segunda-feira, 21 de novembro de 2016

TRUMP PODE APERTAR O BOTÃO DO APOCALIPSE

Por Cristina Pereda, para o El País da Espanha


Cerca de 42% dos estadunidenses afirma que sentiram “medo” após a vitória de Donald Trump nas eleições, com relação ao que poderia acontecer durante o seu mandato, segundo pesquisa do instituto Gallup.


Efetivamente, a partir do dia 21 de janeiro, Trump terá acesso a uma enorme lista de poderes presidenciais, que incluem os códigos nucleares e até a possibilidade de derrubar as grandes reformas de seu antecessor, Barack Obama – e o empresário assegurou que eliminará umas 20 medidas adotadas pelo atual mandatário.

O sistema constitucional estadunidense está baseado na separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário. A presidência de Trump supõe então um desafio sem precedentes a esse equilíbrio, por estar acompanhada das maiorias republicanas na Câmara de Representantes e no Senado, um caminho livre para nomear juízes conservadores no Tribunal Supremo e expandir os poderes presidenciais herdados desde as medidas adotadas neste sentido pela administração de George W. Bush depois dos atentados de 11 de setembro de 2001.

A seguir, repassamos o que poderá e o que não poderá fazer o presidente eleito Trump quando após a sua chegada à Casa Branca:


Pode apertar o “botão da bomba atômica”?


O “botão da bomba atômica” é, na verdade, um cartão com os códigos para ativar o lançamento das armas. O presidente dos Estados Unidos está sempre acompanhado de algum alto comandante das Forças Armadas, que leva uma maleta com toda a informação necessária para tomar uma decisão. Esse militar viaja com o mandatário no Air Force One, no veículo presidencial e se hospeda no mesmo hotel ou residência quando não está na Casa Branca, e também é protegido pelo Serviço Secreto. A maleta inclui um manual com todas as opções de ataque, um mecanismo para verificar a identidade do mesmo, caso ele decida ativar o lançamento, e os bunkers onde se pode protegê-lo.

Os Estados Unidos possuem cerca de 900 ogivas nucleares, que são entre 10 e 20 vezes mais poderosas que as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, e que estão prontas para serem ativadas. Segundo Bruce G. Blair, especialista em segurança nacional da Universidade de Princeton, “basta uma ligação telefônica para que o comandante-chefe tenha um poder ilimitado para ativar as armas nucleares a qualquer momento”. Blair assegura que o presidente não precisa de conselhos ou da aprovação do Senado, nem será questionado pelo Tribunal Supremo por qualquer decisão. O processo, entretanto, passa por uma série de mecanismos, nos quais estão envolvidos os líderes do Pentágono, encarregados de alertar o presidente sobre qualquer ameaça e preparar depois a resposta que ele – no caso Trump – considere adequada.

Pode construir um muro na fronteira?


Trump contemporizou a respeito da promessa de construir um muro na fronteira com o México. Desde a vitória nas eleições, ele passou a admitir que, em algumas zonas, será “somente uma cerca”. Para isso, necessita que o Congresso aprove o orçamento multimilionário necessário para se completar a construção. O presidente também necessitaria do apoio legislativo para alterar a política de segurança na fronteira, por exemplo, incrementando o número de agentes destinados às zonas, porque careceria de um aumento das verbas destinadas a este objetivo.

Pode deportar três milhões de imigrantes indocumentados?


A política de deportações depende do Departamento de Segurança Nacional e o presidente tem a prerrogativa de decidir como esta se aplica. Assim como Obama ordenou que se desse prioridade à deportação de indocumentados com antecedentes penais – como agora promete Trump –, o presidente eleito pode estrear no cargo pedindo que se aplique a ordem de deportação de qualquer indocumentado. O republicano também poderia anular o decreto pelo qual Obama concedeu uma licença temporária de residência e emprego a jovens sem documentos que estudaram nos Estados Unidos. Somente necessitaria aprovar uma ordem executiva que rescinda a normativa atual.


Pode desfazer a reforma da saúde de Obama?


O fato de que a lei conhecida como Obamacare (o sistema de saúde público de Obama) tenha sido aprovada pelas duas casas legislativas deveria significar que, para derrubá-la completamente, os republicanos necessitam de uma supermaioria no Senado, ao menos 60 votos – e alcançaram 51 após as últimas eleições. Isso dificulta a tarefa de eliminá-la, mas os republicanos podem sim fazer desaparecer alguns aspectos específicos do plano, como as ajudas para pessoas que vivem abaixo do limite da pobreza, ou os subsídios que ajudaram milhões de estadunidenses de classe média a adquirir apólices do novo seguro de saúde.


Pode reinstituir o uso de métodos de tortura em interrogatórios?


Trump prometeu durante a campanha que “aprovaria uma lei para permitir novamente o uso de técnicas de afogamento simulado” e até mesmo “coisas muito piores”. A administração de Obama assinou um tratado que proíbe a tortura e outros castigos degradantes, considerados ilegais pela legislação estadunidense e internacional. Em 2009, o atual presidente assinou uma ordem executiva que abolia o uso de métodos considerados abusivos e que foram usados durante o governo de George W. Bush. Trump pode impulsar um decreto similar assim que assumir o poder, determinando exatamente o contrário.


Pode ampliar Guantánamo?


Obama ordenou fechar a prisão localizada na base militar estadunidense em Cuba, que ainda mantém 60 pessoas presas em seu interior. Trump não só indicou que pretende reverter essa decisão como prometeu “enchê-la de caras maus”. Neste caso, conta com o apoio das mesmas maiorias no Congresso que se opuseram à iniciativa do mandatário democrata.

Pode lançar ataques com drones sem autorização do Congresso?


Trump terá em suas mãos o programa de luta antiterrorista que, por iniciativa do presidente Obama, aumentou a quantidade de ataques com drones em territórios estrangeiros, incluindo os que têm como objetivo a cidadãos estadunidenses. O republicano poderá utilizar as mesmas prerrogativas legais para decidir em favor dos ataques sem precisar da aprovação do Congresso (alegando que atua em favor da segurança nacional do país), e até ir além, já que pode se apoiar em mecanismos internos do Executivo, não em normativas impulsadas pelo Poder Legislativo.



Tradução: Victor Farinelli



sábado, 19 de novembro de 2016

NÃO PASSARÃO


Uma das mais extraordinárias batalhas da Primeira Guerra Mundial foi a “Batalha de Verdun” quando a França resistiu à invasão alemã (que acabaria acontecendo na Segunda Guerra Mundial) entre os meses de fevereiro a dezembro de 1916. Nessa batalha decisiva para o destino da França na Guerra e da própria guerra, morreram quase 1 milhão de pessoas (976 mil baixas).

Sabendo que o futuro de seu país se decidia ali, e, num momento em que tudo parecia perdido, o general francês Robert Nivelle pronunciou a frase “on ne passe pas” traduzida como “não passarão”.

Essa expressão de resistência se tornaria lema da esquerda na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) quando fascistas do General Franco e forças democráticas se engalfinharam numa guerra desigual, visto que os fascistas de Franco foram alimentados, armados e fortalecidos pelos nazistas e sua força aérea. Num momento em que Madri estava sendo cercada pelas tropas do terror fascista, Dolores Ibárruri Gomez, líder do Partido Comunista Espanhol a adotou na versão “no pasarán”.

“No Pasarán” também foi adotado como lema pelos revolucionários Sandinistas em sua guerra contra a ditadura de Anastásio Somoza na Nicarágua, quando o ditador protegido pelos aliados norte-americanos acabou vencido pelas forças populares.

Dessa forma “Não Passarão” adquiriu cores de heroísmo e de resistência democrática contra as forças fascistas e imperialistas no mundo.

Atualmente, no Brasil, um golpe orquestrado pela direita fascista brasileira imediatamente após sua derrota nas urnas, ameaça ser plenamente vencedor.

A presidenta eleita democraticamente por mais de 54 milhões de votos foi derrubada através de um impeachment ilegítimo, visto não conter fato de ilícito praticado pela autoridade.

Um vice-presidente sem apoio popular governa o país e, numa pressa que delata os verdadeiros interesses em derrubar a presidenta, anuncia medidas de âmbito neoliberal assim como políticas que afastam o país das decisões do BRIC e do MERCOSUL para recoloca-lo, servil, na órbita dos interesses do império norte-americano.

Os investimentos estatais ameaçam serem comprometidos por vinte anos, assim como é grande a ameaça aos direitos históricos dos trabalhadores brasileiros.

O próprio patrimônio público está em xeque diante da fome privatista e entreguista voltada até contra a Petrobras e o pré-sal.

E, se tudo isso não bastasse, grupos fascistas sentem-se tão à vontade que ousam invadir o Congresso Nacional exigindo a volta da Ditadura Militar.

Diante de tudo isso sente-se, cada vez mais, falta do “não passarão”.

Onde está o grito de resistência das organizações sociais?

Em que canto dorme distraída a força dos sindicatos dos trabalhadores brasileiros?

Por que estão inertes as forças mais populares beneficiadas diretamente pelas políticas de urgência contra a fome extrema e a desigualdade?

Está faltando a garra tradicional das militâncias populares e, especialmente, está faltando o grito de guerra e resistência “não passarão” no combate às arbitrariedades cometidas e aos, até aqui, impunes ataques à ordem constitucional tão arduamente conquistada depois da Ditadura Militar.

Está faltando povo nas ruas do Brasil.

Assim como as forças democráticas da espanha anunciavam que Madri seria a tumba do fascismo, devemos anunciar que as ruas brasileiras serão o túmulo das idéias racistas, fascistas e homofóbicas em nosso país.

Diante do avanço da direita, das forças neopetencostais militantes e fanatizadas, dos heróis da intolerância e do flagrante abuso de autoridade, falta o “Não Passarão”! 



Prof. Péricles





sexta-feira, 18 de novembro de 2016

TECNOLOGIA


Por Luis Fernando Veríssimo



Para começar, ele nos olha nos olha na cara. Não é como a máquina de escrever, que a gente olha de cima, com superioridade.

Com ele é olho no olho ou tela no olho.

Ele nos desafia. Parece estar dizendo: vamos lá, seu desprezível pré-eletrônico, mostre o que você sabe fazer.

A máquina de escrever faz tudo que você manda, mesmo que seja a tapa.

Com o computador é diferente. Você faz tudo que ele manda. Ou precisa fazer tudo ao modo dele, senão ele não aceita. Simplesmente ignora você. Mas se apenas ignorasse ainda seria suportável.

Ele responde. Repreende. Corrige. 

Uma tela vazia, muda, nenhuma reação aos nossos comandos digitais, tudo bem. Quer dizer, você se sente como aquele cara que cantou a secretária eletrônica. É um vexame privado. Mas quando você o manda fazer alguma coisa, mas manda errado, ele diz “Errado”. Não diz “Burro”, mas está implícito. É pior, muito pior.

Às vezes, quando a gente erra, ele faz “bip”. Assim, para todo mundo ouvir.

Comecei a usar o computador na redação do jornal e volta e meia errava. E lá vinha ele: “Bip!” “Olha aqui, pessoal: ele errou.” “O burro errou!”

Outra coisa: ele é mais inteligente que você. Sabe muito mais coisa e não tem nenhum pudor em dizer que sabe.

Esse negócio de que qualquer máquina só é tão inteligente quanto quem a usa não vale com ele. Está subentendido, nas suas relações com o computador, que você jamais aproveitará metade das coisas que ele tem para oferecer. Que ele só desenvolverá todo o seu potencial quando outro igual a ele o estiver programando.

