Por Mauro Santayana
No final da década de 1980, embarcando em um vôo da Lufthansa - não havia lugar nos aviões da Varig naquele dia - do Rio de Janeiro para a Alemanha, tive o dissabor de ser revistado, no tubo que levava à aeronave (tecnicamente já território alemão, assim como o próprio avião) por policiais germânicos, que examinavam criteriosa e ostensivamente os passageiros brasileiros ou latino-americanos, e deixavam passar os outros, principalmente quando se tratava de europeus ou de pessoas de sua própria nacionalidade.
Indignado com a cara de pau dos sujeitos, e, principalmente com a do governo da Alemanha Ocidental, desembarquei em Frankfurt e telefonei imediatamente para o então Ministro da Justiça, Fernando Lyra, a quem conhecia, e com quem convivia, desde a luta pela redemocratização, a quem sugeri que fizéssemos o mesmo, colocando uma equipe de agentes da Polícia Federal revistando os passageiros que embarcassem no Rio e em São Paulo em aviões da Varig com destino à Alemanha, e que o fizessem apenas com os alemães, deixando passar, incólumes, os brasileiros e os de outras nacionalidades.
Em menos de uma semana, quando voltei ao Brasil, os corpulentos gringos haviam desaparecido, com certeza chamados de volta a seu país, o que nos deu direito de fazer o mesmo, dispensando a equipe da Polícia Federal de continuar revistando os passageiros alemães dos aviões da Varig.
A sutileza, na diplomacia, às vezes dispensa a papelada e os comunicados oficiais. Tivemos a oportunidade de lembrar a eles, nesse episódio, dois velhos ditados que os alemães atribuem à sua própria lavra: "das billige ist immer das teuerste", a de que o barato acaba saindo sempre mais caro, e "taten sagen mehr als worte", o de que as ações valem mais que as palavras.
Esta longa introdução vem ao caso, a propósito da absurda, para não dizer, imbecil, retomada da decisão de se isentar, unilateralmente, de vistos, países ditos "desenvolvidos", na sequência da também estúpida isenção “temporária” - que já sabíamos que não seria temporária - desses vistos por ocasião da Olimpíada de 2016, pelo governo Dilma - contra a qual nos posicionamos à época - sem a exigência de reciprocidade.
Em reunião no Palácio do Planalto, com a presença de quatro ministérios, o governo atual já teria aprovado a prorrogação da medida, com a isenção de vistos para australianos, japoneses, canadenses e, claro, norte-americanos; e, burramente - em uma decisão que não esconde o patético viés ideológico - resolvido deixar de fora a China por causa do "risco migratório", embora nossas fronteiras sejam uma peneira por onde entra e sai, a seu bel prazer, gente do mundo inteiro, especialmente chineses que podem ser vistos em qualquer esquina, dos caixas dos restaurantes de quilo aos shoppings populares de artigos contrabandeados.
Assim, continuaremos com os imigrantes, que na maioria são gente honrada e trabalhadora, mas que não gastam à tripa forra, e deixaremos de receber os riquíssimos turistas chineses, que, além de deter quase a metade das reservas internacionais do mundo, gastaram, no exterior, no ano passado, mais que os turistas norte-americanos, japoneses, australianos e canadenses, somados.
Vê-se bem que os ministros que aprovaram a medida nunca tiveram as filhas adolescentes - nesse caso, brancas e de classe média, o que não pode atribuir ao racismo esse problema - barradas em aeroportos norte-americanos e enviadas para abrigos, como ocorreu recentemente com Anna Stéfane Radeck, de 16 anos, ou com Liliana Matte, de 17, que ficaram dias presas no aeroporto de Miami, embora estivessem ambas com autorização de viagem dos pais e todos os documentos necessários.
Ou, quem sabe, nunca ouviram falar do adolescente Roger Thomé Trindade, de 15 anos, morto por espancamento, em um parque de Miami, também há poucos dias, por um grupo de adolescentes norte-americanos, aparentemente pelo simples fato de ser brasileiro.
Ou do jovem Roberto Curti, assassinado pela polícia australiana, com sucessivos tiros de taser, em 2012.
Ou da senhora Dionísia Rosa da Silva, de 77 anos, barrada no aeroporto de Barajas, na Espanha, e mantida detida em suas instalações durante dias, porque não tinha uma "carta de apresentação" embora estivesse em companhia da neta, residente naquele país, que foi um dos quase 3.000 compatriotas impedidos de entrar na Espanha, também em 2012, número que quase foi alcançado no ano passado.
