Dizem, na Sala dos Professores, que ensinar é um fato compartilhado e que quando transferimos conhecimento, um pouco de nós passa a fazer parte de quem conosco aprendeu.
Essa afirmação é totalmente procedente e ao longo de nossa carreira aprendemos ser impossível ensinar sem aprender junto, assim como é impossível educar sem doar uma boa parte de si mesmo.
Sendo isso verdadeiro, uma boa parte de mim morreu em Santa Maria na madrugada do dia 27 desse mês de janeiro.
Foram muitos os ex-alunos de pré-vestibular incluídos entre as vítimas da tragédia da boate Kiss.
Diante de tanta dor que vitimou tantos jovens e sabendo que muitos levaram consigo um pouco de nós, nos perguntamos se não é uma ilusão a morte por inteira e se na verdade não morremos por partes.
Se pedaços inteiros partiram, não partimos também?
O mesmo, evidentemente, ocorre com os pais, os primeiros e principais educadores de seus filhos.
Quando começamos a morrer de fato? Certamente antes, bem antes do nosso último suspiro.
Morremos, talvez nas pequenas tragédias do dia a dia, as vezes imperceptíveis, assim como nos grandes holocaustos como esse do dia 27.
Mas também renascemos. Talvez viver seja apenas uma continuidade infinita de mortes e renascimentos.
Fiquei com a sensação que o Brasil renasceu também nesse dia.
Milhões de pessoas, em todos os quadrantes desse país, foram capazes de sofrer e de chorar por pessoas que jamais conheceram pessoalmente.
Se somos capazes de sofrer sem segundas intenções e se somos capazes de chorar sem com isso negociar recompensas futuras, é porque, apesar de tudo, das crises econômicas, políticas, sociais, morais, midiáticas, etc, apesar de tudo isso, ainda não perdemos a nossa humanidade.
Deu para perceber que morremos por parte e em cada parte, formando uma só unidade. No altruísmo da dor renascemos como pais, mães, amigos, colegas.
E aí está mais uma verdade discutida nas Salas dos Professores: quem ensina é o primeiro a aprender e nossos jovens acabaram expondo esse Brasil renascido. Aprendemos também.
Dos nosso alunos que partiram restou a certeza de ter valido à pena cada parte doada.
Aos seus pais cuja dor intensa é imensurável, a certeza de que é necessária a resignação para poder continuar, sempre lembrando que resignar não implica em não sofrer, mas sim acreditar que tudo isso, um dia, fará sentido.
Dizem os poetas que, quando damos flores o melhor do perfume fica em nossas mãos.
Da mesma forma, quando produzimos filhos ao mundo ficamos eternamente com o brilho de seus sonhos.
Prof. Péricles
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
quarta-feira, 16 de janeiro de 2013
O SOLDADO BRADLEY MANNING
O soldado Bradley Manning pode, finalmente, falar publicamente em sua defesa, em uma audiência preliminar ao conselho de guerra a que será submetido esse ano. Manning é a suposta fonte do maior vazamento de inteligência na história dos Estados Unidos. Ele trabalhava como analista de inteligência no Exército dos Estados Unidos e tinha acesso á informação ultra-secreta, foi enviado ao Iraque. Em abril de 2010, Wikileaks publicou um vídeo onde um helicóptero Apache, das Forças Armadas estadunidenses, dispara contra uma dezena de civis.
Um mês depois da publicação do vídeo, Manning foi preso no Iraque e acusado de ter vazado o vídeo e outras centenas de milhares de documentos. Assim começou seu calvário de encarceramento em confinamento solitário, em condições cruéis e degradantes que muitos sustentam equivaler à tortura, desde sua detenção no Kuwait até os meses de detenção na base militar Quantico, na Virgínia, Estados Unidos.
O advogado constitucionalista de longa trajetória, Michael Ratner, encontrava-se na sala de audiências em Fort Meade, Maryland, no dia em que Manning prestou seu depoimento. Ratner descreveu a cena: “Foi uma das cenas mais dramáticas que já vi em uma sala de audiências. Quando Bradley começou a falar não estava nervoso. Seu testemunho foi extremamente comovedor, realmente emotivo para todos nós, mas especialmente, como é evidente, para o próprio Bradley pelo que teve que suportar. Foi terrível o que aconteceu em dois anos, mas ele descreveu tudo com riqueza de detalhes, de um modo eloqüente, inteligente e consciente”.
Ratner disse que Manning descreveu como ficou detido em uma jaula no Kuwait: “Havia duas jaulas. Disse que eram como jaulas para animais. Estavam sob uma tenda, só estas duas jaulas, uma ao lado da outra. Uma delas continha alguns dos pertences de Manning, na outra, onde ele estava, havia uma pequena cama, uma estante e um vaso sanitário. Ele permaneceu nesta jaula escura durante quase dois meses. Ele foi retirado dela por curto espaço de tempo e depois, sem dar explicações, voltaram a colocá-lo na jaula (...) Bradley disse sobre esse período: “Creio que perdi a noção do tempo. Não sabia se era dia ou noite. Meu mundo se tornou muito pequeno. Converteu-se nessas duas jaulas”. Ratner acrescentou: “Isso quase o destruiu”.
Depois de sua detenção no Kuwait, Manning foi transferido para uma base militar em Quantico. Seu advogado, David Coombs, disse: “O modo pelo qual trataram Brad em Quantico ficará gravado para sempre na história de nosso país como um momento lamentável. Não foi somente estúpido e contraproducente. Foi criminoso.
Bradley contou como era estar nessa cela, na qual deve dormir em uma pequena cama, com uma luz frontal apontada na sua direção, que deixavam acesa para poder observá-lo. Se ele se movia para evitar a luz iam acordá-lo. Isso acontecia pela noite. Durante o dia, passava de 23 a 23 horas e meia na cela. Às vezes, tinha 20 minutos do que chamavam de “exercício ao sol”, o que não é nada. O que ele podia fazer? Porque supostamente está em serviço, devendo ou estar em pé ou sentado nesta cama de metal com os pés no solo e sem poder apoiar-se em nada. Isso durante 10 ou 15 horas por dia, o que deve se chamar de privação dos sentidos”.
O relator especial das Nações Unidas sobre a tortura, Juan Méndez, tentou visitar Manning, mas acabou se negando quando as forças armadas disseram que iriam vigiar e gravar a visita. Méndez informou: “A detenção em confinamento solitário é uma medida severa que pode provocar grave dano psicológico e fisiológico aos indivíduos, independentemente de sua situação específica”.
Os oficiais do exército descreverem o tratamento cruel aplicado a Manning como necessário, devido ao fato de que, segundo afirmaram, havia risco de que ele tentasse o suicídio. No entanto, o capitão da Marinha, William Hocter, um psiquiatra forense de Quantico, disse que não existia tal risco, mas que não o escutaram. “Sou médico chefe há 24 anos e nunca vi algo igual”, declarou Hocter. “Estava claro que estavam decididos a tomar um determinado curso de ação e pouco importavam minhas recomendações”.
A primeira etapa do conselho de guerra, que Coombs denomina “a etapa das moções de castigo ilícito antes do julgamento”, considerou uma moção da defesa pedindo o fim do caso. Embora seja improvável que isso aconteça, aqueles que seguem o caso sustentam que a defesa solicitou, como alternativa, que o conselho de guerra considere reduzir a pena de Manning resultante do julgamento a uma razão de dez dias por cada dia que teve que suportar o trato cruel e degradante no Kuwait e em Quantico, o que, em tese, poderia significar uma redução de seis anos em sua condenação à prisão.
Manning é acusado de vazar uma série de documentos para Wikileaks, que incluem o vídeo do massacre de Bagdá, duas grandes séries de documentos relacionados com os registros militares estadunidenses das guerras do Iraque e do Afeganistão e, talvez o mais importante, o vazamento de mais de 250 mil telegramas do Departamento de Estado dos EUA, conhecida como “Cablegate” (em referência a Watergate). Após uma avaliação realizada em agosto de 2010, o então Secretário de Defesa, Robert Gates, sustentou que a publicação dos documentos “não revelou fontes nem métodos de inteligência importantes”.
Ele concordou em se declarar culpado pelo vazamento dos documentos, mas não pelas acusações mais graves de espionagem e nem de ter ajudado o inimigo.
