domingo, 28 de fevereiro de 2016

SONHOS E SAUDADES


Numa noite intranquila em que o sono chegou apenas em hora distante da madrugada, o sonho se fez e nele, ela apareceu.

O mesmo sorriso acolhedor e olhos irrequietos e grandes como querendo enxergar além do que é visível.

Bela, no seu jeito singelo de uma beleza sem escândalos.

- Oi guria... você está linda, como sempre.

- É a vantagem de estar morta amor. A gente fica viva na memória de quem fica assim como era, sem envelhecer.

A mesma inteligência irônica e provocativa.

- Já você me parece muito abatido...

- É a desvantagem de estar vivo, respondi, a gente envelhece.

Rimos, nós dois.

Depois o silêncio e com ele o meu medo dela desaparecer dos meus sonhos, pois sabia que estava sonhando.

- Por onde tu andas menina?

- Por aí, disse ela ficando séria. Entre uma estrela e outra, pulando entre as cores que não existem nas aquarelas, pensando nas coisas feitas e principalmente nas que foram deixadas de fazer... e você?

- Por aí, entre dias marcados na folhinha, clics de teclados e trabalhos que não bastam.

Acho que ela não gostou de minha resposta.

- Morfeu, sei muito bem que tu faz o que é possível e ninguém poderá te pedir mais do que isso... o possível.

- Mas talvez seja pouco. Não é raro se estabelecer o desânimo. Acho que me falta talento.

Sabe guria doida, tu não deverias ter morrido por eles. Hoje te chamam de terrorista e glorificam gente que esteve no lado do terror e...

-Mas eu não morri por eles, Morfeu. Eu lutei por mim. E não me importa o que digam, importa as razões que estão no meu coração.

Novo silêncio.

Um silêncio que se faz no sonho é mais completo e distante.

- Valeu a pena, perguntei, quase envergonhado.

- Da luta, não. Da forma, talvez. Mas, nem sempre somos nós que escrevemos o nosso próprio destino.

Sorrindo para disfarçar a minha dor, perguntei:

- Tu dá aula de história para os anjos?

Ela também sorriu. “Tu continuas o mesmo, brincando sempre que está nervoso”.

Ela se moveu e percebi que se distanciava, tentei de alguma forma segui-la, mas não consegui.

Ainda ouvi um “estou indo” antes de abrir a boca para dizer qualquer coisa, mas quando dei por mim olhava a parede vazia, levemente iluminada pela luz da luz.

Virei para o lado e arrumei o travesseiro.

Essa é uma vantagem de estar vivo... entre sonhos e saudades podemos sonhar de novo.



Prof. Péricles


sábado, 27 de fevereiro de 2016

O SHORTINHO DAS EVAS DO ANCHIETA

A sociedade judaico-cristã forjada no ocidente a partir, especialmente, dos séculos III e IV alterou profundamente a visão que se tinha sobre o sexo no período anterior, da cultura helênica.

Foi construída em cima do medo, da ideia de que somos fracos diante das tentações e que quando cedemos à essas tentações cometemos pecados.

Todo pecado possuí seus agentes causadores (seus demônios) e suas vítimas.

Como a sociedade judaico-cristã é fruto do patriarcalismo latino somado ao patriarcalismo judeu, determinou-se que, o agente causador do sexo pecador é a mulher e a vítima, o homem.

Nessa visão tudo começa na fraqueza, na natureza perversa (Eva que iludiu Adão) e na provocação feminina.

As mulheres, diabólicas, provocam o olhar dos homens que, coitadinhos, não conseguindo se controlar, cometem os maiores desatinos.

O estupro, o abandono da família e da esposa, as paixões arrasadoras teriam origem, na provocação da mulher e na inocência masculina.

Oras, essa argumentação consciente, ou inconsciente, reforça a dominação do homem numa sociedade sempre ameaçada pela sedução diabólica das filhas de Eva.

Na sua gênese, portanto, está o machismo e a necessidade de submeter para não competir e que justifica toda violência contra a mulher.

Na Antiguidade (nem tão antiga assim) a prostituta era bem remunerada e elogiada no privado, mas condenada à morte, geralmente sob apedrejamento, no público.

A sociedade machista é montada sob a hipocrisia. Você pode transar com todas desde que não seja descoberto, ou reconhecido.

As mesmas mãos que acariciavam no isolamento jogavam as pedras quando em grupo.