A máquina de escrever podia ter recursos que você nunca usaria, mas não tinha a mesma empáfia, o mesmo ar de quem só agüentava os humanos por falta de coisa melhor, no momento.

E a máquina, mesmo nos seus instantes de maior impaciência conosco, jamais faria “bip” em público.

Dito isto, é preciso dizer também que quem provou pela primeira vez suas letrinhas dificilmente voltará à máquina de escrever sem a sensação de que está desembarcando de uma Mercedes e voltando à carroça.

Está certo, jamais teremos com ele a mesma confortável cumplicidade que tínhamos com a velha máquina. É outro tipo de relacionamento, mais formal e exigente. Mas é fascinante.

Agora compreendo o entusiasmo de gente como Millôr Fernandes e Fernando Sabino, que dividem a sua vida profissional em antes dele e depois dele.

Sinto falta do papel e da fiel Bic, sempre pronta a inserir entre uma linha e outra a palavra que faltou na hora, e que nele foi substituída por um botão, que, além de mais rápido, jamais nos sujará os dedos, mas acho que estou sucumbindo.

Sei que nunca seremos íntimos, mesmo porque ele não ia querer se rebaixar a ser meu amigo, mas retiro tudo o que pensei sobre ele.

Claro que você pode concluir que eu só estou querendo agradá-lo, precavidamente, mas juro que é sincero.

Quando saí da redação do jornal depois de usar o computador pela primeira vez, cheguei em casa e bati na minha máquina. Sabendo que ela agüentaria sem reclamar, como sempre, a pobrezinha.





Luis Fernando Verissimo, jornalista e escritor gaúcho.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

GIRO À DIREITA NO BRASIL


Por Tereza Cruvinel


O prefeito eleito do Rio, Marcelo Crivella, resumiu sua vitória como um sonoro “não” da cidade tida como mais progressista do Brasil às bandeiras do aborto, da legalização das drogas e do ensino sobre diversidade sexual nas escolas. Ele de fato as combateu, mas não foram estas as bandeiras centrais de seu adversário Marcelo Freixo, do PSOL, no segundo turno.

O que sua vitória simboliza é a conclusão da guinada do Brasil à direita, num giro sem precedentes depois da redemocratização, e que no primeiro turno teve na vitória de João Dória em São Paulo seu sinal mais eloquente.

Não só dos caminhos que a esquerda seguir para se recuperar do tombo dependerá a duração deste ciclo, em que o Brasil será um país bem diferente.

A vitória de Crivella é ainda mais expressiva do giro conservador porque não expressa apenas a força de uma direita ideológica, amiga do mercado e hostil ao Estado, chegada a privatizações e à ortodoxia fiscal. Crivella é a expressão da força crescente das religiões evangélicas para além dos templos. É expressão do conservantismo moral que demoniza a diversidade do comportamento humano em diferentes aspectos, estigmatizando como pecadores e aliados do capeta os que não comungam de seus mandamentos.

“Chora capeta”, foi como o pastor Silas Malafaia festejou a vitória de Crivella. Capeta são todos os outros, todos os derrotados, e especialmente, nas palavras dele, os “esquerdopatas”.

A Igreja Universal controla a segunda maior rede de televisão e as outras ramificações dominam quase todos os canais abertos a partir de certa hora da noite. É só zapear e lá estão os pastores das seitas que alugam horários nas outras emissoras para suas pregações.

Fortalecida pela vitória de Crivella, a direita moralista retomará os projetos que vinha tocando no Congresso, que incluem o fim da autorização do aborto em casos excepcionais, a rejeição de medidas contra a homofobia e de propostas de políticas alternativas sobre drogas. E ainda o avanço do projeto “escola sem partido”, que já teve uma primeira acolhida na reforma do segundo grau do governo Temer, ao tornar opcionais matérias que levam à formação crítica dos alunos, como filosofia e sociologia.

Mas a direita, assim como a esquerda, tem matizes diversos e todas eles colorem o novo mapa ideológico do Brasil.

No segundo turno, para ficar só em capitais importantes, ela venceu em Porto Alegre com Marchezan Júnior, filho de um líder do PDS na ditadura militar; com um “out sider” adepto da antipolítica em Belo Horizonte, Alexandre Kalil, do PHS; com a eleição em Curitiba de Rafael Greca, aquele que declarou tem tido vômitos após carregar um pobre em seu carro. No primeiro turno, além da vitória de Doria na capital paulista, o mais votado foi ACM Neto em Salvador.

Onde foi que isso começou? Foi com a destruição moral do PT pela Lava Jato ou pela crise econômica que, originária do final do boom das commodities, foi inteiramente debitada a erros de gestão do governo Dilma? Ou foram as duas coisas?

Se apenas o PT tivesse sido surrado nas urnas como foi, o eleitorado estaria apenas usando o voto como castigo contra quem considera culpado. Mas toda a esquerda saiu derrotada, inclusive sua maior promessa neste pleito, Marcelo Freixo no Rio. A Rede mostrou que a nada veio, o PDT cresceu um pouquinho, o PCdoB foi castigado por sua aliança histórica com o PT. O PSB já atravessou o rubicão.

O vento da direita não é apenas brasileiro, é continental, se não global. Ele sopra em toda a vizinhança onde os governos de centro-esquerda, no tempo das vacas gordas, acharam que bastava garantir o consumo e a renda para fidelizar o apoio das classes populares. Não ousou fazer reformas no sistema político e tributário, não ousou regular a mídia (exceto na Argentina) nem disciplinar os capitais nômades. E, sobretudo, desprezou a necessidade de educar politicamente o povo, que na primeira adversidade lhes voltou as costas.

Quanto tempo vai durar? Vai depender de como o PT conseguirá se reinventar, de como ele e os outros partidos de esquerda vão se relacionar com vistas ao futuro. Está claro que sem alguma unidade será mais difícil vencer o cerco. Mas a duração do retrocesso dependerá, sobretudo, de quais serão os impactos destas administrações conservadoras sobre a vida real dos brasileiros.

No governo do pais, está cada dia mais claro que a gestão Temer trará sacrifícios e não bonança.

A dureza não será passageira, está prometida para 20 anos. O congelamento do gasto público diz que ninguém deve esperar do governo federal “bondades” como as dos governos petistas, que teriam custado caro. Mas as prefeituras estão bem mais perto dos cidadãos, que a elas se apegam mais na solução dos problemas imediatos.

Estão todas falidas e esperando algum socorro do governo federal, que não virá. Até onde a vista alcança, serão administrações de poucos resultados ou então serão irresponsáveis, o que levará a um descalabro ainda maior.

É sobre estes resultados, e avaliando corretamente as razões da derrota, que a esquerda deve se preparar para o novo tempo.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

REPÚBLICA BRASILEIRA E SEU POVO DISTANTE


Após 67 anos de monarquia, a República brasileira foi proclamada em 15 de novembro de 1889, a partir de um golpe de estado promovido pelo exército.

Portanto, nesse 15 de novembro de 2016 ela está fazendo aniversário de 127 anos.

Costuma se dizer que o Estado tem 3 elementos que são básicos em sua constituição: um território definido e reconhecido, um povo com identidade cultural e um governo centralizado que o represente.

Em assim considerando, a grosso modo, como andou a saúde do estado nacional brasileiro no período republicano?

Bem, o território nacional além de reconhecido se ampliou, com a anexação do Acre durante o governo do Presidente Rodrigues Alves. O mar territorial foi ousadamente ampliado para 200 milhas pela Ditadura militar e, excluindo-se supostos torpedeamentos nazistas à navios mercantes brasileiros, não tivemos nenhuma ameaça real à nossa integralidade territorial.

