quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A FILHA ESCONDIDA DE AUSCHWITZ


Por Thomas Harding


Vive na zona de Washington desde 1972. Mas ainda não contou a sua
história aos netos: o seu pai era Rudolf Höss, o Kommandant de
Auschwitz e aquele que concebeu e construiu o campo, transformando-o
numa máquina de morte capaz de assassinar duas mil pessoas numa hora.

Desde 1972 que Brigitte Höss vive discretamente numa rua arborizada e
pouco central da Virgínia do Norte.
Foi Rudolf Höss quem concebeu e construiu Auschwitz a partir de umas
casernas velhas na Polónia, transformando-as numa máquina de morte,
capaz de assassinar duas mil pessoas numa hora. No final da guerra,
1,1 milhões de judeus tinham morrido no campo, juntamente com 20 mil
ciganos e dezenas de milhares de polacos e presos políticos russos.
Como tal, o pai de Brigitte foi um dos maiores assassinos em massa da
História.

Durante cerca de 40 anos, ela manteve o seu passado longe dos olhares
públicos, e por analisar. Nem sequer partilhou a sua história com os
familiares mais próximos.

Quando o assunto Holocausto é abordado, desvia a conversa. "Se alguém
me pergunta sobre o meu pai, digo que morreu na guerra."

Mas ela acabou de fazer 80 anos e interroga-se se não está na altura
de contar aos netos o seu passado. Foi uma jovem apanhada nas
forças épicas de uma história que ela pouco conseguia entender, muito
menos ser responsabilizada por ela. Será agora a altura de digerir a
sua história familiar? Irá acabar com o medo de ser descoberta que a
perseguiu durante toda a sua vida? Ou irá levar a sua história para o
túmulo?

De acordo com os registros do pessoal das SS - que estão nos Arquivos
Nacionais em College Park -, Inge-Brigitt Höss nasceu a 18 de Agosto
de 1933, numa quinta perto do Mar Báltico. O seu pai, Rudolf, e a sua
mãe, Hedwig, conheceram-se nessa quinta, que era um paraíso para os
jovens alemães obcecados com idéias de pureza de raça e utopia rural.
Brigitte foi a terceira de cinco irmãos.

Brigitte teve uma infância extraordinária, mudando de uma quinta para
um campo de concentração a seguir a outro à medida que o pai subia na
hierarquia das SS: Dachau até aos cinco anos, Sachsenhausen entre os
cinco e os sete; e dos sete aos onze, no campo de morte mais famoso de
todos, Auschwitz.

Entre 1940 e 1944, a família Höss vivia numa vivenda de dois andares
em estuque cinzento no limiar de Auschwitz - tão perto que da janela
do andar de cima dava para ver os barracões da prisão e o velho
crematório. A mãe de Brigitte descrevia o sítio como "um paraíso":
tinham cozinheiros, amas, jardineiros, motoristas, costureiras,
cabeleireiras e mulheres de limpeza, alguns dos quais prisioneiros.

A família decorou a casa com mobília e obras de arte roubadas aos
prisioneiros quando eram selecionados para as câmaras de gás. Era uma
vida de luxo que se desenrolava a poucos passos do horror e do
tormento. Quase todos os domingos, o Kommandant levava às crianças a•verem os cavalos aos estábulos. Adoravam ir aos canis fazer festinhas
nos pastores alemães.

Em Abril de 1945, quando o fim da guerra já estava à vista, Rudolf
Höss e a família fugiram para o Norte. Separaram-se. A mulher ficou
com as crianças e refugiou-se por cima de uma antiga fábrica de açúcar
em St. Michaelisdonn, uma aldeia perto da costa. O Kommandant assumiu
a identidade de um trabalhador e escondeu-se numa quinta a 6,5
quilômetros da fronteira dinamarquesa. A família Höss ficou à espera
do momento certo para fugir para a América do Sul.