Ainda ontem substituímos as pedras pela fogueira e mais recentemente a fogueira pelas balas dos revólveres e mais recentemente ainda, as balas pela condenação moral.

"Coma todas meu filho, mas jamais seja descoberto e se o for negue pois o que é a palavra de uma mulher diante da palavra de um homem?"

Apesar de toda evolução da cidadania burguesa ainda definimos os homens como vítimas e as mulheres como as culpadas.

Algo tão absurdo como culpar a presa e não o caçador pelo crime ambiental da caçada. Quem manda ela ter a carne tão gostosa quando acompanhada de batatas e ainda por cima caminhar livre nas matas expondo suas costeletas...

Por isso, a polêmica do shortinho no Colégio Anchieta, aqui de Porto Alegre, nada tem a ver com o shortinho propriamente dito, mas com o objeto e o olhar.

Onde está o descontrole, no shortinho ou no olhar dos meninos?

Onde está a origem dos abusos, no objeto ou no olhar?

É uma questão que transcende o shortinho pois poderíamos transportar essas dúvidas para inúmeros outros fatos geradores dos mesmos questionamentos.

Mulheres pioneiras no uso de minissaias em Porto Alegre foram encurraladas na rua da Praia e foi necessário a intervenção da polícia que... prendeu as moças.

Leila Diniz respondeu a processo por ousar mostrar a barrigona de oito meses de gravidez desnuda na praia.

Pobres homens ameaçados por essas diabólicas mulheres.

O instinto sexual dos coitadinhos é incontrolável elas sim, as mulheres, são abusadoras.

Eles são inocentes pois foram provocados e são impotentes diante do próprio instinto.

Esse posicionamento está tão consolidado no inconsciente coletivo ocidental que até mulheres e gente bem nutrida de ensino formal repete a argumentação hipócrita.

Geralmente as mesmas que demonizam os muçulmanos e suas burcas e abusos contra suas mulheres.

Pobre de nós que crescemos tão pouco mas nos achamos tanto.

Que o Colégio Anchieta não perca essa grande oportunidade de, reconhecendo a verdadeira extensão do que está em jogo, demonstre sua seriedade como instituição e compromisso com a cidadania.

Um brinde às meninas do Anchieta e sua luta pelo exercício pleno da cidadania.

Elas são maravilhosas e representam milhões de outras mulheres na luta contra outros “shortinhos proibidos” como as que são agredidas pelos maridos no silêncio dos lares ou as que exercendo as mesmas funções ainda recebem salários menores que os homens.



Prof. Péricles













quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

OS IMORTAIS DO FACEBOOK



Por Sheila Sacks,

Qualquer que seja a forma de imortalidade que o futuro nos reserve – holograma ou avatar, cura ou clonagem, já existe uma da qual dispomos hoje mesmo: a permanência nas redes sociais, uma forma de vida virtual póstuma que a bem da verdade deixa o defunto tão gelado quanto já estava, mas de certa forma deposita uma cópia dele na nuvem, para consolo dos seus seres queridos, ou pelo menos dos amigos de Facebook.

Por mentira que pareça, o Facebook não tem nem dez anos, mas 30 milhões de usuários seus já morreram, seguindo esse fatídico costume de todas as coisas biológicas neste vale de lágrimas.

Esse é, portanto, o número de almas que andam penando pelo lado escuro da rede social de Mark Zuckerberg.

Não é raro, por exemplo, que lhe chegue um pedido de amizade de um morto, o que pode levá-lo a certa, digamos, inquietação filosófica.

O Facebook, aliás, oferece a possibilidade de criar uma conta em homenagem a usuários que já nos deixaram, e há sites como o espanhol Duelia.org que se dedicam exclusivamente a esse tipo de coisa.

Outras empresas, como o Grupo Mémora permitem compilar o legado digital do finado, o que pode acabar sendo pavoroso, ao menos em certos casos. Felizmente, há outras firmas, como a Postumer.com, que se empenham em fazer justamente o contrário: eliminar as contas do morto e apagar sua passagem por este mundo, para começar do zero em outro.

Apesar de tudo isso, os enterros, cremações e funerais continuam sendo tão reais como antes da invenção do transístor, embora nem por isso permaneçam imunes aos avanços tecnológicos.

Um terço dos participantes de enterros, por exemplo, tira selfies no cemitério, e muitos deles postam a foto no Instagram sem nem esperar o caixão baixar, segundo um estudo com 2.700 pessoas encomendado pela funerária britânica Perfect Choice Funerals.

