(releitura de “Pintores
da Noite” de dezembro/2011 cujo link apresentou problemas e teve que ser
deletado)
Ela olhou pra mim como
quem está prestes a fazer uma grande revelação: “sabe, eu nunca te contei, mas,
detesto cachorros”.
Comecei a rir baixinho do
seu jeito cerimonial. Mas o riso foi crescendo e ela, escorando a testa no meu
ombro foi me acompanhando, e quando vimos as gargalhadas já eram cúmplices e
incontidas.
Ergui os olhos para as
estrelas e perguntei pra uma delas: mas do que mesmo estou rindo?
Do fato de estar
pendurados no alto de um poste numa dessas madrugadas de Porto Alegre?
Seria da escada velha que
rangia e que ainda por cima se mantinha mal equilibrada, inclinada entre o muro
da calçada e o poste por dentro do terreno?
Talvez fosse dos dois
cachorros furiosos que babavam de ódio por não poder nos alcançar e que
ansiavam para que aquela escada velha se partisse.
Seria só do jeito de
madame daquela guria com cola nos ombros e tinta na testa me sussurrando ter
medo de cachorros?
Até hoje não sei, mas,
eram tantas coisas que não sabíamos naqueles dias furiosos.
Tantas coisas que
precisavam de respostas e tantas respostas que procuravam perguntas, que não
valiam à pena perder muito tempo.
Só sei que nossas
gargalhadas calaram os cachorros como se nem eles entendessem, afinal, qual era
a graça de situação tão grotesca.
Quando paramos de
sacolejar de tanto rir, a escada diminuiu seu rangido, e o silêncio nos lembrou
a necessidade de continuar a gloriosa tarefa de prender no poste, com arames
pouco resistentes, mais uma placa com nossas mensagens.
Mensagem? Não era só
isso. Havia em cada placa um sentimento de resistência e onipotência, acalentado
por tantos sonhos velhos e antigos sonhados por tanta gente!
Descemos altivos diante
da indignação dos cachorros e recolhemos o material restante, pois era preciso
ter pressa, pois outros postes nos esperavam, outros cachorros talvez, e com
certeza, o sol, não demorava.
A polícia odeia a hora
entre o fim da madrugada e o início da manhã. É quando encerram suas rondas.
Os cachorros odeiam
escadas e ela odiava cachorros.
E eu achava graça. Uma
graça que carecia de argumentos, mas que transbordava de dor e de energia.
Que nos importam os
vadios da madrugada que vagueiam embriagados? Ou os loucos das calçadas como o
Imperador, um velho amigo de insânia, morador das calçadas da Av. Independência.
Não eram com certeza mais
embriagados ou mais loucos dos que carregam escadas e sonhos.
Lá, em cima do poste,
vendo a cidade “do alto” a gente desafiava a repressão, os medos, os ventos do
inverno, os cachorros e o destino.
Cá embaixo o bom senso
nos desafiava a pensar mais um pouco e a tomar um café amargo diante da friagem
insensível.
Às vezes, virávamos
artistas e pintávamos muros.
Muros estreitos e largos.
Inteiros e lascados. Muros simpáticos e taciturnos. De casas, de cemitérios, de
colégios. Muros de ruela e de avenidas.
Tinta vermelha de cheiro
forte, artesanal, feita por nós mesmos, em balde que abraçávamos para que não
derramasse enquanto a velha kombi sacudia sobre as ruas de uma Porto Alegre
adormecida.
Pintávamos palavras de
ordem. Pintávamos declarações de guerra e de amor.
Cada um de nós era um
Picasso pintando Guernica.
Mas, ao contrário de
Picasso, não podíamos assinar nossas obras.
Mas no outro dia.. ah no
outro dia ninguém podia impedir nosso orgulho de ver expostas nos muro da
cidade em cores fortes com a tinta que ainda nos fedia, o nosso trabalho
noturno.
“Depressa”, dizia em
silêncio ao mundo, “leiam antes que apaguem”.
Talvez seja assim mesmo. Quando
nos tiram os livros inventamos arte.
Quando nos tiram as
montanhas, escalamos escadas que rangem.
Quando nos tiram
oportunidades descobrimos talentos, e somos Picassos que pintam Guernicas com
tinta barata em muros estreitos.
Quando nos tiram a graça
rimos de nós, rimos a sós, e rimos das dores.
É quando pintamos nossa
história, com tintas próprias para a alma e não para os muros carrancudos.
Pinturas que jamais se
apagam da memória.
Prof. Péricles
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