"Lembro-me de quando eles vieram a nossa casa fazer perguntas", diz,
com a voz firme. "Estava sentada à mesa com a minha irmã. Tinha cerca
de 13 anos. Os soldados britânicos não paravam de gritar: "Onde está o
teu pai? Onde está o teu pai?”Fiquei com umas dores de cabeça
terríveis. Fui lá para fora chorar, debaixo de uma árvore. Obriguei-me
a acalmar. Obriguei-me a parar de chorar, e a minha dor de cabeça
desapareceu. Mas depois disso tive sempre enxaquecas. Essas enxaquecas
pararam há alguns anos, mas, desde que recebi a sua carta, voltei a
tê-las."

O Kommandant foi a primeira pessoa com uma posição elevada na
hierarquia a admitir a extensão da chacina em Auschwitz. Foi entregue
aos americanos, que o fizeram testemunhar em Nuremberg. Depois, Höss
passou para os polacos, que o processaram e o enforcaram num cadafalso
ao lado do crematório de Auschwitz.

Na década de 1950, Brigitte conseguiu deixar a Alemanha e começar uma
vida nova em Espanha. Era uma jovem deslumbrante, com cabelo loiro
comprido, uma figura esbelta e uma atitude do tipo "não te metas
comigo". Trabalhou como modelo durante três anos com a emergente casa
de moda Balenciaga. E conheceu um engenheiro americano que trabalhava
em Madrid para uma empresa de comunicações sediada em Washington.

Casaram em 1961.
A vida de Brigitte está agora cheia de médicos, hospitais e
comprimidos. Divorciou-se do marido em 1983.
O sobrinho de Brigitte, Reiner Höss, filho de Hans Hürgen, é o único
membro da família que fez perguntas sobre o passado. Em 2009, fui com
ele a Auschwitz. A certa altura, ele vira-se para mim e diz
categoricamente: "Se eu soubesse onde o meu avô está enterrado, mijava
na campa dele."

Talvez uma das conseqüências de manter o passado em privado é que ele
fica por analisar. Brigitte diz-me que nunca visitou o Museu Nacional
do Holocausto. E, apesar de entender o valor de um museu para nos
recordar as atrocidades do passado, diz que deveria ser em Auschwitz
ou Israel e não em Washington. "Eles fazem sempre a coisa pior do que
ela é", diz. "É horrível, não suporto."

Quando lhe refiro que o seu pai confessou ser responsável pela morte
de mais de um milhão de judeus, argumenta que os britânicos
"arrancaram-lhe isso com tortura". "E o seu pai, o que recorda dele?",
pergunto.

"Era o homem mais simpático do mundo", responde. "Era muito bom para nós."

Brigitte acredita que o pai era um homem sensível e que sabia estar
envolvido em algo mau. "Tenho a certeza de que por dentro ele estava
triste", recorda. "É apenas uma sensação. A forma como ele estava em
casa, a forma como ele estava conosco, às vezes ele parecia triste
quando voltava do trabalho."

Brigitte luta por conciliar a dupla natureza do pai. "Ele tinha de ter
dois lados. Aquele que eu conhecia e o outro..."

Todas as noites a octogenária Brigitte dorme sob o olhar atento do seu
amado pai, Rudolf Höss.


Thomas Harding é autor de Hanns and Rudolf: The True Story of the
German Jew Who Tracked Down and Caught the Kommandant of Auschwitz
(Simon & Schuster Hardcover, Setembro de 2013).

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O QUE É BOM PARA ELES


Por Paulo Moreira Leite


Primeiro embaixador em Washington depois do golpe de 64, Juracy Magalhães entrou para a história com uma frase famosa: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.”

Hoje, costuma-se justificar uma postura de submissão até risível diante dos Estados Unidos, naquela época, pelo contexto da Guerra Fria. Não era. Havia países que procuravam uma alternativa que não fosse nem alinhamento automático pró-Moscou nem pró-Washington. Antes do golpe, o Brasil era um desses países, com uma política externa que procurava ser independente, iniciada por Jânio Quadros e assumida por João Goulart.

Lembro da frase lendária do embaixador para tentar entender a reação de muitas pessoas ao discurso de Dilma Rousseff na ONU. Até a imprensa internacional deu um tratamento respeitoso ao pronunciamento, uma forma de reconhecer sua importância.