Não se sabe ao certo por que a empresa quis fazer a pesquisa; talvez cogite alugar paus de selfie na hora em que o cortejo fúnebre aparece. Nessas horas difíceis, afinal, sempre há quem esqueça o seu em casa.

Que diferença faz um selfie ao lado disso tudo?

Ou, ampliando o foco da pergunta: o que há de realmente novo no luto do mundo contemporâneo? Será que a ciência e a tecnologia nos oferecem alguma forma nova, ainda que metafórica, de imortalidade? E, se não, oferecerão algum dia?

Com relação à primeira pergunta, sobre a situação atual, o Facebook, os blogs e demais sites dedicadas ao luto e à memória estão estendendo à população geral o que até agora era privilégio de grandes escritores, memorialistas e outras celebridades: a imortalidade conferida pela obra.

O problema é que, a despeito do que digam padres, metafísicos e livros de autoajuda, a morte não é um assunto religioso, metafísico ou psicanalítico, e sim algo tão concreto quanto a própria vida, que é feita de coisas que se deterioram, se degeneram e se desintegram.

Existem poucos princípios tão gerais como esse. Todos entendemos perfeitamente a morte, desde que seja a morte dos outros. Nossa incapacidade de aceitar a nossa, e de viver tranquilamente até que ela chegue, não é senão uma consequência de como é difícil entender a ideia de não ser.

A clonagem nos tornará imortais? Não, pelo amor de Deus. Um clone não é senão um irmão gêmeo, só que vive mais tarde. E, vendo um casal de gêmeos, ninguém acha que se um deles morrer irá sobreviver no outro. São duas pessoas, extremamente parecidas, mas duas.

Então, não será possível descarregar a estrutura cerebral de alguém, incluídas todas as suas experiências e lembranças, em algum tipo de suporte físico ou informático? Pois com certeza sim, porém o resultado não será você, e sim outra coisa que se parecerá em tudo com você, mas será outra coisa. Melhor esquecermos a ideia de sermos imortais.

Se cada um de nós deixar uma página no Facebook, não haverá ninguém para lê-las, e continuaremos sozinhos e ignorados durante uma eternidade de silício, um infinito interminável, uma nada como qualquer outro, um tédio.




Sheila Sacks, jornalista formada pela PUC-RJ sempre trabalhou em assessoria de imprensa.Tem artigos publicados nos sites Observatório da Imprensa e Rio Total.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A ILUSÃO DE FAZER PARTE


Quando os Estados Nacionais começaram a surgir, a partir do século XII, a idéia era: a existência de um território demarcado, um povo com alguma identidade cultural nesse território e um governo centralizado, que governasse para todos.

Essa era a proposta contra o decadente mundo feudal, das guerras intermináveis, das pestes sem controle e da fome.

Mas, para que isso funcionasse foi preciso criar uma ilusão.

A ilusão era que todos fariam parte do mesmo jeito, do Estado Nacional.

Ou melhor, todos seriam iguais aos olhos do Rei.

E funcionou.

O Estado Nacional era um estado aristocrático (dos nobres) montado em cima do absolutismo real (o rei era um nobre) e na parceria desse rei com a nobreza.

Povo e burguesia (não confundam os dois) ficaram num patamar abaixo.

A burguesia não se iludiu, porém, aceitou o jogo que naquele momento histórico lhe favorecia, pois era preferível o despotismo do o rei único do que o poder esfarelado e compartilhado por vários nobres.

Já o povo, esse sim, foi iludido.

Homens das letras como Jean Bodin e Jacques Boissue foram fundamentais para a criação dessa ilusão divulgando idéias de “direito divino” do rei.

Como questionar a autoridade do Rei sem questionar a vontade de Deus?

Dessa forma, o pobre era submetido às piores privações e obrigações (como pagar impostos enquanto os ricos não pagavam) porque acreditavam fazer parte dos interesses do rei.

Eram infelizes tanto quanto seus avós no feudalismo, mas faziam parte.

Pobres até ganharam um nome bonitinho... súditos. Todos, independente da classe social, eram súditos do Rei.

Mas, as relações burguesia e rei se deterioraram com o tempo e chegou o momento, nos séculos XVII e XVIII, que a burguesia resolveu assumir o poder, nascendo, o estado burguês.

As Revoluções Inglesas e a Revolução Francesa fazem parte desse momento.

Movimentos encantadores de luta pela liberdade e igualdade, na verdade, ápice da ilusão de fazer parte.

