sábado, 14 de maio de 2016

O MAIS TRISTE


Deixando de lado o discurso político e as palavras doces, e definindo as coisas pelo seu nome popular, tudo isso que vimos acontecer na política brasileira deve ser definido como golpe, imoralidade, mas, acima de tudo, como algo muito triste.

Mas, de todas as tristezas, qual foi a mais dolorosa?

O fato de 54 milhões de votos serem desconsiderados é chocante, claro.

Assistir ao vivo uma rede de televisão, a maior do país, despir-se do manto da neutralidade e atuar mais do que qualquer partido político. Destacar pessoas e falas e omitir outras, é assustador.

E sem dúvida, que ver a Polícia Federal, que por coerência em suas funções sempre foi discreta, aparecer todos os dias na televisão, ou juízes incorporando bocejos de celebridade, foi de lascar.

E o STF, nossa suprema corte, sempre a última esperança, o bastião da neutralidade? Como doeu ver a suprema corte tomando partido pelo golpe.

De todos os fatos absurdos dois, provavelmente, serão sempre lembrados sem muito esforço: o caso de um ex-presidente ser levado coercitivamente a depor sem nunca ter sido chamado antes e o fato de um processo que pedia a exclusão do presidente da Câmara dos Deputados ter ficado cinco longos meses engavetado no STF e desengavetado depois que tudo já tinha se decidido.

O golpe impetrado pela maioria do parlamento, tido como pior já eleito no Brasil, teve a parceria vital da mídia e do sistema jurídico do Brasil.

Homens como Tche Guevara alegavam que a revolução armada era necessária pois, nas regras da democracia burguesa jamais um governo popular seria eleito e se fosse não teria governabilidade e se tivesse seria derrubado.

Vendo o que aconteceu no Brasil somos obrigados a concordar com ele.

Mas, o que foi mais triste nessa sujeira histórica praticada do Brasil, ainda não foi nada disso.

A maior de todas as tristezas foi ver parcela majoritária da classe média despejar seu ódio contra qualquer avanço das classes mais pobres.

No golpe nazista na Alemanha utilizou-se o anti-sionismo como combustível na fogueira do ódio. No Brasil o fascismo usou o antipetismo.

Mas, o petismo não é uma etnia, nem uma ideologia, muito menos uma religião.

O petismo, no caso, representava políticas sociais que alavancaram os mais infelizes do Brasil do pior estado de miséria para uma situação remediada.

Por isso o antipetismo é, na verdade, anti-pobre, anti-melhorias sociais, anti-negro na faculdade.

O que mais dói é perceber como nosso povo é anti.

É perceber, sem direito a qualquer ilusão, o quanto é medíocre o pensamento do dito, brasileiro médio.

O mais triste de tudo isso é perceber que ainda estamos longe de ser uma nação e como estamos próximos das mais mesquinhas sensações, moralmente indigentes e egoístas.



Prof. Péricles

quinta-feira, 12 de maio de 2016

LAMENTO SOBRE O BRASIL






Por Hermes C. Fernandes

Ai de ti, Brasília! Ai de ti, Brasil! Porque, se nos dias que precederam o golpe de 64 a população tivesse acesso a tantas informações quanto se tem atualmente, certamente teria se mobilizado e impedido que a democracia fosse ultrajada e o país mergulhasse em vinte e um anos de ditadura militar.

Portanto, que sejamos menos rigorosos em julgar os brasileiros daquela época que saíram às ruas clamando por um golpe, do que em julgar os que hoje, mesmo alertados pela história, seguem coniventes com o que está sendo engendrado contra a jovem democracia brasileira.

A primeira vez é tragédia. Mas a segunda, farsa.

E tu, República Federativa do Brasil, que te levantaste até o céu para desfrutares da liberdade de uma pungente democracia, tornando-se a quinta economia mundial, terás teu orgulho abatido até o inferno ao vires o retrocesso a que serás submetida por aqueles que se unem para devorá-la e negociar tuas riquezas.

Os brasileiros que enfrentaram a ditadura e que saíram às ruas nas “Diretas Já” se levantarão e condenarão tua letargia e cinismo.

As grandes democracias do mundo olharão com desdém e te censurarão por haver permitido tal descalabro, deixando-se seduzir por teus próprios algozes.