Ou do compositor e músico Guinga, um dos maiores violonistas brasileiros, que perdeu dois dentes em Madrid, também no aeroporto de Barajas, ao ser agredido por um policial da imigração espanhola.
Qual seria a opinião desses cidadãos, ou dessas famílias, caso fossem consultadas, sobre a concessão unilateral de vistos, pelo Brasil, sem nenhuma espécie de reciprocidade, para estrangeiros?
O Ministro do Turismo pode alegar que a Espanha não será beneficiada pela medida, já que não se exige visto de espanhóis, por reciprocidade, assim como de outros países da União Europeia.
Mas com que moral poderemos responder à altura, exigindo de turistas espanhóis, também com base no princípio da reciprocidade, os mesmos documentos e as mesmas regras que a Espanha e outros países exigem dos nossos cidadãos, como a comprovação de dinheiro, carta de apresentação e reserva antecipada de hotéis, se, no caso dos Estados Unidos e de países satélites anglo-saxões, como a Austrália, será permitida a entrada em nossas fronteiras sem que nos permitam fazer o mesmo nas suas como se eles estivessem entrando e saindo de sua própria casa, sem nos dar nenhum respeito ou satisfação?
O que vamos fazer quando um piloto de avião comercial dos EUA, como ocorreu com um comandante da American Airlines em 2004, levantar o dedo em riste, ao segurar seu número de identificação, para agentes da Polícia Federal, na hora de tirar uma foto obrigatória, em reciprocidade a exigências semelhantes a cidadãos brasileiros em aeroportos dos EUA?
Abaixar as calças e mostrar o traseiro, para "insultar", segundo os curiosos hábitos norteamericanos, quem estiver nos ofendendo?
Mesmo que fôssemos o país mais miserável do mundo, e estivéssemos devendo bilhões aos Estados Unidos - quando o que ocorre é exatamente o contrário - se trataria de inaceitável abdicação da soberania nacional, em troca de algumas centenas de milhares de dólares a mais no faturamento do mercado turístico, em um mundo em que países como a China, a Rússia, e a Índia, nossos sócios no BRICS, defendem com unha e dentes, de forma altaneira e independente, as suas posições, no campo econômico e no geopolítico, sendo impensável que adotassem semelhante medida no trato com o Japão ou com os Estados Unidos.
O sr. Michel Temer precisa tomar cuidado para não passar à história como uma espécie de Carlos Menem, outro presidente latino-americano descendente de árabes, que perdeu todo o senso de ridículo no afã de se submeter, pública e despudoradamente, aos Estados Unidos.
No seu governo, ficou famosa a frase de seu Ministro das Relações Exteriores, Guido di Tella, que - para histórica vergonha da terra de Rosas, de Guevara e de Perón - disse que a Argentina estava a ponto de estabelecer "relações carnais" com os Estados Unidos, sem que ninguém precisasse recorrer ao Kama-Sutra para adivinhar em que posição estava aceitando, entusiasticamente, se colocar, naquela ocasião, o país andino.
Até mesmo nos governos militares, radicalmente anti-comunistas, o Brasil sempre procurou preservar um mínimo de dignidade e de autonomia no seu relacionamento com nosso vizinho do norte do hemisfério, estabelecendo a política do "pragmatismo responsável" e desafiando com firmeza, sempre que necessário, a vontade de Washington.
Não foi outro o caso, por exemplo, do reconhecimento do governo marxista de Angola, do MPLA; da aproximação com os países árabes, principalmente o Iraque de Saddam Hussein; e da assinatura do tratado nuclear com a Alemanha.
Decidida pelo governo, a medida depende, agora, da aprovação de mudanças no Estatuto do Estrangeiro, que terão que ser feitas pelo Congresso, que deverá, se houver dignidade e hombridade suficientes, votar pela sua rejeição, com a ajuda de órgãos conhecidos pelo seu patriotismo, como a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.
Um pouco menos de pressa na abjeta reverência aos gringos e um mínimo de dignidade e de vergonha na cara, são como uma boa canja de galinha ou uma suculenta sopa de rabo de canguru, que pode ser encontrada em certos restaurantes de Melbourne, nunca fizeram mal a ninguém, principalmente quando se trata, aos olhos do mundo, de nossas relações com outras nações.