Forjou-se a idéia de que o povo (e não a burguesia) assumia o poder cortando a cabeça do rei tirano.

Iluministas como Rosseau e Voltaire deram vida a conceitos como “igualdade” no caldeirão que deu origem ao sistema mais discriminador de todos os tempos, o capitalismo.

Todos os homens são iguais perante a Lei, ilusão.

Os governos devem governar visando o bem comum.

Ilusão.

Igualdade, liberdade, fraternidade.

Ilusões.

A democracia burguesa é um castelo de cartas marcadas.

Nenhum sistema excluiu mais do que o capitalismo.

A liberdade foi apenas do investimento já que o Rei absolutista perdeu o poder de decidir sobre economia.

Já a igualdade foi só da concorrência liberal.

O mundo é dos espertos dizia minha filósofa vó.

Quem pode mais chora menos, diz a cultura popular.

A corrupção dos outros não é a minha, diz a consciência amestrada que reflete o fazer parte sem fazer parte.

Talvez esse faz de conta seja o início da explicação necessária para se entender porque mais de 800 mil pessoas cometem suicídio todos os anos, ou porque 20% da população sofre de depressão crônica, ou porque milhões se drogam e morrem numa outra forma de suicídio.

Diante de uma realidade que enquanto submete milhões à condições miseráveis mantém os privilégios de poucos, que discrimina e exclui com enorme facilidade, resta a pergunta difícil, mas inevitável:

Afinal, fazemos parte do que?





Prof. Péricles

sábado, 20 de fevereiro de 2016

A NECESSIDADE DE FAZER PARTE


O ser humano é um ser gregário, um animal social.

Seu instinto de sobrevivência o obrigou desde o início das eras a conviver em bandos como forma de superar o medo e suas próprias limitações.

Animal acanhado, lento tanto na terra como na água, desajeitado para subir nas árvores, mais fraco até do que um chipanzé, pouco enxerga e ouve mal.

Parecia uma sacanagem da natureza e candidato natural ao extermínio.

Mas, a capacidade de raciocinar, mesmo primitiva e insipiente, somada ao instinto de sobrevivência o fez grupal, e dessa união surgiu a força para prosseguir, não virar jantar e, ao contrário, tornar-se o maior predador da face da Terra.

Porém, viver em grupo tem seu preço.

Ao viver em grupo ele ganha muito, mas também perde.

Talvez, sua maior perda seja a sua liberdade natural, radical e plena, assumindo a liberdade relativa que o viver em grupo lhe permite.

Ingenuamente alguns dizem que são livres. Não o são. São relativamente livres em função direta com as leis que regulam sua vida.

Outro preço caro a ser pago é a rebeldia, o sentimento de inutilidade ou de insuficiência, já que, em essência, a inteligência o torna questionador.

Nenhuma formiga obreira jamais parou pra pensar se é justo o trabalho que faz para o bem do formigueiro.

Nenhum zangão, até hoje, botou as mãozinhas na cintura e perguntou se ele é apenas um objeto sexual.

Os animais irracionais gregários, como abelhas, formigas, cupins, pinguins, elefantes, etc. não raciocinam, não possuem consciência, muito menos simpatias ou antipatias. Vivem e apenas vivem, multiplicam-se e morrem.

Outro problema a destacar é que o homem não gosta nem confia nos outros homens.

O homem se suporta, mas não se gosta.

Uma prova? O casamento e o surgimento da família.

A família se origina na união de apenas duas pessoas e é a tentativa humana de criar um grupo privado e suportável dentro do grupão social e insuportável.

Também foi aqui que surgiu o machismo, pois é onde o homem pode exerce seu poder, aquele mesmo que lhe é negado no grupão e impor a autoridade que lá fora não tem.

Mas, voltando ao grande grupo, essa característica gregária da espécie cria a sensação de que o que importa é “fazer parte”.

As maiores dores humanas nascem do sentimento de não “fazer parte”.

A solidão é o sentimento de não fazer parte de nada.

A paixão é a tentativa de fazer parte das necessidades do outro.

As drogas nascem também disso tudo.

O dependente químico geralmente se vê como um estranho no ninho.

Quanto mais o grupo o rejeita, critica e abomina mais ele deixa de fazer parte.

Para o dependente químico o grande grupo vai progressivamente perdendo seu encanto e ele sente-se no céu da liberdade, enquanto na fase inicial do consumo da droga, e no inferno da solidão e da morte, na fase final da dependência.