Com relação ao governo centralizado que o represente, tivemos alguns abalos, mas, externamente sempre houve o reconhecimento por parte das nações estrangeiras de nossa soberania.

O Brasil foi o único país que enviou tropas para a Europa na segunda guerra mundial, abalizou vários tratados e protocolos internacionais e, infelizmente, mesmo nos negros anos da ditadura militar sempre teve seu governo reconhecido lá fora.

Já, o terceiro elemento definidor dessa equação que forma o estado não andou nada bem.

Fruto de uma colonização elitista e exploradora e de período monárquico que manteve a escravidão, uma das principais cicatrizes de nossa história, tivemos a formação de uma das sociedades mais conservadoras e excludentes do continente.

Diferentemente dos Estados Unidos, nossa classe média não enriqueceu e nem poderia, já que as políticas nacionais, em geral, visaram o bem financeiro das classes mais abastadas. No entanto, cristalizou-se nessa classe média o sentimento de estranha e falsa superioridade sobre os mais desvalidos.

É uma classe média que mesmo sem possuir terras é contra a reforma agrária, mesmo sem possuir escravos é avessa aos interesses históricos dos trabalhadores e, mesmo sem nunca estar de fato no poder, é mais reacionária do que se realmente o poder fosse seu.

Apenas nos últimos anos, a partir das políticas afirmativas, a população negra pode ter melhores condições de acesso ao ensino superior e isso, teve um peso enorme contra o governo que as criou.

Estupefatos assistimos o desenvolvimento crescente de um ódio, por parte das classes médias, às políticas que diminuíram as diferenças sociais que, beira, o fanatismo.

País da hipocrisia, no Brasil “não existe racismo” mas nele habita um dos povos mais racistas de nosso tempo. É tolerante, mas defende medidas medievais contra a diversidade de gênero. É pacífico, mas possuí uma das polícias que mais matam no mundo e gente capaz de defender a pena de morte como solução dos problemas da violência além de glorificar personagens de discurso fascista. Um Brasil de todos, mas com o poder nas mãos de meia dúzia.

Somos um povo de quase 200 milhões de pessoas, mas, definitivamente ainda não somos uma nação.

Vivenciamos absurdos como o fato de 10% da população concentrar mais de 60% da renda nacional. Ou ainda de saber que enquanto o 1% da parcela mais rica da nossa sociedade é tão rica como os abastados dos países mais desenvolvidos, nossos mais pobres são tão pobres como os mais carentes de Serra Leoa ou da República Democrática do Congo.

Então, ao chegar o calendário à mais um 15 de novembro, nos falta motivos para comemorar e sobram causas de reflexão.

Para onde vamos, afinal? Que Brasil estamos construindo para nossos filhos e netos?

Nos últimos tempos, as máscaras que, historicamente escondiam o ranço reacionário, caíram. O Brasil do “todos juntos vamos, pra frente Brasil” está cada vez mais dividido e, as pequenas feridas sociais ameaçam tornarem-se fraturas expostas.

E, num momento tão grave, se chega a conclusão que o que mais nos ameaça, o que mais assusta, não são perigos contra nossa soberania ou segurança territorial, nem mesmo qualquer menosprezo internacional contra nossos governantes. O que ameaça mesmo, o estado brasileiro, é a insensata segregação e intolerância racial e social.

Que o 15 de novembro seja um momento de reflexão que busque a união de todos os brasileiros, que só será possível com o fim dos elementos reacionários que a impedem.

Definitivamente, se nosso povo sofre e é mantido distante do banquete, nossa pátria sofre e não tem motivos para estar em festa.



Prof. Péricles

sábado, 12 de novembro de 2016

PROCURA-SE UMA HENRIETTE

por Paulo Nogueira


Em 1914, o jornal conservador Le Figaro vinha massacrando o ministro da Fazenda, Joseph Caillaux, de esquerda. Caillaux, para o jornal, era pacifista demais um momento em que a Alemanha flexionava seus músculos.