As gerações futuras se envergonharão ao descobrirem a maneira como esta geração se deixou manipular por aqueles que almejavam retomar o lugar que ocuparam por quinhentos anos.

Não há desculpas para esta geração. Não depois da internet. Não depois que o Brasil se tornou protagonista no tabuleiro político e econômico internacional. Não depois que 36 milhões de cidadãos brasileiros deixaram a miséria. Não depois que o analfabetismo foi quase inteiramente banido. Não depois que o fluxo migratório foi revertido.

Em 64, o número de jovens que ingressavam na universidade era ínfimo, na casa dos milhares. Hoje são quase oito milhões, incluindo negros e outras minorias que antes eram excluídos.

Não se trata de ser a favor de um governo ou de um partido em particular, mas de ser a favor da democracia, contrariando interesses econômicos dos que se locupletam da opressão exercida sobre as camadas mais humildes.

Não chegamos ainda à terra prometida. Quando muito, encontramos um oásis ou outro no meio do caminho. Mas, ainda há meio deserto pela frente. Mas não se pode dar ouvidos aos que pretendem nos levar de volta para o Egito.

Você pode não gostar da presidente, de sua maneira de discursar, das alianças que fez em nome da governabilidade, e até da corrupção cometida por membros de seu governo, mas daí se prostrar diante de um enorme pato amarelo em frente à sede de uma instituição que pretende acabar com os direitos trabalhistas conquistados a duras penas pelas gerações que nos antecederam, isso é inadmissível.

As próximas gerações não nos perdoarão. Nossos filhos e netos colherão o que hoje está sendo plantado sob a justificativa de se combater o comunismo e a corrupção, a mesma usada para desmoralizar Getúlio, destituir Jango, exilar Juscelino e decretar o AI-5.

Que o Senhor da História tenha compaixão da nossa geração durante a travessia desta encruzilhada.

Que Sua providência nos guie na direção da justiça, da liberdade e da esperança.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

O IMPEDIMENTO VENCEU MAS O GOLPE SERÁ DERROTADO


Por Wanderley Guilherme dos Santos


Não há reversibilidade possível no processo de afastamento da presidente Dilma Rousseff. 

O atual Supremo Tribunal Federal não tem coesão para tanto ousar, declarando inconstitucional a decisão iniciada pela Câmara dos Deputados e completada pelo Senado Federal.

Os fundamentos da acusação à presidente são precários, a sentença é notoriamente desproporcional, mas a convergência de conspirações entre agentes econômicos, maiorias parlamentares conservadoras, ressentimentos de ricos e remediados, com a liga propiciada pelo oligopólio dos meios de comunicação, historicamente antidemocráticos, alcançou eficácia inédita na contra-história golpista brasileira.

Em vão a tonelada de argumentos e evidências da insustentabilidade de processos em que maioria decide que 2 e 2 são 5 porque ela assim quer.

O impedimento se deu porque a maioria assim o quis. Qualquer objeção jurídica ou lógica à decisão é pura perda de tempo.

Por isso o golpe fracassou.

As sucessivas ilegalidades da força-tarefa da Lava-Jato, com prisões injustificadas, humilhações de investigados, difamações, tortura psicológica de presos, vazamentos operados com oportunismo, incansável repetição de incriminação e degradação de investigados ou mesmo réus em curso de julgamento, linguagem virulenta de procuradores, policiais federais e procurador-geral da República, cultivando hostilidade e ódio na opinião pública e, finalmente, o apelo dos homiziados de Curitiba aos movimentos sociais conservadores e mídia golpista para continuado apoio, esquecendo as instâncias judiciárias e de outros poderes a que estão subordinados, substituiu a indumentária de cavaleiros pelo restabelecimento da moralidade pelo descarado uso da força bruta, e só ela, contida nas leis.

Não há salvação: Michel Temer é um usurpador e seu governo não deve ser obedecido.

Não deve e não o será.

O golpe fracassou socialmente e o usurpador só governará mediante violência física, repressão sem disfarce.

Ou a sublevação social pela democracia é submetida pela força (e aí o golpe, finalmente, será vitorioso), ou a coerção servirá de combustível à sublevação.

Então, de duas uma: ou Michel Temer renuncia e o STF convoca novas eleições ou as forças armadas intervirão.





segunda-feira, 9 de maio de 2016

A BANALIDADE DO MAL





Exmo. sr. capitão paraquedista reformado
Deputado Jair Messias Bolsonaro (PSC/RJ)

Sou Maria Garcia Meirelles, amazonense de Parintins, mãe de Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto, ex-secretário geral da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), preso, torturado e assassinado na prisão.

Escrevo-lhe porque o senhor matou meu filho outra vez no domingo passado, em sessão da Câmara de Deputados, ao fazer uma apologia do crime exaltando seu colega de armas, coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador e assassino reconhecido, responsável por 60 mortes e por mais de 500 casos de torturas cometidos no Doi-Codi entre 1970-1974.

Neste período, capitão Bolsonaro, Thomazinho combatia o golpe militar que rasgou a Constituição, derrubou o presidente eleito pelo voto popular, instituiu a censura e suprimiu as liberdades democráticas. Por isso, em 1970, foi preso e torturado no Doi-Codi. Condenado, cumpriu pena. Libertado dois anos depois, teve que se esconder. Foi aí que viajei ao Rio para encontrá-lo, na clandestinidade, levando um pouco do sabor de sua infância – uma paçoquinha que eu mesma fiz no pilão e que ele gostava tanto.

Nosso encontro foi numa noite de fevereiro de 1973 em Copacabana. Senti dor imensurável ao ver o fruto das minhas entranhas machucado, lanhado, com marcas de tortura e cicatrizes no corpo. Era um pedaço de mim que estava ferido. Provou a paçoquinha e deitou a cabeça no meu regaço, sempre calado, discreto e triste. Eu lhe fiz muito carinho, sem saber que era uma despedida. Essa foi a última vez que o vi.

Meu filho voltou a ser preso em 7 de maio de 1974, quando viajava do Rio a São Paulo, conforme documentos do DOPS/SP e relatório do Ministério da Marinha assinado pelo ministro Ivan Serpa. Cinco anos depois, o nome de Thomazinho constava numa lista publicada pelo Correio da Manhã (03/08/79) com 14 presos mortos pelos serviços secretos das Forças Armadas, mas somente em 1995 ele foi considerado oficialmente desaparecido. O corpo até hoje não foi localizado.

Durante anos, não assumi o luto por meu filho, sempre com a esperança de reencontrar a quem me fez mãe. É que quando ele nasceu, eu também nasci como mãe. Admitir sua morte era, além de amputar uma parte de mim, matar minha maternidade. Meu filho era muito inteligente, doce, educado, generoso. Um príncipe. Todos gostavam dele. Eu não o esqueci nem um minuto, não podia imaginar um amanhã sem ele. Nunca soube de seu paradeiro. Levou tempo para ter a certeza de seu assassinato.

A notícia foi confirmada quatro décadas depois pelo seu colega, capitão Bolsonaro, o ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra, atirador de elite, que escreveu o livro “Memória de uma Guerra Suja” para exorcizar os demônios que o atormentavam. Em entrevista a Alberto Dines, em junho de 2012, no Observatório da Imprensa, ele contou histórias de assassinatos e torturas durante a ditadura militar:

– “Hoje mais uma historia triste para esclarecer é (do) desaparecido político Thomaz Antônio da Silva Meirelles. É…recebi um chamado do coronel Perdigão e fui ao quartel da Barão de Mesquita (…) Ali o coronel Perdigão me entregou um corpo num saco preto, né, (…), quando chegou em Campos abri o saco, vi que se tratava de um homem aparentando ter mais ou menos 40 anos. E muito machucado, ele estava apenas vestido com um calção, não tinha as unhas das mãos, estavam arrancadas, o rosto bem desfigurado pelas torturas, com sinais de queimaduras…”.

A brutalidade da cena agride a humanidade. Quanta dor! Não desejo esse sofrimento para ninguém, capitão Bolsonaro, nem para dona Olinda – a sua mãe, nem para Michelle – sua esposa, nem para qualquer um de seus filhos – Eduardo, Flávio, Carlos, Renan e Laura. Ninguém merece isso, nem mesmo um execrável torturador. No meio da barbárie, luto para preservar minha humanidade. Vocês tiraram duas vidas: a minha e a do meu filho. Aconselhada a pedir indenização, não o fiz. O que queria era a verdade, nada mais, saber o paradeiro do meu filho em cujo túmulo em lugar desconhecido não pude colocar uma flor ou acender uma vela.

O assassinato de Thomazinho como de tantos outros foi uma extrema covardia. Ele estava preso, desarmado, legalmente sob proteção do estado. Os assassinos, com salários pagos pelo contribuinte, envergonham o Exército nacional por praticarem um crime abjeto contra a humanidade, conforme definido pelo Direito Internacional. Como pode um ser humano se degradar tanto a ponto de torturar ou de apoiar a tortura? O senhor defendeu a tortura cometida por um coronel armado contra Dilma Roussef, uma mulher indefesa.

A sua declaração de voto, capitão Bolsonaro, revela covardia, que não me surpreende, pois o senhor é um notório agressor profissional de mulheres. Ofendeu Maria do Rosário (PT-RS) quando ela defendeu a Comissão da Verdade, insultou Benedita da Silva (PT-RJ), ameaçou a advogada indígena Joênia Wapichana, a cantora Preta Gil, a ministra Eleonora Menucucci (PT/MG), a senadora Marinor Brito (PSOL-PA) e até Marta Suplicy (PMDB/SP) quando ela defendia projeto de lei que criminaliza a homofobia. Tudo isso escancaradamente, publicamente.

Racista, homofóbico e fascista, a sua declaração em favor da tortura ecoou como o grito necrófilo e insensato de “Viva la Muerte” do general espanhol José Millán-Astray, em 12 de outubro de 1936, criticado por Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, para quem só um mutilado mental carcomido pelo ódio é capaz de gritar “morra a vida”.

Capitão Bolsonaro, no Congresso do Cunha comandado por um réu no STF, o senhor votou e declarou que votava “sim” porque era a favor da tortura. Mais claro não canta um galo. Sua declaração de voto a favor da tortura me deu a certeza de que aquilo que está acontecendo no Brasil é mesmo um golpe. O Fora Dilma equivale a um Fora Thomazinho e Fora todos aqueles que combateram o outro golpe, o de 1964.

Tenho pena do senhor pela besta-fera em que se transformou. Morro de vergonha de vê-lo representando parcela do povo brasileiro no Congresso Nacional. Se viva fosse, diante de tanta afronta e de tanto escárnio, me sentiria representada pela reação do deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ) e pela ação atribuída à torcida do Corinthians na montagem da foto que circulou nas redes sociais.





Carta “psicografada” de dona Maria Garcia Meirelles, falecida em 1999.

sábado, 7 de maio de 2016

DIA DAS MÃES E O DIREITO DA DESPEDIDA


No dia das mães lembro de Zuleika.

Em 14 de abril de 1971, pouco antes dela completar 50 anos, seu filho, Stuart, foi preso pela repressão da Ditadura Militar Brasileira.

Nunca mais foi visto com vida.

Mas Zuleika, que era conhecida no Brasil como Zuzu Angel, nunca desistiu de encontrá-lo, ou, de pelo menos, poder enterrar seu corpo.

Ficou conhecida no mundo inteiro por sua busca de mãe desesperada, tornando-se um símbolo da luta contra os crimes da ditadura.

Chegou a “furar” a segurança, arriscando a vida durante uma visita oficial do secretario norte-americano Henry Kissinger ao apartamento do General de plantão na presidência do Brasil na época, Ernesto Geisel.

Como mães possuem um código próprio, pediu ajuda para outra mãe, a esposa do general Mark Clark, comandante das tropas aliadas na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial.

Tudo inútil. As lágrimas de Zuzu Angel jamais secaram e, exatamente cinco anos depois da prisão de Stuart, em 14 de abril de 1976, ela também se tornaria uma vítima da ditadura, sofrendo aquelas mortes estranhas e inexplicáveis de acidente de trânsito, tão ao gosto dos tiranos da época.

Uma semana antes do “acidente” Zuzu deixou na casa do amigo Chico Buarque de Hollanda uma carta em que dizia “se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”.

O corpo de Stuart jamais foi encontrado e ainda figura entre os desaparecidos políticos, apesar de ser amplamente conhecido, graças ao testemunho de outros presos políticos da época, o que aconteceu com ele.

Stuart, militante do MR-8 era muito próximo do Capitão Carlos Lamarca, inimigo número 1 da ditadura. Foi torturado desde o momento em que foi preso. Acabou morrendo por asfixia quando teve a boca amarrada a um cano de descarga de um veículo.

Muitas mães, como Zuzu, já morreram sem poder enterrar os restos mortais de seus filhos assassinados nos porões da tortura. Outras, em idade avançada, ainda sofrem de saudades e ainda choram lágrimas de mãe, aquelas lágrimas que, sabemos, são as mais amargas que se pode conhecer.

E  às dores dessas mães, acrescenta-se hoje a dor de assistir elogios à ditadura.

À essas mães sofridas, de todas as lágrimas amargas, a quem foi negado o direito da despedida, o desejo sincero de um dia das mães suavizado pela resignação e a certeza de que a justiça, mais cedo ou mais tarde, aqui ou em outro plano da existência, será feita.


Prof. Péricles

quinta-feira, 5 de maio de 2016

SUPERMAN DE REAÇA AMERICANO A DITADOR SOVIÉTICO


Por Ednardo Pinho

Quadrinhos de super-heróis, historicamente, têm sido considerados produto para entretenimento de crianças e adolescentes, sem qualquer pretensão artística ou intelectual.


Foi assim desde o surgimento do gênero, no fim dos anos 1930, nos Estados Unidos, e quase nada mudou até idos da década de 1980, quando surgiram obras que, por um lado, introduziram inovações técnicas apreciáveis, chamando atenção para a  linguagem quadrinhística, e, por outro, apresentaram desenvolvimentos temáticos com forte apelo junto ao público adulto.

Nessa época, O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, causou furor e devoção ao apresentar um Batman envelhecido, soturno, violento, numa trama efetivamente bem elaborada. Também Alan Moore e Dave Gibbons, com Watchmen, elevaram os quadrinhos de super-herói a um patamar artístico nunca antes atingido ao mostrar uma história altamente realista sobre como poderia ser um mundo em que super-heróis de fato existissem.


E assim começou a operar-se uma mudança no modo como os super-heróis eram vistos pelo público.

Ironicamente, o personagem símbolo de super-herói, o Superman, não teve a mesma sorte que um Batman ou um Demolidor, por exemplo, a de estrelar histórias que tivessem algo a dizer a um público maduro ou a um leitor não aficionado por quadrinhos. O Superman, a despeito de algumas histórias escritas por roteiristas consagrados, parecia um personagem fadado a viver aventuras infantiloides e dramas artificiais.

É que talvez não seja mesmo muito fácil infundir densidade a um personagem superlativamente poderoso e sem sérios dilemas morais, cuja atuação parecia ser sempre uma peça de propaganda de valores associados ao American way of life, aspecto ideológico estudado de maneira cabal por Umberto Eco em Apocalípticos e integrados, cuja primeira edição data de 1964.

O Superman, segundo Eco, batalha sempre pela manutenção do status quo num mundo profundamente injusto e cheio de sofrimento, sem jamais questionar sua conduta. Argumenta o estudioso que um personagem tão poderoso poderia gerar riqueza incalculável, seria capaz de resolver problemas como a fome e a opressão por que passam milhões de pessoas no planeta.

Em vez disso, porém, a luta do herói se dá geralmente em âmbito local, despendendo suas energias no desbarate de quadrilhas de gangsters, assaltantes de banco e coisas do gênero. Por que se limitar a salvar pessoas dos escombros de um desabamento ou evitar o descarrilamento de um trem quando se tem poder para agir em escala cósmica? Por que salvar a humanidade de monstros galácticos sem envidar esforços reais para mitigar o sofrimento humano aqui na Terra?

A resposta é só uma: o Superman nunca age contra as instituições, jamais questiona o establishment social, político e econômico, embora tenha poder para fazê-lo.


Está claro, então, que esse personagem espelha os valores do sistema socioeconômico vigente nas economias capitalistas. A própria mitologia do personagem  já mostra os Estados Unidos como um lugar especial.

Pensemos bem: o Superman é um ser alienígena que foi mandado por seus pais para a Terra a fim de escapar de um desastre em seu planeta natal. A nave que o transportou poderia ter caído em qualquer
lugar da Terra, mas foi aterrissar justamente no interior dos Estados Unidos, onde foi encontrada por um casal que, em tudo, encarna o ideal da pequena propriedade que faz a cabeça do americano médio. Parece natural que, dadas essas circunstâncias, o personagem se haja embebido com os valores desse sistema socioeconômico.