É por isso que o tratamento para a maior parte de nossas doenças sociais como drogas, preconceito e ódio é a política de inclusão e não a exclusão ou repressão.

O que o homem mais teme não é a morte, é a rejeição.

Ser rejeitado é o oposto do “fazer parte”.





Prof. Péricles

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A INCÔMODA PRESENÇA DOS INDÍGENAS NO BRASIL


Por José Ribamar Bessa Freire

O assassinato do bebê Kaingang é um entre os muitos cometidos contra os indígenas

Embora estarrecidos, temos de admitir que pertencemos à mesma família humana do jovem que degolou o bebé Kaingang de dois anos na rodoviária de Imbituba (SC).

Compartilhamos, envergonhados, a mesma identidade nacional do suspeito do crime, Matheus Silveira, o Teto, 23 anos, que está preso.

Já para a Polícia, esse é apenas o caso de um “usuário de drogas, que sofre de distúrbios mentais“. Será?

O delegado ouviu familiares e ex-colegas do Colégio Caic. Não concluiu o inquérito, mas já adiantou não ter visto conotação racista no crime, embora admita que o assassino estava “incomodado com a presença dos indígenas no local“.

Parece legítimo ir além do fato policial ou do diagnóstico médico e indagar a origem de tal incômodo. Para isso, convém identificar o lugar do índio na sociedade nacional, na visão do brasileiro médio, o que é definido na fala e no silêncio, nas ações e omissões de entidades como escola, mídia, museu, família, igreja, partidos políticos, associações de classe, tribunais, polícia, monumentos e até nas comemorações que definem o que deve ser lembrado ou esquecido.

A presença incômoda do índio não é só na rodoviária, mas no âmbito nacional.

Isso foi explicitado, em 1900, pelo presidente da Comissão do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, o engenheiro Paulo de Frontin. No discurso oficial de abertura, ele falou como representante da nação:

“O Brasil não é o índio; os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas majestosas florestas e em nada diferem dos seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.

Não houve qualquer contestação à proposta anunciada diante do cardeal que celebrou missa campal na Praia do Russell. Afinal, sem índios, suas terras ficam disponíveis no mercado.

O Estado neobrasileiro assumia desta forma, a política colonial que originou no continente americano a “maior catástrofe demográfica da história da humanidade”, segundo os demógrafos da Escola de Berkeley, que calculam em 10 milhões a população indígena, em 1500, no território que é hoje o Brasil.

No primeiro século de colonização houve 90% de despovoamento, segundo W. Borah, com refinados métodos de análise.

Uma carta, de 5 de janeiro de 1654, do vigário do Pará, cônego Manoel Teixeira, de 70 anos, escrita no leito de morte, calcula que “mais de dois milhões de índios de mais de quatrocentas aldeias” foram extintos “a trabalho e a ferro”. Seu autor confessa “grandes injustiças e crueldades contra os índios“, povoações incendiadas, “tirando-os de suas terras com enganos”.

Como qualquer documento histórico, este deve ser submetido à crítica, mas não pode ser ignorado, como querem os que o acusam de “vitimismo” ou de “fantasioso”.

Pesquisa do Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) avaliou o papel da escola, da mídia e de outras instituições na imagem que os brasileiros têm dos índios.

Foram mais de 200 entrevistas com pessoas que nunca visitaram uma aldeia, mas têm opinião firme sobre o lugar dos índios no Brasil. Para um deles, com curso universitário concluído, os índios são “preguiçosos”, “bêbados”, “entrave para o progresso”, “um câncer que deve ser extirpado do Brasil”.

O curioso é que essa imagem não coincide com a da própria mãe do entrevistado, dona de casa com apenas o ensino fundamental.

Algumas respostas nos permitiram verificar que o preconceito se manifesta, talvez com mais força, naquelas pessoas com escolaridade avançada, que tem mais acesso à mídia. Se isso se confirma, quanto mais escola e mais mídia, maior é o preconceito.

Esse é um dado a ser pensado no momento em que se discute a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e se pretende abrir uma brecha para a história indígena, tradicionalmente ausente da escola.

Uma oposição histérica berra na mídia: – E a Mesopotâmia? E o Egito? – como se fossem temas incompatíveis.

O silêncio cúmplice da escola e de parte da mídia evidencia que o discurso de Paulo de Frontin continua sustentando ideologicamente a virulência.

No confronto entre os que não podem esquecer e os que não querem lembrar, é preciso construir “outro tipo de memória”, como quer Boaventura Santos.



José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio).