domingo, 10 de novembro de 2013
MAIS ÁRIDO QUE O SAARA
O Niger (não confundir com Nigéria), é um lindo país na região norte da África. Lindo, mas verdadeiro inferno para a imensa maioria de seus 11 milhões de habitantes (população do Rio Grande do Sul).
Em 2010 a ONU classificou o Niger com a antepenúltima posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
Desde sua independência da França, em 1960, o país é palco de lutas intermináveis pelo poder. Os principais atores dessa guerra são, por um lado, o exército e algum ditador de plantão e do outro os Tuaregs, povo berbere habitante original do deserto do Saara.
Em 2010 uma junta militar derrubou o presidente que governava o país há mais de dez anos e estabeleceu uma administração que tem batido de frente com os berberes e isso tem levado a uma lógica perversa: o exército mata tuaregs e os tuaregs matam membros de outras etnias como vingança.
É muito difícil viver no Niger e muito fácil morrer em suas lindas terras. Talvez, por isso, se reze tanto. Cerca de 9 milhões rezam para Alá, são muçulmanos sunitas, e os outros 2 milhões rezam para o Deus cristão e uma infinidade de outros deuses de cultos locais.
Para a maioria desse sofrido povo, o Éden, o Paraíso sobre a terra, é a Europa, com seus salários imaginários, suas ruas e suas cidades sem tuaregs.
Para chegar na Europa é necessário juntar economias para subornar pessoas e pagar serviços. Partir, em alguma noite qualquer, percorrer o norte do Niger sem ser morto ou localizado pelo exército, atravessar o deserto do Saara e chegar vivo na fronteira da Argélia. Depois, basta não ser preso pelo militares argelinos (o suborno geralmente é um ótimo argumento) e negociar com algum agenciador a travessia clandestina do mediterrâneo até chegar ao sul da Europa (principalmente França). Deve-se ainda ter o cuidado de não morrer afogado, vítima de algum naufrágio, tão comum em barcos super lotados e clandestinos e não ser preso pela Guarda-Costeira francesa, pois te mandam de volta ou te jogam numa cela imunda reservada para imigrantes ilegais.
É preciso não morrer muitas vezes e por isso se reza tanto e se espera que Deus seja poliglota...
No início desse mês, um grupo de 102 criaturas iniciou sua via crucies. Era composto por 37 mulheres, 48 crianças e 17 homens. Seu transporte seria feito por dois velhos e sofridos caminhões que muito já viram desse mundo.
Venceram alguns quilômetros e entraram no Saara, que em sua parte sul começa em território do Niger.
O Saara é o maior deserto do mundo, maior que o Brasil (9 milhões de km2). Um verdadeiro ínferno onde as chuvas são extremamente raras e as temperaturas podem chegar a 53º C durante o dia e –5º C à noite. Não é, portanto, um bom lugar de passeio ou de turismo. Melhor mesmo é evitá-lo por ser um dos piores anecúmenos de nosso planeta.
Mas, quem é pobre, vem do Niger é quer chegar na Argélia, e quer atravessar o Mediterrâneo, e quer chegar na Europa, e lá começar uma nova vida, não existe opção, pois o “grande demônio” está bem no meio do seu caminho e de seus sonhos.
Alguns dias depois de iniciada a viagem, presumivelmente, cerca de 40 km da fronteira com a Argélia, um dos caminhões quebrou. O pânico se estabeleceu. O que fazer? A decisão tinha que ser rápida e foi tomada naquela noite mesmo: um grupo, formado pelos homens, seguiria no caminhão restante em busca de ajuda. O outro grupo (de crianças e mulheres) racionaria a água e tentaria sobreviver até chegar o socorro. Era o fim de seus sonhos, seriam presos e teriam que retornar pra casa, mas, melhor assim do que morrer.
Antes do amanhecer se puseram a caminho. O grupo que ficou logo percebeu que não poderia permanecer no local onde nada encontrariam de útil. Melhor seguir a pé em busca de algum oásis, ou de um milagre.
Vinte quilômetros à frente, o segundo caminhão também quebrou e nada seria capaz de repará-lo.
O que se seguiu foi um roteiro de horror. Os dois grupos, separados, definharam numa lenta agonia em que os olhos se turvam e a alma escapa pelos poros indiferente aos esforços para mantê-la.
A morte pela sede é terrível, pois todo o corpo vai secando, como se estivesse numa gigantesca panela sendo cozido.
A sede é interminável e torturante, os rins param de funcionar e líquido que expele é escuro e concentrado de um forte odor; a pele vai ressecando, dobrando, rachando, mas, não perde a sensibilidade da dor; os olhos secam e piscar se torna uma tortura, a boca também seca (xerostomia); a dor de cabeça é lancinante, pior que a pior das enxaquecas. Curiosamente, os pés e as mãos ficam úmidos, a tontura dá lugar a confusão mental e a morte, quando chega já é muito desejada.
O exército do Niger seguiu as pistas deixadas pelo terror. Primeiro encontraram 5 corpos de mulheres, provavelmente as mais fragilizadas e doentes, que resistiram menos que os outros. Depois passaram a encontrar corpos de criança e de mulheres espalhados por uma trilha interminável. Quando pensaram ter encontrado todos os corpos surgiram os mortos do segundo caminhão. Os últimos mortos estavam apenas a 10 km da Argélia.
Foram 92 mortos, 37 mulheres, 48 crianças e 7 homens adultos. A única voz que se ouvia era a voz monótona do vento seco do Saara sobre os corpos ressequidos.
Quem são os culpados por essa terrível tragédia humana?
O governo intolerante do Niger e seu exército violento? Os tuaregs? A Europa que tenta fechar as portas para os imigrantes? A mesma Europa que nos séculos XIX e XX dividiu entre si a África saqueando seus recursos naturais, suas riquezas e por fim criando fronteiras falsas, que geraram as guerras etnicas? Ou todos nós que por estarmos distantes temos a África do Niger como outro planeta e seu povo, feito da mesma matéria que nós, como et’s?
Uma resposta é muito difícil, e talvez, desnecessária e inútil diante da grandeza da tragédia.
Certo é que é fácil morrer no Niger, um lugar onde se reza muito, onde se vive pouco, e onde se pode comprovar que o único lugar mais árido que o Saara é o coração humano.
Prof. Péricles
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