quarta-feira, 11 de julho de 2012

A FORÇA DA INDIGNAÇÃO


Mohandas Karamchand era um recém formado advogado. Contratado por uma empresa britânica não revelou muito talento, sendo inclusive criticado pela extrema timidez para falar em público. Foi, então, enviado para a África do Sul, onde deveria se incorporar ao escritório da tal empresa.

Segundo relato seu, durante a viagem foi abordado pelos funcionários da segurança do trem, pois estava ocupando um acento no vagão dos brancos e ele, apesar de não ser negro, tinha a cor da pela escurecida, típica dos indianos.

Anos depois desse fato, ao rememorá-lo ainda sentia a enorme humilhação que foi ser retirado aos empurrões e jogado no vagão dos negros, mesmo tendo nas mãos o bilhete referente à poltrona do vagão privado.

Sua indignação foi tremenda. Um vulcão em seu peito parecia querer explodir.
Humilhado, indignado, Mohandas, o homem jogado ao chão pelos “gentis” funcionários, morreria ali. E o que se ergueu, sob os cacos da dignidade partida, se tornaria o grande Mahatma Gandi, líder político de milhões de criaturas que conseguiu, de forma impressionante, mover o processo de independência de seu país, a Índia, sem usar a violência.

O advogado frustrado pela dificuldade em falar em público, sob a força da indignação se tornaria o líder de milhões e milhões, ouvido e respeitado por reis e presidentes, e até hoje admirado pelos amantes da paz.

O povo brasileiro, assim como Gandhi, ao longo dos séculos tem sido colocado no vagão dos excluídos. Os vagões luxuosos sempre reservados aos senhores do poder econômico, os senhores de engenho, os barões do café, os senhores do capital.

Acostumou assistir a marcha do trem através das frestas da história, espremido como gado e sem respeito, nem mesmo ao bilhete adquirido.

Talvez, por isso, hoje provoque tanta irritação nos homens do vagão de luxo, o fato dos excluídos da última classe estarem subindo para uma nova classe média cada vez mais politizada.

Na verdade, o medo dos barões, é que, finalmente o povo brasileiro use a força da indignação, não mais para justificar sua alienação, mas para tomar conta, definitivamente, do seu destino, da sua vida e do trem. Como Gandhi.


Prof. Péricles

domingo, 8 de julho de 2012

UM GOLPE DE MUITOS AUTORES

O objeto da Comissão da Verdade deve sim, tratar dos crimes e dos desaparecimentos perpetrados pelos agentes do Estado ditatorial. É sua tarefa precípua e estatutária. Mas não pode se reduzir a estes fatos. Há o risco de os juízos serem pontuais. Precisa-se analisar o contexto maior que permite entender a lógica da violência estatal e que explica a sistemática produção de vítimas. Mais ainda, deixa claro o trauma nacional que significou viver sob suspeitas, denúncias, espionagem e medo paralisador.

Neste sentido, vítimas não foram apenas os que sentiram em seus corpos e nas suas mentes a truculência dos agentes do Estado. Vítimas foram todos os cidadãos. Foi toda a nação brasileira. Para que a missão da Comissão da Verdade seja completa e satisfatória, caberia a ela fazer um juízo ético-político sobre todo o período do regime militar.

Importa assinalar claramente que o assalto ao poder foi um crime contra a constituição. Configurou uma ocupação violenta de todos os aparelhos de Estado para, a partir deles, montar uma ordem regida por atos institucionais, pela repressão e pelo estado de terror.

Bastava a suspeita de alguém ser subversivo para ser tratado como tal. Mesmo detidos e seqüestrados por engano como inocentes camponeses, para logo serem seviciados e torturados. Muitos não resistiram e sua morte equivale a um assassinato. Não devemos deixar passar ao largo, os esquecidos dos esquecidos que foram os 246 camponeses mortos ou desaparecidos entre 1964-1979.

(...) Em nome do combate ao perigo comunista, se assumiu a prática comunista-estalinista da brutalização dos detidos. Em alguns casos se incorporou o método nazista de incinerar cadáveres como admitiu o ex-agente do Dops de São Paulo, Cláudio Guerra.

Os que deram o golpe de Estado devem ser responsabilizados moralmente por esse crime coletivo contra o povo brasileiro.

(...) Os militares já fora do poder garantiram sua impunidade e intangibilidade graças à forjada anistia geral e irrestrita para ambos os lados. Em nome deste status, resistem e fazem ameaças, como se tivessem algum poder de intervenção que, na verdade é inexistente e vazio. A melhor resposta é o silêncio e o desdém nacional para a vergonha internacional deles.

(...) René Armand Dreifuss escreveu em 1980 sua tese de doutorado na Universidade de Glasgow com o título: 1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe (Vozes 1981). Trata-se de um livro com 814 páginas das quais 326 de documentos originais. Por estes documentos fica demonstrado: o que houve no Brasil não foi um golpe militar, mas um golpe de classe com uso da força militar.

A partir dos anos 60 do século passado, se formou o complexo IPES/IBAD/GLC. Explico: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC). Compunham uma rede nacional que disseminava idéias golpistas, composta por grandes empresários multinacionais, nacionais, alguns generais, banqueiros, órgãos de imprensa, jornalistas, intelectuais, a maioria listados no livro de Dreifuss. O que os unificava, diz o autor "eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado” (p.163) para que fosse funcional a seus interesses corporativos. O inspirador deste grupo era o General Golbery de Couto e Silva que já em "em 1962 preparava um trabalho estratégico sobre o assalto ao poder” (p.186).

A conspiração, pois estava em marcha, há bastante tempo. Aproveitando-se da confusão política criada ao redor do Presidente João Goulart, tido como o portador do projeto comunista, este grupo viu a ocasião apropriada para realizar seu projeto. Chamou os militares para darem o golpe e tomarem de assalto o Estado. Foi, portanto, um golpe da classe dominante, nacional e multinacional, usando o poder militar.

Conclui Dreifuss: "O ocorrido em 31 de março de 1964 não foi um mero golpe militar; foi um movimento civil-militar; o complexo IPES/IBAD e oficiais da ESG (Escola Superior de Guerra) organizaram a tomada do poder do aparelho de Estado” (p. 397). Especificamente afirma: "A história do bloco de poder multinacional e associados começou a 1º de abril de 1964, quando os novos interesses realmente tornaram-se Estado, readequando o regime e o sistema político e reformulando a economia a serviço de seus objetivos” (p.489). Todo o aparato de controle e repressão era acionado em nome da Segurança Nacional que, na verdade, significava a Segurança do Capital.

Os militares inteligentes e nacionalistas de hoje deveriam dar-se conta de como foram usados por aquelas elites oligárquicas que não buscavam realizar os interesses gerais do Brasil; mas, sim, alimentar sua voracidade particular de acumulação, sob a proteção do regime autoritário dos militares.

A Comissão da Verdade prestaria esclarecedor serviço ao país se trouxesse à luz esta trama. Ela simplesmente cumpriria sua missão de ser Comissão da Verdade. Não apenas da verdade de fatos individualizados; mas, da verdade do fato maior da dominação de uma classe poderosa, nacional, associada à multinacional, para, sob a égide do poder discricionário dos militares, tranquilamente, realizar seus propósitos corporativos de acumulação. Isso nos custou 21 anos de privação da liberdade, muitos mortos e desaparecidos e de muito padecimento coletivo.

Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor

quarta-feira, 4 de julho de 2012

CONFISSÕES DE ESTELA



Em outubro de 2001, nove anos antes de ser eleita presidente, Dilma Rousseff revelou, em depoimento ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais, detalhes do sofrimento vivido nos porões da ditadura em Juiz de Fora. Até então, nem os companheiros de luta sabiam que Estela, seu codinome na militância, tinha sido torturada na cidade mineira, onde ficou encarcerada por dois meses, em 1972. Só era sabido o tempo de prisão em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os documentos, só agora revelados, mofavam em uma sala do conselho e trazem revelações emocionantes da hoje chefe de Estado: "Eles queriam o concreto. "Você fica aqui pensando. Daqui a pouco, eu volto e vamos começar uma sessão de tortura". A pior coisa é esperar por tortura".