Bradley Manning completou 25 anos dia 17 de dezembro na prisão, data que também marcou o segundo aniversário da morte do jovem tunisiano que se imolou em protesto contra o governo corrupto de seu país, dando início à Primavera Árabe. Há um ano, quando a revista Time nomeou o “manifestante”, em termos genéricos, como Personagem do Ano, o lendário informante dos Documentos do Pentágono, Daniel Ellsberg, elogiou essa decisão em uma declaração que também se aplica à realidade atual: “A capa da revista Time nomeia o manifestante, um manifestante anônimo, o “Personagem do Ano”, mas é possível colocar um rosto e um nome nesta foto do “Personagem do Ano”. O rosto estadunidense que apareceria nesta capa seria o do soldado Bradley Manning”.
Amy Goodman - Democracy Now
Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.
Tradução: Katarina Peixoto
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
TENSÕES INTERNACIONAIS
Nesse início de 2013 algumas áreas de tensão, que trazem preocupação à paz mundial, são bem visíveis. A fronteira Índia/Paquistão, a instabilidade na Península da Coréia, e o Oriente Médio, são as mais preocupantes ameaças à paz no mundo.
Quando a Índia tornou-se independente do Império Britânico, num processo impar de não violência liderado pelo Mahatma Ghandi, as divergências entre hindus e muçulmanos produziam as mortes que o Mahatma conseguira evitar contra os ingleses. Em grande maioria, os hindus ocupariam o governo do país, com facilidade. Devido antagonismos ancestrais os muçulmanos temiam perseguições por parte dos Hindus e as lideranças muçulmanas impuseram após lutas sangrentas, a secção de parte do país dando origem a um novo Estado, o Paquistão. Assim, a Índia seria dos hindus e o Paquistão dos muçulmanos. Na partilha territorial, porém, uma importante região chamada Caxemira, apesar de habitada quase que totalmente por muçulmanos ficou para o estado hindu. De lá pra cá, essa fronteira tem sido uma das mais tormentosas do planeta. Já ocorreram guerras convencionais devido o surgimento de grupos separatistas caxemires que lutam contra as autoridades da Índia para anexar a região ao mapa paquistanês. Segundo o governo da Índia, os rebeldes caxemires são financiados pelo Paquistão. Detalhe importante, ambos os países possuem armamento nuclear, o que torna a ameaça de uma guerra entre os dois um perigo global e não apenas regional.
A Guerra da Coréia foi um dos capítulos mais marcantes da primeira fase da Guerra Fria. Aconteceu entre 1950 e 1953 e dividiu o país, como se tornaria clássico naquela Ordem Internacional. A parte Norte apoiada pela China Comunista (fazem fronteira) e a porção sul apoiada militarmente por forças dos Estados Unidos. A Guerra chegou a uma espécie de empate técnico entre eles foi assinado o cessar fogo de Piongang. Por se tratar de um cessar fogo e não de um acordo de paz, teoricamente os dois países irmãos ainda estão em guerra. A Coréia do Norte adotou o socialismo e após a crise do socialismo e fim da URSS em 1990 entrou em profunda depressão econômica, já a Coréia do Sul adotou o modelo capitalista e graças a profundos investimentos norte-americanos desfruta hoje de uma cômoda situação financeira, sendo um dos países mais modernos da Ásia. Inconformados com a situação, a Coréia do Norte nos últimos anos tem trazido apreensões à região com testes de mísseis e outros armamentos que colocam em risco, além da Coréia do Sul, o Japão, tradicional inimigo coreano. A Coréia do Norte também possui armamento nuclear e o medo maior é que, para sobreviver à crise econômica use métodos radicais para forçar acordos com seus vizinhos.
O Oriente Médio possuí mais de um foco de crise. O Irã que a mais de ano iniciou um programa nuclear (segundo os iranianos apenas para fins pacíficos) mais uma vez está no olho do furacão. Segundo os governos de Israel, Estados Unidos e da maioria dos países da Europa Ocidental, o Irã busca construir armamentos nucleares que colocariam, não só Israel, mas toda a região em risco. Além disso, os investimentos em armas feitos por seu governo fazem desse país, o detentor de um dos mais poderosos exércitos da região. O mundo ocidental divide-se hoje entre os que defendem uma ação militar imediata contra Teerã e os que consideram melhor insistir nas negociações diplomáticas. Outro país que tem tirado o sono dos pacifistas é a Síria. País de inúmeras divisões internas, a Síria é governada desde 2000 pelo político Bashar AL-Assad. Envolto nos movimentos da Primavera árabe Assad enfrenta há vários meses uma verdadeira guerra civil para derrubá-lo do poder. Segundo o Presidente, os rebeldes são apenas aliados dos norte-americanos e israelenses que desejam dominar a Síria para que sirva de trampolim a um ataque ao Irã. Segundo os EUA e a OTAN, Assad é um ditador cruel que tem usado armamento militar contra populações civis. O problema torna-se mais grave ao entendermos a Síria como a mais importante aliada da Rússia e da China na região, tendo esses governos deixado claro que não irão tolerar uma nova intervenção militar no Oriente Médio, pois que, enfraqueceria sobremaneira suas posições políticas na zona estratégica do petróleo.