O que aconteceria, porém, se a fatídica nave, na verdade, tivesse ido parar, digamos, na antiga União Soviética? Teríamos então um Super-Homem educado segundo os valores do socialismo marxista e stalinista,  um defensor do comunismo?

Pois essa é a premissa básica de Superman: Entre a foice e o martelo (Superman: Red Son, no original), uma rara história desse personagem que talvez tenha algum apelo junto ao leitor adulto, ou que pelo menos já tenha passado pelo Ensino Médio, ainda que certos cacoetes do gênero a tornem uma história pouco palatável a quem porventura se acostumou a ler Faulkner ou Proust, por exemplo.

A verdade é que críticas como a de Umberto Eco não costumam deixar pedra sobre pedra, e por sua análise não havia mesmo outra forma de se enxergar o Superman a não ser como entretenimento barato para mentes ainda não amadurecidas e pouco exigentes.


De algum modo, então, e seguindo uma tendência mais geral dos quadrinhos norte-americanos em fins do século XX, a de se adequar a um público cada vez mais  adulto, procurou-se dar ao Superman alguma densidade, em tramas um pouco mais elaboradas, em que se esperasse do personagem mais que impedir uma queda de avião ou um assalto, por exemplo.

É nesse sentido que vêm a lume histórias como Paz na Terra, de Paul Dini & Alex Ross, que pretende justamente explicar por que o Superman, poderoso como é, não age de modo a superar os flagelos da humanidade. E é mais ou menos nessa linha conceitual que se insere a citada Entre a foice e o martelo, de Mark Millar e Dave Johnson, história que apresenta uma visão alternativa desse personagem, de maneira que, em vez daquele defensor do American way of life, temos “um super-homem alienígena comprometido com os ideais comunistas”, o “super-homem espacial de Stalin”, o “campeão dos proletários”, sempre disposto a atender a “seus chefes em Moscou”, segundo lemos nas primeiras páginas da história.

Na história, vemos um Superman tornando-se líder do Partido Comunista soviético após a morte de Stálin. Uma vez nesse posto, lança-se a ampliar a influência do Pacto de Varsóvia até que todos os países do mundo se hajam convertido ao modo de produção socialista, com exceção de Estados Unidos da América e Chile.

Segue-se uma era de relativo progresso material, com ganhos expressivos nas áreas sociais em todos os países que adotaram o regime socialista: não havia criminalidade, desemprego ou trabalho infantil, todos tinham direito a suas oito horas de sono por dia, e a expectativa de vida chegava a 120 anos.


A utopia ganha corpo. Tudo isso, porém, a um preço altíssimo. O Superman erigira-se não apenas líder, mas déspota, ditador, atuando com um Big Brother orwelliano em escala planetária. Não chegava aos extremos da violência física, mas também isso a um custo, o dos cérebros praticamente lobotomizados para todos os opositores, todos os dissidentes, todos os “desobedientes”.

Sob a liderança de Lex Luthor, o mundo vê a descoberta de uma cura para o câncer e a AIDS, por exemplo, e entra numa espiral de progressos materiais e tecnológicos inauditos. Aqui se tem, como conclusão, o outro lado da moeda: se, sob o comunismo, o que havia era opressão, apesar de alguns progressos econômicos e sociais, sob o capitalismo se produziu muito mais riqueza e conhecimento, com liberdade para o ser humano.


É bem claro o viés ideológico de Entre a foice e o martelo, de sorte que o Superman, mesmo nessa versão alternativa, continua a serviço da representação e propagação de valores caros ao status quo sociedades como a norte-americana.

Logo se vê, dessa forma, que a discussão de temas sociopolíticos resvala paraconcepções um tanto maniqueístas e reducionistas, ainda que estas venham a ser atenuadas pela habilidade dos autores na construção narrativa propriamente dita.


Somente assim se entende, por exemplo, que essa história em quadrinhos seja sucesso na Rússia, apesar das conclusões a que aludimos acima. É que, ao que tudo indica, a figura do Superman permanece ainda um símbolo de poder altamente sedutor, é ainda, como o classificou Umberto Eco, um mito moderno.

Ednardo Pinho, professor de Língua Portuguesa, mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará, colecionador e estudioso de quadrinhos.