quinta-feira, 16 de abril de 2015

MORTE, UM CASO DE VITÓRIA



Por Liszt Rangel

Apesar de fazer muito tempo... Eu nunca mais esqueci de dona Juliete, 68. Ela chegou e se apresentou após uma palestra. Pelos olhinhos inquietantes, estava querendo muito falar. Mas depois que começou a sua narrativa, o seu rosto pesou e foi visível a sua tristeza. Fora diagnosticada com câncer na tireoide, um tumor do tamanho de um pequeno limão. Os médicos não lhe deram mais do que entre 4 e 8 meses, após tratamento. Foi aí que ela me perguntou:

- Que faço?
Eu lhe respondi: - o melhor!
Ela me disse: - Não sei o que é o melhor?
Eu lhe esclareci: - Aquilo que nos faz bem, que nos deixa leves, livres...
- Mas não há mais tempo, - obtemperou ela.
Eu lhe respondi sorrindo, para provocá-la (sim, porque, muitas vezes, as pessoas precisam ser provocadas através de um choque), - A senhora ainda tem quatro meses, e eu posso ter apenas doze horas!
- Como assim? - indagou ela.
- Posso sair daqui e sofrer um acidente de carro ou infarto, esclareci.
- Meu Deus, que horror! Falou ela
- A diferença entre nós dois, dona Juliete, é que a senhora já comprou o bilhete do trem e daqui há quatro meses se o trem não atrasar, a senhora vai viajar. Quanto a mim... não sei quando vou, serei pego de surpresa e isto não é bom, porque chegamos na estação sem mala alguma.

Ela pôs-se a chorar. Quando parou, disse-me que tinha duas grandes mágoas da vida.

"Eis o problema, - pensei comigo - guardamos comida podre na geladeira e depois perguntamos porque adoecemos. É claro comemos coisas estragas por muito tempo, o que há de se esperar?"

Então, perguntei:

- Quais mágoas?

A primeira foi relacionada ao marido que a traía com a sua melhor amiga! Durou mais de 30 anos.

A segunda mágoa era da filha que a maltratava em casa...

Eu fiquei calado, pensando o que diria àquela mulher que podia ser minha mãe. Sabe, não é fácil falar a quem está perdendo na vida, porém admito que o pior é não mostrar ao outro o quanto ele está perdendo, o desafio é maior, é tentar apresentar a ele uma nova perspectiva de vitória, aprender a se tornar melhor com a dor ao invés de arrastar toda a família para uma crise existencial e repetitiva de doenças. Para mim, é tudo ou nada! Não aceito pessoas indiferentes! Como diria o estranho Paulo de Tarso, "quente ou frio, nunca morno!" Então, não dá para ficar assistindo e ainda aplaudindo o espetáculo do horror! Ela estava doente e não importava agora a origem de sua dor, apesar de haver a possibilidade na mágoa, na simbologia do "nó preso na garganta" estar relacionada à doença. Segundo, a psicossomática esta energia retida, traumatiza o corpo, adoece e pode matar!

Então, tomei coragem e lhe perguntei: - a senhora acredita em algo em sua vida? Ela me disse que sim, que acreditava em uma vida além da morte. As pessoas precisam ser respeitas em suas crenças e convicções, até porque muitas vezes foi nelas que elas se agarraram e até se alienaram.

Aproveitando esta deixa, falei:

- Bem, para a senhora, se a vida continua o que nos interessa agora e no além não é porque a senhora sofre, mas como a senhora vai enfrentar a dor e a morte. Porque sejamos honestos dona Juliete, aqui ou acolá a senhora deve se preocupar com o COMO e não com o porquê. Se eu e a senhora vamos morrer, então como ficaremos no mundo dos mortos é o que nos interessa. A senhora não acha? Ela balançou positivamente a cabeça...

Agora foi a vez dela me perguntar:

- E como devo então me livrar deste peso da mágoa?

- Primeiramente, respondi-lhe, dialogue com quem lhe magoou. Exponha a quem lhe fez mal, suas queixas para dar ao outro a oportunidade de seu arrependimento e de sua tranquilidade ao abrir-se para o perdão. Caso ele não lhe perdoe, o problema será dele, mas a senhora seguirá mais leve. É preciso se perdoar, dar-se uma chance de verdade para ser feliz e não aquela pela metade em que se fica sabotando.

Ela então, me deixou em uma encruzilhada ao me dizer:

- Mas meu marido já morreu!

- Então, se a senhora sabe que a morte não existe, está na hora das preces e orações que a senhora faz, e nelas começar a dialogar com ele, não ruminando o passado, mas tentando uma reconciliação, um diálogo honesto, com seu coração transparente.

Este é um grande problema que temos. Maliciosos, não somos mais como as crianças, transparentes. Estamos acostumados a ser vistos com crítica e com isso, passamos a representar. Então, lhe dei um reforço na ação:
- Converse com seu Antônio, dona Juliete, pois será melhor que a senhora fale com ele agora do que após a morte. E ele se apresentar na estação para receber a senhora descendo do trem...?

Ela sorriu e me disse, Deus me livre...

Porém ela prometeu se esforçar... Iria dialogar com a filha problemática, falar-lhe das mágoas..., ou seja, ela iria libertar-se das amarras do ressentimento. E eu fiquei torcendo por ela. Porque torcer pela vitória do outro, é torcer pela nossa, pois ele em sua capacidade de superação pode nos ensinar e muito.

Porém dona Juliete, sumiu...

Cinco meses depois ela entrou no salão em que eu acabara de realizar uma palestra. Tomei um grande susto, pois já havia passado o prazo de validade de vida dela e eu a estava vendo. Apavorei-me, achando que ela tinha vindo me cobrar algo do além...

Ela me abraçou e me disse bem feliz, o tumor sumiu! Os exames mostram isso.

Eu chorei ao seu lado. Nos abraçamos demoradamente... E antes que ela se fosse, me disse que havia ficado livre das mágoas, e que agora eram apenas cicatrizes da vida. Então, eu lhe disse:

- Certa feita eu conheci um médico que escreveu um livro maravilhoso e gostaria de lhe dar de presente.

Eu lhe ofereci o livro do Dr. Marco Aurélio, intitulado, "Quem ama não adoece".

Mas na saída lhe disse:

O Dr. Marco Aurélio, adoeceu e morreu, viu dona Juliete!

Ambos sorrimos. Acho que sorrimos do inevitável. A morte! Às vezes é bom dar uma gargalhada para ela... mostrar-lhe que ela não nos assusta.

Quase dois anos depois, recebi a notícia da morte de dona Juliete. Foi dormindo, uma parada cardíaca. Ela se foi e nunca mais a esqueci. Para mim, ela venceu não apenas a doença, mas a morte, pois tornou mais bela e digna a sua vida e tornou tranquilo o seu morrer!

Dona Juliete antes de curar o corpo, curou a alma...



Nenhum comentário: