quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A GLOBO E OS IMPOSTOS



Por Paulo Nogueira.


Stellan Skarsgard é um ator sueco.

Aos 63 anos, um dos favoritos do cineasta Lars von Trier, tem uma carreira vitoriosa que lhe trouxe fama e dinheiro. Recentemente, ele concedeu uma entrevista na qual reafirmou seu amor pela Suécia.

“Vivo na Suécia porque o imposto é alto, e assim ninguém passa fome. A saúde é boa e gratuita, assim como as escolas e as universidades”, disse ele. “Você prefere pagar imposto alto?”, lhe perguntaram. “Claro. Se você ganha muito dinheiro, como eu, você tem que pagar taxas maiores. Assim, todo mundo tem a oportunidade de ir para a escola e para a universidade. Todos têm também acesso a uma saúde pública de qualidade.”

Skarsgard nasceu e cresceu numa cultura que valoriza o pagamento de impostos. Por isso a Suécia é tão avançada socialmente. Impostos, como lembrou ele, constroem hospitais, escolas, universidades. Pagam professores e médicos da rede pública, além de tantas outras coisas positivas para qualquer sociedade.

Essa cultura vigora também na Alemanha. Recentemente, o presidente do Bayern foi para a cadeia por sonegar imposto. Quando o caso eclodiu, as autoridades alemãs fizeram questão de puni-lo exemplarmente sob um argumento poderoso: nenhum país funciona quando as pessoas acreditam que podem sonegar impostos impunemente.

Agora, vejamos o Brasil. Há anos, décadas a mídia alimenta uma cultura visceralmente oposta. Imposto, você lê todo dia, é um horror. O Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo (o que é mentira). Imposto é uma coisa injusta. Bem, a mensagem é: sonegue, se puder. Parabéns, caso consiga.

Não poderia haver coisa mais danosa para os cidadãos do que esta pregação diuturna da mídia. Você os deforma moralmente. Tira-lhes o senso de solidariedade presente em pessoas como o ator sueco citado neste artigo.

Além de tudo, a cultura da sonegação acaba chancelando os truques praticados pelas grandes companhias de mídia para escapar dos impostos. Considere o caso célebre da sonegação da Globo na compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002.

Nestes dias, vazou toda a documentação relativa ao caso. Uma amostra já tinha vindo à luz – na internet, naturalmente – algum tempo atrás, num furo do site Cafezinho. Só a cultura da sonegação pode explicar o silêncio sinistro que cerca este escândalo fiscal.

Até aqui, a Globo não deu uma única satisfação à sociedade. Não se desculpou, não se justificou. É como se nada houvesse ocorrido. Também a Receita Federal, até aqui, não disse nada. Mais uma vez, é como se nada houvesse ocorrido no âmbito da receita. Nenhuma autoridade econômica, igualmente, se pronunciou. De novo, é como se nada houvesse ocorrido numa área tão vital para a economia como a arrecadação de tributos.

E a mídia?

Bem, a mídia finge que não está acontecendo nada. Contei já: quando o Cafezinho publicou os documentos, falei com o editor executivo da Folha, Sérgio Dávila. Ponderei que era um caso importante, e ele aparentemente concordou porque logo a Folha fez uma reportagem sobre o assunto. Uma e apenas uma. Em seguida, a sonegação da Globo sumiu da Folha para nunca mais retornar.

Se conheço as coisas como funcionam nas redações, um telefonema de um Marinho para um Frias – as famílias são sócias no Valor — pôs fim à cobertura. Volto a Stellan Skarsgard. Em todo país socialmente desenvolvido, pagar impostos é uma coisa sagrada. E sonegá-los é um ato de lesa sociedade, passível de punição exemplar.

O Brasil sofreu uma lavagem cerebral da mídia. Uma das tarefas prementes de uma administração sábia é desfazer essa lavagem. Quando as palavras do ator sueco encontrarem eco no Brasil, seremos uma sociedade desenvolvida.


sábado, 16 de agosto de 2014

AMOR, DIVINO AMOR PROFANO



Eles se amavam profundamente. Talvez amor nenhum tenha sido maior, se pudéssemos hierarquizar esse sentimento extraordinário.
Entretanto, por uma imposição do pai, ela casara-se com um homem a quem não nutria nada além de simpatia.

Assim, seu amor era impossível, mas, irresistível, e mesmo sabendo estarem agindo de forma errada, encontravam-se e amavam-se até o limite que seus corpos permitiam.