Dilma chorou. Essa é uma das lembranças mais vivas na memória do filósofo Robson Sávio, que, ao lado de uma outra voluntária do Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), foi ao Rio Grande do Sul coletar o testemunho da então secretária de Minas e Energia daquele estado sobre a tortura que sofrera nos anos de chumbo. Com fama de durona, moradora do Bairro da Tristeza, Dilma tirou a máscara e voltou a ter 22 anos de idade. Revelou, em primeira mão, que as torturas físicas em Juiz de Fora foram acrescidas de ameaças de dano físico deformador: "Geralmente me ameaçavam de ferimentos na face".


"Fui interrogada dentro da Oban por policiais mineiros que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber meus contatos com Angelo Pessuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga. Eu não tinha a menor idéia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 1969 e isso era no início de 1970. Desconhecia as tentativas de fuga de Angelo Pessuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira, talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata"



"Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para SP, o Albernaz (capitão Alberto Albernaz) completou o serviço com um soco, arrancando o dente"



"..Algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Começava assim: "em 1968 o que você estava fazendo?" e acabava no Angelo Pessuti e sua fuga, ganhando intensidade, com sessões de pau-de-arara, o que a gente não agüenta muito tempo"


"Um dia, a gente estava nessa cela, sem vidro. Um frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois estavam treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o hospital. Tive o "prazer" de conhecer o Comandante General Sylvio Frota, que posteriormente, me colocará na lista dos infiltrados no poder público, me levando a perder o emprego"



"Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (...) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em MG, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas"



"Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida"


ECONOMIA & POLÍTICA
Enviado por Luis Nassif

segunda-feira, 2 de julho de 2012

MEU QUERIDO VLADO


Na próxima quarta-feira, amigo, você fará 75 anos. Por razões alheias à nossa vontade, não vou poder lhe dar os parabéns pessoalmente e assim, aproveito para fazer isso aqui – e contar algumas coisas que aconteceram desde a última vez que nos vimos, numa sexta-feira, 19 de outubro de 1975 – sim, há 37 anos!

Você certamente não ficou sabendo, mas no sábado seguinte, 25 de outubro, um carcereiro chegou diante da grade e chamou meu nome. Eu estava com pelo menos uma dúzia de presos na última cela de um corredor do Doi-Codi em São Paulo, o centro de tortura do regime militar. Todos vestidos com macacões verdes do exército, sem cinto e no meu caso, sem botões também. O fulano abriu a cela, colocou o capuz preto sobre a minha cabeça e começou a me guiar como um cego. Imaginei que pudesse ser uma acareação com outro preso, mais um interrogatório, nova sessão de tortura, quem sabe uma excursão pelas ruas da cidade em busca de outro companheiro. Já passara por tudo isso e por muito mais – até mesmo a insólita saída para batizar Ana, a minha filha (virou atriz), acompanhado por uma equipe com as armas enfiadas em duas sacolas de lona preta. Mas quando o sujeito tirou meu capuz, havia diante de mim uma carteira de fórmica, dessas de escola, com uma espécie de prancheta do lado direito. Sobre ela, uma pilha de papel almaço e uma caneta. Antes de me deixar ali, recebi uma ordem curta e grossa:

- Escreva tudo o que você sabe sobre Vladimir Herzog.

Embora já ganhasse a vida escrevendo há quatro anos, foi meu texto mais difícil. Quase trinta anos mais tarde, encontrei as folhas amareladas no Arquivo do Estado, quando buscava as informações para contar nossa história.

Lembro que nos conhecemos na redação da Folha de São Paulo, em março de 1975, provavelmente. Você assumira a chefia da sucursal do Opinião e queria que eu fosse um dos colaboradores. O jornalzinho era o sonho de consumo, se é que a metáfora se aplica, para os jornalistas que viam a profissão como uma trincheira de luta pela democracia. Não conseguia noticiar quase nada, barrado pela censura, mas se dispunha a fazer o que muito jornalão evitava.

Escrevi umas matérias – um punhado passou pela censura – e substituí você na direção da sucursal, durante uma viagem aos Estados Unidos. Na volta, emprestei uma casinha de praia pra você escrever o roteiro do Doramundo, aquele filme que você queria fazer e o João Batista de Andrade realizou e ficamos amigos. Mas, caramba, você nunca me contou sua história. Nem deu tempo. Fiquei sabendo em 1985, quando escrevi meu primeiro livro sobre sua história e descobri sua infância como refugiado judeu na Itália, vivendo sob nome falso, seu pai fingindo ser mudo para esconder o sotaque iugoslavo, o resto da família indo parar num campo de concentração. Aos oito anos, quando os Herzog chegaram a São Paulo e foram morar na Mooca, o Brasil vivia a abertura democrática. Eu tinha seis anos quando você se preparava para o vestibular e fez um teste no jornal O Estado de S. Paulo. Começou a estudar filosofia, mas já tinha mergulhado no jornalismo. Integrou a equipe pioneira que implantou a sucursal de Brasília. No final de 1962, conheceu Clarice, com quem se casou pouco antes do golpe de 1964. Em 65, com uma bolsa de estudos, você foi trabalhar na BBC e Clarice o seguiu seis meses depois.

Em setembro de 1975, você se tornou diretor de jornalismo da TV Cultura e teve a coragem de me transformar em chefe de reportagem (eu tinha 23 anos, lembra?). Bom, o resto da história, a gente conhece: fomos alvejados por uma campanha destinada a abater o governador Paulo Egydio Martins e, por tabela, o general Ernesto Geisel, que era presidente. Campanha facilitada pela repressão ao Partido Comunista, onde nós dois militávamos, em posições secundárias e acreditando que era um caminho para reconquistar a democracia e construir um Brasil socialista e livre.

Naquele sábado, 25 de outubro, os militares do Doi-Codi reuniram os jornalistas que estavam presos e nos disseram que você tinha se suicidado e que era agente da KGB! Ninguém aceitou a ideia e para provar que choque não mata ninguém, me fizeram acionar a máquina chamada pimentinha com um torturador segurando os fios. No dia seguinte, fomos soltos temporariamente para ir ao seu enterro. Tinha muita gente, todos chocados.

Voltamos ao Doi-Codi e dali para o DOPS, onde ouvimos os policiais treinando tiro para reprimir o culto ecumênico que aconteceu na catedral da Sé. Primeira grande manifestação contra a tortura, resultado da ação de dom Paulo Arns, do rabino Henry Sobbel e do reverendo James Wright, com respaldo do Sindicato dos Jornalistas, de estudantes e políticos da oposição.

Depois disso, amigo, muita coisa aconteceu. Um inquérito armado pelo governo e manipulado concluiu que você se matara, apesar de todas os depoimentos em contrário. O general Geisel demitiu o comandante do II Exército quando outro comunista desimportante, o operário Manoel Fiel Filho foi “suicidado” no Doi-Codi. O problema do presidente era a desobediência, não a tortura.

Clarice entrou com uma ação na Justiça e provou que o Estado era responsável pela sua morte. Não pediu indenização, só justiça. Houve a anistia, os exilados voltaram e com eles, as eleições diretas para governador – a oposição ganhou em dez estados. A campanha das diretas parou o país e se não acabou com o colégio eleitoral, garantiu a eleição indireta do Tancredo Neves, que morreu antes da posse. José Sarney virou presidente, fez a Constituinte e em 1989, elegemos um certo Fernando Collor, de que você nunca ouviu falar. Acabou saindo pelo impeachment.

Fernando Henrique, que era do conselho editorial do Opinião virou presidente, foi reeleito e passou a faixa para o Lula (lembra?) que também governou oito anos e foi sucedido por uma ex-guerrilheira, Dilma Roussef, que afinal criou a Comissão da Verdade para apurar casos como o seu e tantos outros menos conhecidos.

Seu filho Ivo criou o Instituto Vladimir Herzog, para valorizar a liberdade de imprensa e os direitos humanos. Está fazendo um belo trabalho de resgate da história dos jornais alternativos e uma programação de festa pelos seus 75 anos. Quando lembro dele e do André garotinhos, me sinto meio velho. André trabalha em Washington no Banco Mundial com políticas públicas para Ásia e África. Clarice vai muito bem, obrigado.