Entre observadores brasileiros, cheguei a ouvir comentários em tom de ironia. Com aquele jeito de quem sabe de realidades ocultas que escapam a mim e a você, ouvi dizer que nos Estados Unidos, ninguém mais dá importância a denúncias dessa natureza. A sugestão é que isso é coisa de gente atrasada – ou de político demagogo, populista…
Há bons motivos para suspeitar que se pretende, com essa atitude, ressuscitar o espírito do embaixador Juracy Magalhães. O segredo dessa postura é nunca inverter a ordem dos fatores e perguntar, por exemplo, se o que é bom para o Brasil é bom para os EUA.

Na verdade, é difícil acreditar que o tratamento seja tão descontraído assim, digno de piadinhas. Bradley Manning, o soldado que cedeu documentos secretos da diplomacia americana para o Wikileaks, acaba de ser condenado a mais de 35 anos de prisão. Julius Assange, que publicou o material, vive há mais de um ano trancafiado na embaixada do Equador, em Londres, sob o risco de ser expatriado para os EUA. Edward Snowden conseguiu refúgio na Rússia pelo receio do que poderia lhe acontecer se fosse capturado pelo Exército norte-americano. O presidente da Bolívia, Evo Morales, chegou a fazer um pouso forçado, na Europa, porque se suspeitava de que pudesse estar levando Snowden para fora do velho mundo.

A espionagem é assunto tão grave e tão sério, nos EUA, como em qualquer outro lugar. Até mais, na verdade.

Acusados de trabalhar como espiões para a União Soviética, o casal Julius e Ethel Rosemberg foi condenado a pena de morte, na década de 1950. Vinte anos depois, Richard Nixon foi forçado a renunciar em função do escândalo Watergate, uma história de espionagem interna, quando operadores do partido republicano tentaram fotografar documentos e instalar sistemas de escuta para captar os planos e diálogos dos adversários.

Conclusão: ao contrário do que procuram nos fazer acreditar, a população norte-americana sabe muito bem onde se encontram seus interesses – e não trata com piada assuntos que são sérios de verdade. A soberania nacional e o direito a privacidade estão entre eles, vamos combinar.

sábado, 12 de outubro de 2013

GIAP E O IMPOSSÍVEL



Sexta-feira, dia 4 de outubro, morreu um querido colega, professor de história.
Querido apesar de nunca tê-lo visto pessoalmente. Mas para nós que ousamos acreditar na utopia do mundo mais justo, distâncias, tempo e formalidades não existem de verdade e professores de história costumam fazer do tempo seu aliado.

Vo Nguyen Giap tinha 102 anos. Tempo de vida totalmente imprevisto para alguém que desde os 14 anos fazia parte de organização clandestina que lutava contra o poder instituído. Para militantes assim, a expectativa média de vida não passa de 2 anos.

Mas, esse homem era especialista em impossibilidades.

Era impossível que a Indochina, frágil e ocupada, expulsasse as forças francesas de seu território. Nguyen Giap os derrotou e expulsou.

Era impossível que meio Vietnam em luta contra a maior máquina de guerra do mundo, as forças armadas dos Estados Unidos, tivesse qualquer chance de êxito militar. Giap não só os enfrentou como os derrotou e os fez sair do país humilhação jamais esquecida pelo Império.

Era impossível que o povo vietnamita sobrevivesse aos bombardeios de napalm ou que suas matas sobrevivessem aos efeitos do agente laranja, mas sobreviveram.

Para um homem assim, sobreviver até mais de cem anos foi apenas mais uma improbabilidade.

Deve estar agora contando alguns de seus feitos à sua esposa, a tailandesa DangThiQuang, uma militante comunista, presa e morta sob torturas, assim como seu filho recém-nascido. Juntos, finalmente.

Giap foi fundador e comandante supremo do Exército do Povo do Vietnam.

Abandonou a carreira de professor de história em 1937, para organizar colegas e alunos na luta revolucionária.

Estrategista notável tornou-se um fantasma à frente de um exército de fantasmas, atacando sempre e recuando sempre que necessário.


Criou uma série complexa de túneis que interligavam pontos chaves e enlouqueciam o exército americano.

Não tendo aeronáutica, teve que suportar os mais terríveis e covardes bombardeios da história, quando foram usados, inclusive, armas químicas e biológicas, sem nenhum protesto do mundo ocidental.

Na chamada Ofensiva do Tet,
suas tropas chegaram a combater nas ruas da capital do Vietnam do Sul, Saigon, o
que levou os Estados Unidos a se retirarem, de forma humilhante, do Vietnam.

A última imagem vista pela televisão dessa guerra mostra funcionários e autoridades americanas brigando a tapas para entrarem no helicóptero que lhes permitiria a fuga.

Em 1975, ocorreu a reunificação do país.

Giap continuou Ministro da Defesa e, por um curto período, foi Primeiro-Ministro. Mas em 1991 se retirou em definitivo da vida pública. Morreu em Hanói
aos 102 anos.

Ele agora, não é mais um professor de história que atravessava as matas para ensinar seus alunos.

Vo Nguyen Giap, agora, é a própria história que seu povo revive nas noites da floresta.


Prof. Péricles

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

PELOS DEUSES DO EGITO


Todo o espaço era coberto por Nun, as águas do caos, até que Ben-Ben, uma clina sagrada levantou-se das entranhas da água. No pico de Ben-Ben a silhueta de Atum, o primeiro deus.

Atum gerou Shu, o deus do ar e Tefnut, que tiveram dois filhos, Geb, deus da terra e Nut, deusa do céu. E, Shu (ar) ergueu o corpo de Nut (deusa do céu), colocando-o acima de Geb (terra), e esta se tornou a abóboda do céu. Nut e Geb tiveram por sua vez quatro filhos: Osíris, Isís, Seth e Néfti.

Assim começa, na mitologia Egípcia, a história do mundo. Todas essas imagens remetem para os elementos da natureza, ar, água, terra, céu, etc...

Povo de extraordinários conhecimentos sobre a vida, sobre os homens e sobre a morte.

Osíris tornou-se deus e rei da terra; Isís foi a sua mulher, rainha e irmã. Mas Seth o deus do deserto invejava profundamente a Osíris e um dia, usando artimanhas rasteiras, o matou. Osíris foi para o mundo subterrâneo e Seth tornou-se rei da terra. Hórus, filho de Osíris e Ísis vingou a morte do pai e reconquistou o trono.

Conheciam tão bem o deserto como conheciam o caráter humano a ponto de destacar em sua mitologia, sentimentos como amor, inveja, vingança.

Osiris ainda vivia no reino subterrâneo. Néftis que nutria uma secreta paixão por ele, um dia se disfarçou de Ísis e deitou-se com Osíris dando a Luz a Anúbis o deus com corpo de homem e cabeça de cão que presidia o mundo dos mortos.

O Deus dos mortos, senhor dos mundos além da vida, era filho de uma mentira, assim como a morte é uma mentira. Assim como Néftis enganou Osiris disfarçando-se de Isis, a morte é um disfarce para outras verdades muito mais profundas, do lado de lá da existência.

Grande mistério, de tantos mistérios, das crenças e mitologias desse povo fantástico, são os oito deuses de Hermóplis.

São deuses inexplicáveis no contexto maior do panteão divino. Deuses que, para alguns seria os primeiros e mais antigos deuses de todos, para outros seriam a essência de tudo, e para alguns, mestres de outra civilização desconhecida, cultuados, especialmente na cidade de Hermópolis.Eram eles: Nun e Naunet, o caos, o oceano primordial;Heh e Hehet, o infinito; Kek e Kauket, as trevas e Amon e Amaunet, o oculto.

De onde viemos, o que somos, para onde vamos. O que existe depois da morte... Todas as explicações estavam nas divindades. E toda a divindade estava na alma e na potencialidade criativa do ser humano.

O que eram os oito deuses?

Egito, terra de mistério e de respostas perdidas entre as areias do tempo.

Prof. Péricles

domingo, 6 de outubro de 2013

PT, POR ONDE ANDAS?


A transição é uma etapa fundamental em qualquer processo. É mais do que apenas passagem. É uma transformação, uma intermediação. Através dela teremos algo novo, mas esse algo novo carrega consigo parte do que já foi. Num sincretismo entre duas situações que trazem a uma terceira.

A adolescência, por exemplo, é uma transição da infância para a idade adulta. É a fase mais rica do ser humano no sentido de fazer suas definições. O adulto que resultará após essa transição da adolescência será alguém novo, mas não estranho à criança que o precedeu.