Um amor alucinado, possuído, exasperado...

Um dia, porém, foram descobertos, e, pior, surpreendidos em pleno ato do mais profundo amor.

Vergonha. Completa vergonha.

Ela esperava que ele assumisse todas as conseqüências e ficasse com ela para sempre. Mas, ele, fraco ou covarde, não fez isso. Deu-lhe as costas e tratou de defender seus interesses.

Tornaram-se irreconciliáveis.

Ela era Afrodite (para os gregos) ou Vênus (para os latinos).

Ele era Ares (para os gregos) ou Marte (para os latinos).

Ela, deusa do amor e da beleza, era tão linda, supremamente linda e perfeita, que provocou a fúria de outras filhas de Zeus (Atena e Vesta) que exigiram que Afrodite tivesse alguma desgraça, e dessa forma, foi forçada pelo pai a casar com Hefesto (Vulcano), o coxo, o deus mais feio do Olimpo, com suas marcas e cicatrizes no rosto.

Marte era o deus da guerra. Originalmente um deus da terra. Posteriormente deus da morte, das batalhas sem fim.

A união do amor e da guerra insere-se perfeitamente na forma de ver a vida dos gregos e, por herança, dos latinos.

O drama eterno da vida. A união de duas tragédias, a morte e o amor, que não são opostos, mas, ao contrário, complementam-se.

Tiveram uma filha e quatro filhos, frutos do louco amor que os unia.

No período mais belo e pacífico tiveram Harmonia, Cupido e Eros. Nos momentos de crise tiveram Deimos (o Pânico) e Fobos (o medo).

Numa espécie de Romeu e Julieta da Antiguidade Clássica, Afrodite e Ares (ou Vênus e Marte), foram representados em estátuas e monumentos inúmeros.

O museu de Florença e o museu Capitolino, reproduzem essa ligação. Os romanos gostavam de fazer-se representar com as suas mulheres, e usando os atributos de Marte e Vênus; era uma alusão à coragem do homem e à beleza da mulher.

Vários arqueólogos pensam que a Vênus de Milo estava ao lado da estátua de Marte. A arte dos últimos séculos ligou igualmente as duas divindades e, num encantador quadro do Louvre, le Poussin mostra-nos o deus da guerra, esquecido dos seus atributos e do seu papel, sorrindo para a deusa, enquanto os cupidos brincam tranqüilamente com as armas, no meio de risonha paisagem.

Apesar de todas as tragédias, o amor sempre foi maior, mas nem por isso o final feliz está garantido.

Assim como nós, seres humanos, somos os responsáveis pelo nosso destino, a partir de nossas opções e responsabilidades, os deuses também são responsáveis pelo final de suas histórias.

E a história dos dois deuses mais apaixonados do Olimpo tem o final de suas escolhas.

Afrodite (Vênus), transformando o seu amor em ódio, rogou uma praga para que Marte se apaixonasse por todas as mulheres que visse, tornando-se assim um deus constantemente apaixonado, mas abandonado.

Por outro lado, ela permaneceu apaixonada apenas por um, mas sendo de todos e de ninguém.

Prof. Péricles

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

SEM RUMO



Por Mauricio Puls

O aspecto mais notável do presente cenário eleitoral não é a debilidade da presidente nas pesquisas, e sim a da oposição. Seria razoável esperar que, numa conjuntura difícil, seus adversários estivessem numa situação mais favorável.

Na última pesquisa Datafolha, os candidatos do PSDB, PSB e PSC tinham 31% das intenções de voto. É pouco. Nesta etapa da campanha, três opositores reuniam 48% das intenções de voto em 2010, 39% em 2006, 39% em 1998, 46% em 1994. Em todas essas eleições, a oposição estava melhor nesta altura da disputa. Em todas o Planalto venceu.

Em que ocasiões o governo perdeu? Em 1989, quando três antagonistas somavam 62% das intenções de voto; e em 2002, quando possuíam 72%.

A oposição nunca teve um desempenho tão ruim como agora, apesar das condições adversas a Dilma: três quartos dos eleitores desejam mudanças, mas a maioria não se anima com os nomes disponíveis.

Em sua obra "O Antigo Regime e a Revolução", Tocqueville ensina que "não é indo sempre de mal a pior que se cai numa revolução": a população suporta pacientemente todos os infortúnios quando não enxerga uma saída para superá-los. Para que sobrevenha uma mudança, acrescenta Jean Jaurès, é preciso que as classes majoritárias sintam um terrível mal-estar, mas é preciso também que elas "tenham um princípio de força e, por conseguinte, de esperança".

Que esperança ofereciam os oposicionistas vitoriosos? Em 1989, com uma inflação de 1.973% ao ano, venceu a alternativa de direita: o caçador de marajás prometia reduzir o papel do Estado na economia para conter os preços. Em 2002, com um desemprego de 10% ao ano, venceu a alternativa de esquerda: o líder operário prometia ampliar o papel do Estado na economia para criar 10 milhões de empregos. O que propõe a oposição em 2014?

Acena aos empresários com a retomada da política econômica de FHC para reduzir uma inflação de 6,5% ao ano. Mas essa promessa só terá êxito se houver uma recessão no meio do caminho. Por isso, quando se dirigem às massas, os candidatos não propõem nada.

Sem esperança, o eleitor que abandonou Dilma após os protestos de junho segue indeciso. Em março de 2013 a petista reunia 58% das intenções –hoje tem 36%. Em março de 2013, Aécio, Campos e Marina somavam 32%; agora os três, com o reforço do Pastor Everaldo, têm 31%. Dilma perdeu 31 milhões de votos; a oposição não ganhou nenhum.

Mas crê que herdará os desiludidos, porque estes não têm opção. Não é bem assim. FHC foi reeleito em 1998 com o país crescendo 0,04% ao ano, pagando juros de 49,75% e à beira do colapso cambial porque a população temia que uma mudança piorasse ainda mais as coisas. O eleitor prefere o conhecido ao desconhecido: mudar, só em último caso.

sábado, 9 de agosto de 2014

CREU




Queridos amigos, estamos aqui reunidos para mais uma sessão do CREU – Clube dos Reacionários Enrustidos Unidos.

Com vocês o depoimento de nosso novo membro, Sr. Olavo.

Oi enrustidos.

- Oi Olavo (todos).

Sim, eu assumo, sou um reacionário enrustido.

Depois de muito tempo tentando ter respostas politicamente corretas, buscar ter um comportamento moderno e progressista, quero me assumir e sair do armário.

Foi difícil reconhecer, mas, tenho me sentido muito melhor depois que resolvi enfrentar essa condição, sem disfarces.

Comecei a ser um reacionário enrustido, ainda muito jovem. Andava de jeans, mas curtia roupas de mauricinho até para ir ao cinema. Odiava chamar a Revolução de 64 de Golpe Militar.

Escondia de todos o quanto os discursos de Bush (o pai) me fascinavam.

Tentava resistir, mas tinha verdadeira adoração por tudo que fosse norte-americano.

Wel tentei afogar aquele sentimento reacionário usando camisetas estampadas do Tche e do Mao, embora preferisse do Homem Aranha. Arranjei uma namorada rebelde pra ver se conseguia mudar o meu destino. Muito louca e esquisita como todas essas esquerdinhas, ela me falava em sexo livre, quando eu só pensava em me casar e ser seu dono.

Meus pesadelos, entretanto, começaram mesmo na faculdade.

Aqueles jovens todos, falando em uma sociedade mais justa (choro)... Aquelas leituras do “Capital” Oh céus, até em passeata de protesto com camiseta da CUT eu participei. (silêncio impactante na platéia).

Aquilo me doía demais, sabe? Meu desejo era gritar que queria ter nascido nos Estados Unidos ou na França. Que amava ler as Seleções “Reader’s Digest” e que odiava pobre.

Não que eu seja uma pessoa má. Não. Adoro dar uma esmolinha aqui e outra ali, comprar rifa de chá beneficente, sempre tive bom coração. Mas odeio pobre metido a besta e eles sempre são bestas quando esquecem seu nível inferior!

Mas, não podia fazer isso. Perderia a namorada rebelde que apesar de maluquinha era muito gostosa e eu queria que fosse minha. Seria olhado com desprezo no centro acadêmico e seria chamado de reaça.

Por isso, lia a Veja todas as semanas, escondido na solidão do meu quarto.

Nunca perdi uma só “Manhatan Conection”.

Sempre busquei apoio nas palavras de meus ídolos: Paulo Francis, Bóris Casoi, Olavo de Carvalho, Jair Bolsonaro, e oh! Arnaldo Jabour...