O Brasil também vai bem. Não tanto quanto sonhamos, mas muito melhor do que no tempo em que convivemos. A democracia tem seu valor, apesar (ou por causa) das denúncias e das CPIs, que não existiam na ditadura. Ah, vivo parte do tempo em Florianópolis. Escrevi uns livros, fiz uns documentários e fui presidente da TV Cultura. Mas um dia conto como foi essa experiência.
Abraços, saudades e parabéns

Paulo Markun


sábado, 30 de junho de 2012

A TORTURA NO BANCO DOS RÉUS 03



Em julho de 2011 postamos aqui no Blog dois textos, “A Tortura no Banco dos Réus 01 e 02”, sobre o caso envolvendo a morte sob tortura do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino e do julgamento do coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Acompanhamos o julgamento e informamos abaixo o seu resultado:


A Justiça paulista condenou, em primeira instância, o coronel reformado do Exército e ex-comandante do DOI-Codi, Carlos Alberto Brilhante Ustra, a indenizar a companheira e a irmã do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto em 1971.

Cada uma delas receberá R$ 50 mil e Ustra terá ainda de arcar com o pagamento de custos e despesas processuais.

Merlino morreu quando estava preso no DOI-Codi. À época, a versão oficial oferecida pelos agentes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) foi de que ele teria se suicidado enquanto era transportado para o Rio Grande do Sul, para lá reconhecer colegas militantes de esquerda, se jogando à frente de um carro que trafegava pela rodovia.

As condições do corpo da vítima e relatos de outros presos políticos mostraram, no entanto, que Merlino fora severamente espancado.

Merlino foi membro do Partido Operário Comunista (POC) e da Quarta Internacional. Foi preso em 15 de julho de 1971 e levado para a sede do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Na época, o DOI-Codi era comandado por Ustra, onde Merlino foi torturado por cerca de 24 horas e morto.

Na sentença, a juíza justificou a decisão. “Evidentes os excessos cometidos pelo requerido [Brilhante Ustra], diante dos depoimentos no sentido de que, na maior parte das vezes, o requerido participava das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes e as várias opções de instrumentos utilizados”.

“Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante daquela unidade militar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensado aos presos políticos. É o quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz Eduardo e pela morte dele que se seguiu”, acrescentou.

De: Agência Brasil / Notícias




Mais do que qualquer indenização, a família buscava o reconhecimento da morte sob tortura que foi durante todos esses anos encoberta, pelo suposto suicídio e ainda que Brilhante Ustra fosse reconhecido como torturador.
Nada trará de volta Luiz Eduardo e nenhum outro jovem torturado até a morte pela Ditadura Militar, mas é necessário fazer justiça à sua Memória.
Quando preso, em casa pelo DOI-Codi, ele disse à sua mãe que voltaria logo. Não o deixaram voltar.
Mas, volta agora a sua história, como herança dessa geração e como um símbolo contra a tirania.

Prof. Péricles

quarta-feira, 27 de junho de 2012

O AUSCHWITZ DA DITADURA BRASILEIRA


A atual história política do Brasil é pródiga em exemplos de que os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de corpos que a ditadura militar cometeu acabam em boa parte denunciados por aqueles que fizeram o trabalho sujo – é o porão a implodir o arranha-céu do horror que se construiu com o golpe de 1964 e perdurou até a redemocratização em 1985.

Foi assim com os cadáveres de guerrilheiros que se opuseram ao regime de exceção, enterrados em cemitérios clandestinos – os agentes os sepultavam com nomes frios, mas escreviam nos laudos, com letra miúda, os nomes verdadeiros. Foi assim também nos próprios tribunais militares nos quais juízes consignavam que o réu fora torturado, embora não movessem um dedo contra isso. Pôr tudo no papel e fazer valer o que está escrito faz parte da tradição cartorial luso-brasileira.

O livro “Memórias de uma Guerra Suja”, que acaba de ser lançado, confirma em um ponto essa regra ao trazer na primeira pessoa o depoimento inédito, surpreendente e estarrecedor do ex-delegado da repressão Cláudio Guerra. Ele revela que houve no Brasil uma espécie de campo de Auschwitz (referência ao mais famoso campo nazista de extermínio e cremação de judeus) onde corpos de guerrilheiros mortos sob tortura em São Paulo e no Rio e Janeiro foram incinerados.

Em outro ponto, no entanto, o da tradição de que tudo se escreve, Guerra, 71 anos, quebra a regra: não anotou absolutamente nada e, assim, a denúncia que faz se baseia em sua memória e em sua palavra. “Ele é o mais importante dos agentes da repressão que falaram até agora, e, de fato, tem informação”, disse à ISTOÉ o ex-deputado e um dos mais atuantes advogados de ex-presos políticos Luiz Eduardo Greenhalgh. “E esse também é o momento mais importante para alguém falar porque a Comissão da Verdade está prestes a funcionar.”

Há quase quatro décadas familiares e organizações de direitos humanos trabalham para descobrir os corpos, por exemplo, de David Capistrano da Costa, dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e Ana Rosa Kucinski Silva, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). É o ex-delegado quem agora afirma: “Não adianta procurar, eles foram incinerados.” Por quem? Pelo próprio depoente.

O mesmo fim, segundo o livro de autoria dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, tiveram, entre outros, os cadáveres de Wilson Silva, João Massena Mello, José Roman e Joaquim Cerveira.

O forno do Auschwitz da ditadura, de acordo com Guerra, funcionou a partir de 1973 na usina de açúcar Cambahyba, com a anuência de seu ex-proprietário, o então vice-governador do Rio de Janeiro Heli Ribeiro. Localizava-se em Campos dos Goytacazes. Diz Guerra: “Eu me lembro muito bem de um casal, Ana Rosa Kucinski Silva e Wilson Silva (...) Eu e o sargento Levy, do DOI... fomos levar seus corpos à usina. A mulher apresentava muitas marcas de mordidas pelo corpo, talvez por ter sido violentada sexualmente. Wilson não tinha as unhas da mão direita. Tudo leva a crer que tinham sido torturados.”

Sobre Capistrano e Massena, assim está na obra: “Eu me lembro bem de dois senhores que peguei na Casa da Morte e levei para a incineração na usina. Um deles me marcou muito, porque lhe haviam arrancado a mão direita (...) resultado de tortura impiedosa.

Dirigente histórico do PCB e ex-combatente da Resistência francesa na Segunda Guerra Mundial, Capistrano desapareceu nas mãos da repressão em 1974. Sabe-se concretamente que foi preso no centro de São Paulo (rua 24 de Maio) e hipoteticamente que teria sido morto no Dops, ou no Manicômio Judiciário, ou ainda no Hospital Juqueri (ambos na cidade de Franco da Rocha). Reforça a tese de incineração apresentada por Guerra o fato de o corpo ter sido exaustivamente procurado e nunca localizado. Enfraquece-a, no entanto, outro ponto: o fato de Guerra (assim como informantes anteriores) não apresentar nenhuma prova além de dizer “era David Capistrano”.

“Todas as informações devem ser levadas em consideração, mas elas têm de ser rigorosamente investigadas”, diz Greenhalgh. “Muitos já deram contra-informações.” “Esse Cláudio Guerra é um doido”, disse Maria Cecília Gomes, filha do ex-proprietário da usina. “Nossa família vai acionar a Justiça contra esse ex-delegado. Vai ter de provar o que falou.”

Irmão de Ana Rosa, o escritor Bernardo Kucinski chega a considerar que o objetivo de Guerra pode ser o de “afrouxar as buscas pelos restos mortais dos desaparecidos”.

Se Guerra presta um serviço ou desserviço à história, isso o futuro dirá. No presente, porém, as suas revelações têm de ser consideradas. Isso no plano social. No campo individual, elas até podem aplacar a sua consciência, como ele próprio justifica, uma vez que se tornou evangélico quando esteve preso por ligação com o crime organizado no Espírito Santo, mas não amenizará a possibilidade de ser imediatamente processado pelo Ministério Público por ocultação e vilipêndio de cadáver – apenas a sua palavra de que não adianta mais procurar pelos corpos de Ana Rosa e Capistrano não o livra de responder pelo crime imprescritível de seqüestro continuado, como determinou o STF.

“O livro trata de pessoas incineradas. Depois da tortura, não sobrou mais nada. É terrível”, disse Marcelo Netto. “Foram três anos para escrevê-lo, entre convencimento, entrevistas e redação.”

No atual governo federal leram o livro em primeira mão a presidenta da República, Dilma Rousseff, a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, e o ministro da Justiça,José Eduardo Cardozo. Sabe-se que a presidenta o considerou uma peça histórica importante para o estabelecimento da verdade sobre a morte e o desaparecimento de cidadãos durante o mais obscurantista período da vida política brasileira.

Isto é – Brasil Edição 2217
Antonio Carlos Prado