Finalmente importa lembrar a interminável questão árabe-israelense. No ano passado a Autoridade Nacional Palestina conseguiu status de Estado reconhecido pela ONU. Isso provocou turbulências e ameaças por parte de Israel e dos Estados Unidos (o governo norte-americano deixou de repassar alguns milhões de dólares na UNESCO como retaliação). Israel acompanha a questão do Irã e da Síria muito atentamente. Em 2012, alegando que mísseis palestinos do Hamas partiam da Faixa de Gaza, Israel apertou o cerco na região, acelerou a construção do muro da vergonha e bombardeou algumas cidades palestinas matando civis. Depois, num recuo surpreendente, aceitou um cessar fogo. Segundo analistas mais pessimistas, esse recuo pode ter sido estratégico, apenas para preparar um lance mais ousado, como, por exemplo, um bombardeio no Irã. Um conflito no Oriente Médio ameaça extrapolar as fronteiras da região, envolver OTAN, China e Rússia, e provavelmente originar um confronto de características muito mais graves do que os últimos desencontros na região.
Fique atento. A situação hoje é muito, muito mais grave do que qualquer predição dos Maias ou comentários que se faça nos telejornais.
Prof. Péricles
sábado, 12 de janeiro de 2013
DIGA-ME COM QUEM ANDAS
Você conhece o “João de Barro”?
É um pássaro que faz uma verdadeira obra de engenharia a partir da argila.
Ele faz sua “casa” não de folhas e galhos, mas de barro, e com ela atrai a fêmea na época do acasalamento. Um verdadeiro artista da natureza.
Pois conheço um João de Barro que, apaixonado resolveu construir sua casa no poste mais central na praça central da cidade (sabe como são os João de Barro apaixonados, querem aparecer).
Negociou com o prefeito, explicando que dessa forma poderia fazer a casa de João de Barro mais vista da cidade.
O prefeito, de um partido conservador, aceitou os argumentos da ave, mas com condições. O João de Barro não poderia usar barro e sim areia fina, um material superfaturado que o prefeito queria vender e, claro, uma parte da verba da construção iria para ele, prefeito.
João de barro ficou triste, mas, pensou, melhor assim do que sem casa nenhuma. E topou a parceria.
Por falta de experiência nesse tipo de material João de Barro se confundiu todo e resolveu pedir uma consultoria com o engenheiro mais famoso da cidade.
O engenheiro explicou que poderia usar água para endurecer a areia, porém, teria que pagar um por fora ao jardineiro da praça central, o dono da mangueira municipal e, uma beira pra ele, engenheiro.
Nosso herói não encontrou outra solução. Sua vontade de construir a melhor casa de João de Barro da cidade era imensa, precisava conquistar não apenas uma parceira, mas a Joana de barro mais gata da floresta. Mais uma vez, topou o negócio. Então, negociou com o jardineiro, pagou unzinho por fora e teve sua areia fina umedecida.
A água, entretanto, era pouca, parte da areia virou barro, e outra não.
As pessoas que admiravam sua enorme habilidade natural para a engenharia e arquitetura, seu ideal instintivo de grande construtor, aos poucos iam se decepcionando e já não o chamava de João de barro e sim “João areia fina” além de não acreditavam em seus discursos explicativos.
De um jeito ou de outro a casa finalmente ficou pronta e João de Barro se pôs a cantar para atrair a fêmea, mas atraiu mesmo foi o fiscal da prefeitura que ameaçou autuá-lo por perturbação da ordem e desrespeito ao horário de silêncio.
- Mas com atrairei as fêmeas? perguntou o pobre e a resposta do fiscal foi “faça mímica", forme uma banda, invista na serenata ou simplesmente cale-se.
