quarta-feira, 16 de setembro de 2015

ÍNDIO NÃO É GENTE OU É INVISÍVEL?



Por José Ribamar Bessa Freire


“When a dog bites a man that is not news,
but when a man bites a dog that is news”.
(Charles A. Dana, jornalista americano)

Foi isso que aprendemos no Curso de Jornalismo da UFRJ, assim mesmo, em inglês.

Se um cachorro morde um homem, isso não é notícia, acontece sempre, mas se um homem morde um cachorro, aí sim, é notícia. Notícia é a novidade, o inusitado.

Tal lição importada dos Estados Unidos era ensinada, em 1966, pelo nosso professor Danton Jobim, autor do Espírito do Jornalismo, um espírito de porco que continua baixando ainda hoje nas redações, especialmente se o mordido for um índio e não o filho do dono do jornal.

No domingo vasculhei os dois jornais que assino – um do Rio, outro de São Paulo – para confirmar a notícia dos disparos feitos no sábado (29/8) por pistoleiros pagos que mataram o guarani-kaiowá Simeão Vilhalva, 24 anos, e feriram dez outros índios, incluindo crianças da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu (MS).

Nada encontrei. “Não houve tempo hábil de noticiar” – pensei, já que a edição dominical dos jornais fecha cedo no sábado e o corpo de Semião foi encontrado por volta das 15h, no córrego Estrelinha, onde foi atingido na cabeça quando bebia água.

Esperei a segunda-feira e passei um pente fino nos dois jornais. Inútil. Sequer uma notinha. O velório com as rezas de despedida, o caixão sobre banco de madeira ao lado de um galpão, o choro dolorido do filho e da esposa Janaína só apareceram nas redes sociais. A mídia nacional ignorou olimpicamente as mordidas dos “cães raivosos” do agrobanditismo, considerando, afinal, que aquilo não era novidade. Novidade seria se um índio mordesse um desses “cachorros”.

Se índios são assassinados sistematicamente nos últimos cinco séculos, isso é tão corriqueiro que deixou de ser notícia, assim como não é notícia o motivo pelo qual se mata: disputa por terra. No caso, esta área indígena demarcada e homologada pelo presidente Lula, em 2005, teve a homologação suspensa pelo ministro do STF Gilmar Mendes a pedido dos fazendeiros que a ocuparam ilegalmente. Permanece engavetada até hoje, alimentando o conflito, que é silenciado pela grande mídia, mas que bombou nas redes sociais em compartilhamentos indignados.

Os dois jornais de circulação nacional não deram uma vírgula ao longo da semana sobre os desdobramentos do crime: velório, enterro, protestos, ação policial e ministerial. Na terça, negaram aos seus leitores a notícia sobre o enterro. Lá poderiam entrevistar a professora guarani-kaiowá Inaye Gomes Lopes, testemunha do crime: “Houve massacres em dois lugares. Um na fazenda de Roseli, presidente do Sindicato Rural e o outro na fazenda de Dácio Queiroz, onde ocorreu a morte. Os fazendeiros com os pistoleiros deles chegaram atirando”.

Quarta-feira, nas redes sociais circularam notas de protestos de várias entidades, entre outras a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), a Articulação de Povos Indígenas do Brasil (APIB), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), além de uma Carta Aberta dos Servidores da Funai de Campo Grande/MS, mas os dois jornais de circulação nacional nem seu souza.

Se a morte de Semião não foi noticiada, como publicar notas exigindo a punição dos assassinos?

As notas lembraram outros líderes assassinados como Marçal de Souza e Dorvalino Rocha, condenaram a ação planejada dos ruralistas em ataque paramilitar premeditado, denunciaram o uso de munição própria das forças de segurança pública e exigiram o julgamento dos mandantes e dos executores, além da regularização da terra. O líder guarani Anastácio Peralta disse que Mato Grosso do Sul virou “o maior faroeste, o país perdeu a soberania, quem manda lá é pistoleiro e fazendeiro.

Um boi vale mais que uma criança. Eles matam nós como animais”.

Comparando as redes sociais com o silêncio da mídia, fica claro que noticia, na realidade, é aquilo que os jornais não publicam, o resto é propaganda, matéria paga.

Desconfio que não vou renovar minha assinatura dos dois jornais, transformados em panfletões dos donos da grana.

Eles contribuem para a invisibilidade dos índios no cenário nacional. A publicação dos fatos certamente evitaria outros crimes.

Diante do silêncio “se faz um nó na garganta e se espalha em vários nós por todo o corpo” – como sinaliza Graciela Chamorro, que conclama:

– Em nome de A Bondade de Nosso Pai, quem escreve, escreva; quem canta, cante; quem toca, toque; quem pinta, pinte; quem reza e ora, reze e ore; quem prega, pregue; que os operadores do direito operem com justiça para que a impunidade dos crimes cometidos contra indígenas tenha um ponto final.



José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti.

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