Muitas vezes as pessoas se confundem e tomam a transição pelo definitivo. Dessa forma poderemos ter adultos que jamais abandonam a adolescência pois se acreditam completos.

O PT – Partido dos Trabalhadores, surgiu na década de 80, fruto das greves do ABC paulista, ainda na fase de abertura da Ditadura Militar. Quando surgiu, o PT era a maior novidade no quadro político brasileiro em mais de 50 anos, pois se pretendia de esquerda sem ser identificado com o trabalhismo, historicamente ligado ao sindicalismo, nem com os partidos ou ideais marxistas. Dizia-se a nova esquerda.

Por muito tempo fulgurou como oposição ao antigo, a nova estrela e o resgate das esperanças soterradas pela queda do muro de Berlim.

Os cenários do teatro político, porém, se alteram, e o PT varou os tempos de oposição ao conservadorismo dos apoiadores da ditadura, cruzou as águas da Constituinte, se colocou como contraponto ao neoliberalismo, e, finalmente, chegou ao poder.

Poucos perceberam que o PT deveria ser uma transição, uma passagem da rebeldia para o amadurecimento político onde deveria dar o lugar a um novo partido de esquerda que unisse todas as aspirações e sonhos de um Brasil novo e realmente popular.

Embriagado pelo poder, o PT se esqueceu de ser transição para se tornar o definitivo. Com uma pitada de autoritarismo aqui, uma porção de personalismo por lá, recriou a receita do “daqui não saio, daqui ninguém me tira”.

Em nome do imponderável conceito de “governabilidade” fez alianças com a direita mais arcaica e com os setores mais conservadores, distribuindo favores, partilhando ministérios, como se sua pureza fosse impermeável e inatingível.

O PT é hoje governo, junto com aliados que foram, mais do que combatidos, desprezados e humilhados por ele mesmo, o PT, num passado muito recente. Tomam cafezinhos juntos, no barzinho do Planalto, coronéis e jagunços, junto com torturadores e torturados.

É contra CPIs, instrumento político que mais defendeu em sua existência. Perde constantemente militantes que continuam idealistas e está envolvido com seus parceiros políticos naquilo que mais denunciava, a corrupção.

Dessa forma, negando-se ao seu papel histórico de transição tomou o espaço que deveria caber a um partido de esquerda mais moderno e coeso, que continuasse as lutas erguendo as bandeiras históricas da construção de uma sociedade mais justa, mais fraterna e igualitária.

Hoje, não é mais um partido de esquerda, e sim, de centro-esquerda. Não é um partido revolucionário, mas reformista. Não é mais popular, mas, populista.

Ainda representa a melhor resposta eleitoral para barrar os projetos da direita, especialmente ao neoliberalismo, mas precisa entender que vitória eleitoral não é tudo e que política não se faz apenas nos corredores e nos conchavos, mas, onde, um dia ele foi rei, nas ruas, nos bares, na comunidade.

A maior vitória do PT será se entender uma transição e permitir que um novo estágio na busca das utopias (ao invés de se entender como a própria utopia), se consolide.

Seu maior tesouro, a militância diferenciada e que ganhava eleições no grito e no entusiasmo, desapareceu e foi desaparecida pelo próprio partido, cada vez mais, parecido com os partidos mais tradicionais do Brasil.

Agora com a privatização silenciosa de nosso petróleo que ocorre com os leilões do Poço de Libra, arrisca perder o último brilho de sua estrela e a dignidade de seu passado.

Prof. Péricles

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

PEPE MUJICA


Trechos do discurso do Presidente do Uruguai José Alberto Mujica Cordano, conhecido popularmente como Pepe Mujica, na Assembléia Geral da ONU.

Amigos, sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.

Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim de intercâmbios funestos, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.

Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — por que, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.

Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.

Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.

Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.

Carrego o dever de lutar por pátria para todos.

Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até auto-exclusão.

Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.

Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.

A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.

O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.

Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.

Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões…

Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.

A cobiça, tão negativa e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época enosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente,essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar aciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismonebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história,e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.

Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.

Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra.

O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.

Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.