Quando o período de acasalamento começou a realidade de João de Barro era completamente diferente da que imaginara.
Ele que queria fazer a melhor casa de barro no poste mais central da praça central e atrair a mulherada, ou a passarada, e a Joana de Barro mais gata da floresta, era agora chamado de João areia-fina, tinha apenas uma meia casa grudada ao poste e chamava as fêmeas com mímica. Nenhuma delas o percebeu e ele ficou sozinho, iludido e com enorme sentimento de fracasso.
Ascendeu ao poste mais alto, mas para isso negociara todas as suas mais essenciais qualidades. Morreu solteiro.
Coisa muito semelhante acontece com os partidos que cultuam a chama da mudança e da justiça social, que atraem milhões para os seus sonhos, que prometem um governo diferente de tudo que já foi visto, íntegro e fiel.
São partidos cuja natureza social é latente e sua mais forte característica.
Para chegar ao poder, porém, necessitam da tal governabilidade que é como chamam a parceria entre partidos, independentemente dos sonhos ou interesses, para ter espaço na propaganda eleitoral e votos aliados no Congresso.
Em nome da tal governabilidade. Negociam tudo.
Assim como o João de Barro negociou até o barro, partidos ditos ideológicos, negociam até suas ideologias e quando percebem, estão no alto do poste mais alto, mas nus de seus antigos sonhos. Mantém a estrela, mas perdem seu brilho.
Quase nada resta do sonho original e o que representam é apenas uma pálida lembrança do que fora sua utopia um dia.
Aprendem tarde demais, como Fausto, que não é possível barganhar com o capeta depois de vender sua alma.
Hoje, entre um cafezinho e outro na lanchonete do Congresso, políticos outrora ligados à resistência democrática contra o autoritarismo, se acotovelam com coronéis desse mesmo poder que combatiam. Trocam afagos e planejam estratégias.
Diga-me com quem andas que te direi quem és.
De que vale governabilidade se o seu preço for esquecer os velhos princípios? Sempre chegará o dia em que as diferenças que antes demarcavam claramente diferentes visões darão lugar à semelhanças, conservadoras e corruptas.
De seus projetos de construção de uma sociedade mais justa, de seus desvarios adolescentes e de suas velhas utopias, quase nada resta, muito menos o canto que antes atraía os verdadeiros sonhadores.
Prof. Péricles
quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
OPERAÇÃO CONDOR
A Operação Condor foi uma aliança estabelecida formalmente, em 1975, entre as ditaduras militares da América Latina. O acordo consistiu no apoio político-militar entre os governos da região, visando perseguir os que se opunham aos regimes autoritários. Na prática, a aliança apagou as fronteiras nacionais entre seus signatários, que se articularam na repressão aos adversários políticos.
O nome do acordo era uma alusão ao condor, ave típica dos Andes e símbolo do Chile. Trata-se de uma ave extremamente sagaz na caça às suas presas. Nada mais simbólico, portanto, que batizar a aliança entre as ditaduras de Operação Condor. Não à toa, foi justamente o Chile, sob os auspícios do governo de Augusto Pinochet, quem assumiu a dianteira da operação.
Além do Chile, fizeram parte da aliança: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Nos anos 1980, o Peru, já sob uma ditadura militar, também juntou-se ao grupo. Pode-se dizer que a operação teve três fases. A primeira consistiu na troca de informações entre os países-membros. A segunda caracterizou-se pelas trocas e execuções de opositores nos territórios dos países que formavam a aliança. A terceira fase ficou marcada pela perseguição e assassinato de inimigos políticos no exterior - muitas vezes no próprio exílio.
Calcula-se que, apenas nos anos 1970, o número de mortos e "desaparecidos" políticos tenha chegado a aproximadamente 290 no Uruguai, 360 no Brasil, 2 mil no Paraguai, 3.100 no Chile e impressionantes 30 mil na Argentina - a ditadura latino-americana que mais vítimas deixou em seu caminho. Estimativas menos conservadoras dão conta de que a Operação Condor teria chegado ao saldo total de 50 mil mortos, 30 mil desaparecidos e 400 mil presos.
O Brasil participou ativamente das duas primeiras fases da Operação Condor. Não há, contudo, evidências que comprovem seu envolvimento com o extermínio de adversários políticos fora da América Latina. O Brasil apoiou os golpes militares em pelo menos três países da região: Bolívia, em 1971; Uruguai, em 1973; e Chile, no mesmo ano. Já existiam, portanto, estreitas ligações entre as ditaduras latino-americanas.