O Figaro conseguira uma correspondência íntima de Caillaux dirigida a uma mulher da sociedade parisiense, Henriette.

Eram cartas em que se misturavam lascívia e inconfidências políticas e datavam da época em que Caillaux e Henriette mantinham um caso clandestino.

Quando o Figaro obteve as cartas, Caillaux e Henriette já eram marido e mulher, depois de cada qual se divorciar para viver plenamente o seu relacionamento.

O editor do Figaro, Gaston Colmette, era o jornalista mais poderoso da França. 

Henriette queria que Joseph o desafiasse para um duelo para preservar a honra e a carreira. Mas depois teve uma segunda ideia.

Dirigiu-se à sede do jornal e pediu para ser recebida por Calmette, num final de dia. 

Um amigo de Calmette lhe recomendou que não a recebesse, dadas as circunstâncias da campanha movida contra o marido dela.

Mas Calmette era um francês, e respondeu que não poderia deixar de atender uma dama sozinha.

Henriette tinha um véu na mão.

“Você sabe para que eu vim aqui, não?”, disse ela, segundo testemunhas. Sem perder um só minuto, Henriette mostrou o que carregava: uma Browning automática. Descarregou-a em Calmette. Quatro tiros acertaram seu peito, e o mataram em poucos minutos.

A polícia não tardou a aparecer. Os policiais iam levar Henriette a uma delegacia na viatura que estava estacionada na frente da sede do Figaro.

“Não toquem em mim”, disse ela. “Je suis une dame”.

Ela foi para a polícia em seu próprio carro.

Poucas semanas depois, num julgamento que chacoalhou a França e a Europa, e obscureceu entre os franceses os acontecimentos que logo levariam à Primeira Guerra Mundial, o caso foi examinado por um júri composto apenas de homens.

Henriette acabou inocentada. O júri decidiu, em legítima defesa da honra, e sob intensa emoção.

A opinião pública, no julgamento, se inclinou por Madame Caillaux e não pelo jornalista morto, ou pela causa deste.

Houve entre os franceses um consenso de que Calmette e o Figaro tinham cometido um abuso intolerável de poder, e o veredito refletiu isso.

Acabou assim espetacularmente, pelas mãos de Madame Caillaux, une damme, o jornalismo que assassinava reputações na França.

O Brasil o Calmette brasileiro era o “Corvo”, o jornalista e político Carlos Lacerda, que se lançou a uma campanha selvagem que levaria Getúlio Vargas ao suicídio, em 1954.

É um exercício fascinante imaginar o que teria ocorrido se Vargas tivesse a seu lado uma Madame Caillaux.

Mas não tinha.

Lacerda foi vítima de um atentado em que saiu apenas com um pé ferido. O mandante, segundo a polícia, foi o chefe da guarda pessoal de Getúlio. Sob a pressão da imprensa, Getúlio poucos dias depois se mataria.

Madame Caillaux, na Paris de 1914, acabou de uma só vez com Calmette e com um tipo de jornalismo que os franceses julgaram destrutivo e nocivo ao interesse público. Lacerda pôde seguir, revigorado, sua carreira deletéria.

O Corvo seria o nome essencial para justificar, pela imprensa, a instalação de uma ditadura militar que, sob o pretexto infame de impedir “o triunfo do comunismo”, viria a matar milhares de brasileiros e faria do Brasil um campeão mundial da desigualdade social.

Henriette, com seu gesto extremo e desesperado, forçou a França a avaliar o jornalismo que se fazia então.

O Brasil jamais passou por este tipo de avaliação, e isso explica em grande parte o jornalismo sem limites que vigora entre nós ainda hoje, um século depois de os franceses terem imposto limites imprescindíveis ao interesse público.