Vibrei com a eleição de FHC e chorei de emoção quando foi reeleito.

Mas, eu disfarçava bem.

Dizia que já tinha votado no PT e agora estava decepcionado e isso me encorajava a criticar esse partido de pobre.

(longo silêncio)

Hoje faço parte do CREU, com muito orgulho.

O CREU tem me ajudado a sair do armário e isso me faz muito bem.

É maravilhoso poder ser um reacionário assumido, podendo falar que odeia o Bolsa Família e todas as bolsas que beneficiam a gentalha.

Que delícia poder fazer piada de pobre em aeroporto, pobre dirigindo carro, pobre falando errado.

Estou assumindo minha postura política e isso só me faz bem.

Mas... não posso me iludir.

Ainda tenho recaídas.

Dia desses, no grupinho de colegas de trabalho o assunto descambou para as relações homo afetivas.

Não tive coragem de assumir que odeio essas bichas todas e menti... Sim, eu menti, que respeito às opções de todos.

(choro compulsivo acompanhado pela plateia)


Prof. Péricles

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

NA RÚSSIA, AMEAÇAS NÃO EXISTEM




O ocidente, apesar de tudo, parece que ainda não conhece a Rússia.

Na cultura russa as crianças aprendem que nunca se ameaça um adversário ou inimigo.

O menino é severamente advertido pelo pai se é visto ameaçando outros meninos naquelas brigas de rua ou na escola, com atitudes do tipo “vou isso ou vou aquilo”.

Não ameace, apenas faça se acha que deve e que pode, diz papai russo.

Pois os Estados Unidos e sua cachorrinha amestrada, a União Européia, parece que não sabem disso.

Por semanas anunciaram que iriam boicotar os negócios russos no ocidente, em retaliação ao apoio do Kremlin aos separatistas do leste da Ucrânia e por sua “interferência” na Criméia.

Vamos fazer e acontecer anunciaram Obama, presidentes e ministros das relações exteriores dos países satélites.

O governo da Rússia manteve silêncio, apenas informando que o país se sentiria no direito de responder a qualquer tipo de retaliação contra ela. E mais nada falou.

Pois no início da semana, primeiro a União Européia e posteriormente os Estados Unidos (sempre jogada ensaiada) anunciaram sanções fortes contra a Rússia por um período de de três meses. Essas sanções, basicamente, concentraram-se nos setores armamentistas (não importação de equipamentos russos) e suspensão da venda de alimentos e produtos agrícolas da União Europeia e dos EUA para aquele país, além de impedir bancos russos de uma série de transações financeiras.

Ontem, o governo de Vladimir Putin anunciou sua resposta, com medidas duríssimas que valerão não por 3, mas por 12 meses.

Entre essas medidas estão a proibição do uso do espaço aéreo da Rússia para aviões comerciais da Europa que fazem linhas para a Ásia (o que irá encarecer um bocado os transportes aéreos desses países) e a suspensão da venda de gás para antigos parceiros do ocidente. Além disso,o Ministro da Agricultura da Rússia, Nikolai Fyodorov, anunciou a suspensão da importação de matérias-primas de países que decidiram sancionar o país por causa do conflito no leste da Ucrânia e que está abrindo novas parcerias com os países que não votaram por sanções contra eles.

As medidas atingem Estados Unidos, União Européia, Canadá, Austrália e Noruega.

Entre os mais gravemente afetados estão a Espanha, a Grécia, a Itália e a França.

Entre os maiores beneficiados está, o Brasil. Para nossa economia os benefícios podem ser imensos.


O secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura, Seneri Paludo da Rússia disse à agência de notícias russa Interfax, que a situação pode representar uma “revolução” para a indústria brasileira, comparável à que a China provocou na última década.

Só na área da carne de frangos a estimativa gira num aumento em torno de 150 mil toneladas, o que acrescentaria US$ 300 milhões de receitas à balança comercial.

Silenciosamente, Putin está dizendo ao ocidente que os tempos são outros e que quem tem mais a perder agora é a economia dos Estados Unidos e aliados e não a dos BRICS. Lembra que, os governos da União Européia, ao persistirem numa política de vergonhosa adesão a tudo que é proposto pelos Estados Unidos, assumem riscos que podem ser fatais aos seus próprios interesses.

E, enquanto a mídia ocidental canta de galo, diz que faz e acontece, na Rússia, não se ameaça, simplesmente se faz.