A Operação Condor veio apenas reforçar os laços políticos e militares, reorientando a aliança entre os governos da região para a perseguição a seus opositores. Nesse sentido, um caso emblemático foi o episódio envolvendo o seqüestro de uruguaios em Porto Alegre, em 1978. Militares daquele país atravessaram a fronteira com o Brasil, com a anuência do governo brasileiro, para seqüestrar um casal de militantes de oposição ao governo uruguaio que estavam na capital gaúcha.
A operação teria sido um sucesso - como tantas outras - não fosse o fato de dois jornalistas brasileiros, após serem alertados por um telefonema anônimo, terem ido até o apartamento onde o casal morava. O envolvimento dos jornalistas acabou revelando a ação conjunta do Uruguai e do Brasil - e repercutindo internacionalmente o episódio. Em 1991, o governo gaúcho indenizou as vítimas daquela ação militar. No ano seguinte, o Uruguai também tomou a decisão de reparar os seqüestrados.
Até hoje, uma das maiores controvérsias da Operação Condor em relação ao Brasil é a morte dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, e do ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Embora não existam provas que atestem o envolvimento do governo brasileiro na morte dos três políticos, os familiares de JK e Jango freqüentemente acusaram a participação da ditadura na morte dos ex-presidentes.
De tempos em tempos, parentes de Jango voltam aos jornais para acusar o governo militar de ter planejado e executado seu assassinato. Em 2008, o ex-agente do serviço de inteligência do governo uruguaio, Mario Neira Barreiro, disse em entrevista exclusiva à Folha de S.Paulo que espionou durante quatro anos João Goulart, e que ele foi morto por envenenamento a pedido do governo brasileiro.
Para investigar a morte dos dois ex-presidentes, o Legislativo chegou, inclusive, a instalar comissões especiais, que nunca conseguiram comprovar as teorias conspiratórias. Muito pelo contrário, os indícios, até agora, vão no sentido de comprovar que o Brasil não teve qualquer envolvimento com a morte de seus ex-presidentes, embora os dois episódios tenham ocorrido em circunstâncias estranhas na opinião de alguns observadores.
JK, Jango e Lacerda faleceram no espaço de menos de um ano. Em 1966, eles integraram a chamada "Frente Ampla", movimento de resistência à ditadura militar. Também por sua ativa participação no movimento oposicionista contra a ditadura, a morte dos três até hoje gera discussões quanto ao fato de terem ocorrido, ou não, sob as asas da Operação Condor.
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Vitor Amorim de Angelo
historiador, mestre e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos.
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segunda-feira, 7 de janeiro de 2013
OS VÔOS DA MORTE
Floreal Avellaneda achava que não suportaria mais tanta dor.
Desde que fora preso na cidade de Vicente López e depois de trazido arrastado para a ESMA (Escola de Mecânica da Armada argentina) já passara por verdadeiro suplício.
Pancadas foram tantas que já se tornara dormente e nem mais ligava para elas.
O que doía mesmo eram os choques elétricos, principalmente nos testículos, ou na língua, que lhe faziam saltar além de sua vontade, como se toda a musculatura de seu corpo tivesse vontade própria.
Incomodava também, o hábito dos torturadores de apagar os cigarros em sua pele. Queimaduras de cigarro ardem muito especialmente quando vários cigarros são apagados no mesmo lugar.
Caíra em abril de 1976, mas não sabia mais em que mês estava pois sua cabeça não conseguia organizar os pensamentos, embora o esforço para não perder a lucidez. Percebera a transferência para o Campo de Mayo, mas isso, não alterou em nada sua agonia.
Na última sessão de tortura, dois dias atrás, eles, os seus carrascos, exageraram. Um choque fora tão forte que lhe cortara um pedaço enorme da língua. Sentiu vontade vomitar mas as pancadas em sua cabeça foram tão repetidas que ele sufocara com o próprio vômito, não morrendo por um detalhe.
Agora, encolhido no canto da cela permanecia com os olhos fechados não só pela dor e pelo cansaço de dias sem dormir, mas porque, se abrisse os olhos veria Maria Rosa Mora, companheira de militância, presa junto com ele, estirada na cela ao lado. Ele fora obrigado a assistir as torturas em Maria Rosa, os estupros seguidos e seus gritos que foram diminuindo de intensidade até tornarem-se apenas sussurros.
Quando ouviu os passos que se aproximam da cela ele imaginou que iria para a última sessão. Dificilmente sobreviveria mais uma vez.
Floreal Avellaneda tinha apenas 17 anos, mais o sofrimento o envelhecera rapidamente, e, como um veterano da dor, respirou fundo, esperando o suplício final. Havia decidido morrer sem dizer nada, sem entregar nenhum companheiro à mesma sanha assassina e dessa decisão não se afastaria.
Para a sua surpresa, a primeira figura que reconheceu na frente de sua cela, foi um padre. Por segundos se sentiu aliviado. Padres representam Deus e certamente são contra as torturas. Com um padre por perto talvez sobrevivesse.
O torturador-mor entrou em seguida.
Maria Rosa Mora abrira também os olhos, embora não fizesse o menor ruído.
Sem rodeios o “general”, como gostava de ser chamado, disse com sua voz aguda que os dois, Floreal e Maria Rosa, eram pessoas de muita sorte. Recebera ordens para solta-los, com a condição de que abandonassem o país imediatamente e para sempre. Por mim, dizia o General, eu matava os dois, mas ordens são ordens.
Enquanto dois homens se aproximavam dos prisioneiros e aplicavam uma injeção em cada um, o padre dizia que estava ali para garantir suas seguranças, que as injeções eram para aliviar as dores e que os acompanhariam até o outro lado da fronteira, no Chile, de onde poderiam ir para onde quisessem.
Floreal percebeu que chorava quando não mais enxergava o padre próximo falando. Sua lágrima de felicidade turvava a visão. Mas, a injeção, maravilhosa, lhe tirava bastante as dores, deixando uma sensação agradável e alguma tontura.
Com algum esforço ergueu os braços alcançando as mãos do padre e beijo-as com enorme alívio.
A partir daí sua rota foi entremeada de vigília com sono, como se estivesse sonhando um sonho prolongado e vagaroso.
Viu-se numa maca sendo colocado num avião, ao lado de Maria Rosa. Depois, despertou com a voz do padre que rezava uma daquelas preces conhecidas que sua mãe ensinara. Depois viu que alguns homens tentavam erguê-lo. Viu o mar, estranhamente belo e infinitamente azul, que como um manto celeste lhe prometia abrigo. Sorriu, compreendendo estar próximo da liberdade...
Em meados de Maio de 1976, os corpos de Floreal Avellaneda e de Maria Rosa Mora foram encontrados, com as mãos amarradas, no Balneário de Rochas, no Uruguai.
O método de arremessar pessoas a partir de aviões e helicópteros, conhecidos como Vôos da Morte, foi aplicado pelos três ramos das forças armadas argentinas e por várias forças de segurança, durante a ditadura militar daquele país.
Sabe-se que os prisioneiros políticos condenados eram enganados com a promessa de que teriam a liberdade. Eram dopados antes do embarque para evitar qualquer tipo de reação e levados para alto mar.
O coronel Albino Zimmermann, chefe de polícia de Antonio Bussi, chegou a gabar-se em reuniões familiares de ter atirado vários guerrilheiros para a morte e fazia piada imaginando a surpresa dos infelizes.
Calcula-se em mais de 5 mil vítimas nos vôos da morte, alguns com a anuência e colaboração de padres que chegavam a dar a extrema-unção dentro das aeronaves.
A principal pista sobre os executores diretos foi dada em 1995 pelo ex gendarme Federico Talavera, que admitiu que a cada vinte dias transportava seqüestrados adormecidos num caminhão Mercedes-Benz rumo à base de El Palomar, onde eram carregados num Hércules da Força Aérea.
Em dezembro iniciou-se na Argentina, o julgamento de pilotos dos “vôos da morte”, que promete envolver lágrimas, revolta e muita emoção em todo o país.
Ao contrário do Brasil, a Argentina busca cicatrizar suas feridas punindo os culpados desse passado tenebroso para que fatos assim não voltem a ocorrer no país.
A todos que entendem o respeito aos direitos humanos como pressuposto da democracia, cabe acompanhar esse caso por mais doloroso que seja.
É o mínimo que se pode fazer em memória de suas vítimas.
Prof. Péricles
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