediu auxílio para os Estados Unidos, que como pagamento exigiu a edição da Emenda Platt na primeira Constituição do país, e dessa maneira pode estender suas garras e defender seus interesses no coração da jovem nação.

Já, o Brasil, para obter o reconhecimento de sua independência política em relação ao extinto Império português, assumiu compromissos e dívidas com o jovem império britânico.

Talvez fosse interessante ao povo da Líbia ouvir a ovelha velha antes de aceitar a “ajuda” da OTAN para derrubar seu ditador.

Quem sabe já seja tempo de abandonar soluções em pacotes formatados por mãos estrangeiras e entender que a solução dos problemas está inserida na cultura de cada povo. No talento e na criatividade de seus jovens e na justiça social.

Esse entendimento é que faz, realmente, o investimento na educação para a liberdade, uma questão de soberania nacional.

Prof. Péricles

domingo, 27 de novembro de 2011

A TORRE DAS DONZELAS

Durante quase três anos, Dilma Rousseff, morou na Torre das Donzelas.

A construção colonial não pertencia a nenhum palácio. Encravada no presídio Tiradentes, em São Paulo, ganhou o singelo nome por abrigar presas políticas do regime militar.

"Terrorista! Linda! O que você está fazendo aqui?", gritavam as presas comuns ao verem passar uma nova presa política pelo estreito corredor. Depois do corredor, havia um pequeno pátio. Em seguida, vinha a Torre.

Dilma atravessou o corredor em fevereiro de 1970, aos 23 anos, após mais de 20 dias nos porões da repressão política.

"Ela chegou fragilizada pela tortura, mas logo se recuperou", lembra a jornalista Rose Nogueira, 64 anos, que passara pelo mesmo processo três meses antes.

Não demorou para que as donzelas da Torre se agrupassem, primeiro com base nas organizações clandestinas às quais pertenciam no "mundão". Porque a Torre, no vocabulário das presas, era o "mundinho".

Mas as afinidades pessoais também contavam muito, como relata a médica e pesquisadora Guiomar Silva Lopes, 66 anos. "No mundão, o vínculo era de vida e morte", diz Guiomar. "Na cadeia, estabelecemos uma relação de confiança inabalável."

Dilma é até hoje lembrada pelo espírito solidário. Durante um período, cuidou de uma estudante de arquitetura. "Quando a menina chegou da tortura, estava muito desestruturada emocionalmente", afirma a advogada Rita Sipahi, 72 anos. "A Dilma ficou de olho nela o tempo todo para evitar que cometesse algum desatino."

Com a possibilidade de circular entre as celas, as presas políticas tentavam curar as feridas umas das outras e também se organizavam. Havia escala para as tarefas da limpeza e da cozinha. Com os víveres levados pelas famílias, elas preparavam as próprias refeições. Algumas conseguiam bons resultados, embora só contassem com dois fogareiros elétricos. Outras, nem tanto.

A dupla mais desastrada na cozinha era formada por Dilma e Cida. "Não dominávamos a arte do tempero", reconhece Cida. Numa ocasião, as duas resolveram caprichar no preparo de um prato de legumes. Acabaram servindo uma sopa de quiabo intragável. "Ficamos um pouco frustradas com o resultado, pois havíamos nos esforçado."

As mães das "donzelas da Torre" chegavam para as visitas nas tardes de sábado. Era o contato delas com o "mundão"

Aos 82 anos, a advogada Therezinha Zerbini, mulher do general Euryale de Jesus Zerbini, cassado em 1964, também recorda de Dilma com admiração. Presa na Torre durante o ano de 1970, Therezinha se destacava tanto pela origem quanto por ser uma senhora entre a população carcerária extremamente jovem. "As amigas dela me chamavam de 'burguesona' e ela me defendeu. Ela tinha uma liderança nata", diz Therezinha.

O Tiradentes "era o paraíso". Isso porque, ao entrar no presídio, a pessoa estava com a prisão reconhecida pelo Estado. Às vezes, era levada para interrogatórios em outras instituições, mas praticamente não corria risco de morrer ou "desaparecer".

Na escala macabra estabelecida nos porões do regime, a Operação Bandeirante (Oban) era o inferno, ficando o purgatório por conta da Delegacia Estadual de Ordem Política e Social (Deops). Como várias companheiras de cadeia, Dilma passou pelo inferno e pelo purgatório antes de chegar à Torre.

Por conta das sevícias, sofreu uma disfunção hormonal que levou anos para ser curada. Não perdeu, porém, o gosto pela vida. Com Cida, passava horas lendo os livros de ficção científica. Quando o rodízio do único aparelho de tevê da Torre caía em sua cela, entrava na madrugada vendo os filmes da sessão "Varig, a dona da noite". Aprendeu até a bordar. "Ela fez uma tapeçaria com flores coloridas, que colocamos na parede", lembra Rose.

No período em que o advogado Carlos Franklin Paixão de Araújo, seu companheiro, permaneceu encarcerado no Tiradentes, Dilma se comunicava com ele com a ajuda dos presos comuns. A rota usada por ela e outras presas políticas consistia em baixar mensagens por meio de uma corda artesanal, chamada "teresa", para a carceragem dos "comuns", que ficava embaixo da Torre. "De cela em cela, as mensagens chegavam ao destinatário, na ala dos presos políticos", comenta Guiomar. "O recurso também era fundamental para sabermos o que estava acontecendo lá fora."

Conhecidas desde os tempos em que estudavam em Belo Horizonte, Dilma e Eleonora comemoravam com as meninas da Torre o Natal, o Réveillon e o Carnaval. As fantasias eram improvisadas, é claro, mas havia até desfile no "celão".

No caso de Dilma, as estratégias para manter o moral elevado atrás das grades também passava pelo humor. "Ela pôs apelido em todas nós", conta Rita. "Uma era a Ervilha, outra a Moló, porque tinha jogado um coquetel-molotov em uma ação." Essa faceta pouco conhecida de Dilma é ressaltada por outras entrevistadas. "Ela tem um humor impagável", garante Eleonora.

Quando a hoje presidenta deixou a Torre, as companheiras de cadeia repetiram o ritual criado para o momento da libertação: cantaram "Suíte do Pescador", de Dorival Caymmi, que começa com o verso "Minha jangada vai sair pro mar".

Quase 40 anos depois, tudo o que sobrou do presídio foi o portal de pedra, tombado como patrimônio histórico. No final de 1972, a construção de 1852 começou a ser demolida, para a construção do metrô paulistano.



De: http://www.istoe.com.br/reportagens
Luiza Villaméa e Claudio Dantas Sequeira