Prof. Péricles


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

DIÁLOGO EM SEGREDO




Cena urbana da pequena cidade gaúcha de Segredo.

Duas “segredinas” ou seria “segredenses” ou “secretas”? Bem, não importa, duas amigas moradoras de Segredo se encontram na fila do supermercado da cidade e estabelecem o seguinte diálogo:

- Menina, tu não imagina o que eu vi ontem, aqui mesmo nesse supermercado...
(silêncio estratégico). Sei que tu vai dizer que é invencionice minha, fofoca, mas juro que é verdade. (novo silêncio)

A “menina” não resiste por muito tempo à curiosidade.

- Conta logo Dalva, o que tu viste aqui mesmo nesse supermercado de tão extraordinário?

- Não sei se te conto Carmem. Lembro bem do dia que me chamou de fofoqueira... conto ou não conto?

- Grrrrr

- Ta bem vou contar, mas sei que não vai me acreditar...

- Pelo amor de Deus Dalva, desembucha. Viu o Leonardo di Caprio?

- Não.

- Viu um ET?

- Não.

- Então um fantasma?

- Também não.

- o Lelo, aquele desalmado que...
- Não, não.

- Então o que foi que tu viu mulher?

- Carmem (cara de grande revelação), eu vi, aqui mesmo, nesse supermercado, um... um médico!

Não só a Carmem mas as duas outras pessoas da fila fitaram Dalva com incredulidade.

- Um médico? (risos)

- Não disse que tu não irias acreditar. Francamente...

- Desculpa querida, é que foi muito engraçado, não sei como tens tanta imaginação pra...

-Não é imaginação, eu vi mesmo!! (aos gritos)

Silêncio.

- Amiga, queres que eu acredite que tinha aqui, nesse supermercado, na nossa Segredo, um médico? Médico, de verdade, médico?

- Sim... e falava espanhol e...

- Falava? Ele falava?

- Sim, Carmem, e falou comigo e...

- rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs

Se tu rir de mim de novo eu vou começar a gritar e dizer o que o Lelo fez e...

- Ok. Stop. Não vou rir. Mas não queira que eu acredite numa mentira dessas!

- Olha aqui sua descrente, não é mentira, nem fofoca. Ele faz parte daquele programa do governo, como é mesmo... “Mais Médicos”.

- Sério? Bem que me disseram que eles olham pra gente na consulta. Mas eu não acreditei...

- Mas, é verdade menina, pura verdade. Eu vi, ele estava aqui e... madre de dios!

- O que foi mulher?

- Ele esta vindo pra cá?

- Ele quem, o Lelo?

- Não, o médico que fala, e olha pra gente...

Onde... onde?

Até bem pouco tempo, a população brasileira nos rincões mais escondidos e distantes, conhecia bem pouco de atendimento médico.

Simplesmente, quase não havia médicos que aceitassem trabalhar em lugares tão distantes dos centros urbanos. Isso exigiria, entre outras coisas, exclusividade na atenção à população dos lugarejos e distanciamento de outras fontes de trabalho.

As políticas públicas de saúde resumiam-se ao atendimento das emergências nos centros regionais ou no encaminhamento a Porto Alegre através da ironicamente denominada “ambulanciaterapia”.

Ser atendida por um médico era coisa de cidade grande, tanto que uma simples consulta levava a uma preparação quase ritualística. Dias antes de um atendimento as pessoas já escolhiam a roupa com que deveriam comparecer aquele evento importante, e preocupavam-se que o que dizer ao médico na tão esperada oportunidade.

Geralmente, essa preparação meticulosa era dissolvida por um atendimento sumário e massificado onde se perdia a identidade e se tornava estatística.

Uma atenção maior do que um olhar profissional, era quase inimaginável.

Talvez, o maior mérito do “Mais Médicos” nem seja apenas o atendimento ambulatorial aos que dele precisam, mas, o atendimento da necessidade de se sentir cidadão pleno onde a saúde não é privilégio, nem favor, mas um direito da cidadania.

Podemos mensurar tudo isso na queda dos atendimentos nas emergências dos hospitais que atendem essas regiões.

Não apenas a emergência médica, mas, principalmente a urgência humana está sendo atendida.

Médicos compram em supermercados, lembram nomes e preocupam-se com pacientes... e falam.


Prof. Péricles
Agradecimento especial aos colegas Clarice e Eduardo, testemunhas oculares dessa história e inspiradores do diálogo fictício.