segunda-feira, 16 de outubro de 2017
NOSTALGIA DA LUZ
por Cláudia Versiani
Na estrada para San Pedro de Atacama, Manuel, o motorista, fez questão de desviar da rota para mostrar o memorial construído no local onde foram enterradas vítimas da ditadura. “Em 19 de outubro de 1973, tiraram 26 prisioneiros da cadeia de Calama, onde fica o aeroporto, mataram e enterraram aqui. A maioria trabalhava nas minas”, conta. A região é rica em cobre e famosa internacionalmente desde que, em 2010, um grupo de mineiros ficou soterrado durante mais de dois meses a quase 700 metros de profundidade.
Atacama é um dos principais destinos turísticos do Chile. É o deserto mais alto do mundo, o mais seco. San Pedro, ponto de partida para os passeios pela região, é uma pequena cidade com chão de terra, como se poderia imaginar a Macondo de Cem Anos de Solidão. Entre as paisagens “lunares” de vulcões, gêiseres e lagoas estão até hoje os restos mortais de ativistas assassinados.
Em 2010, o documentarista chileno Patricio Guzmán produziu Nostalgia da Luz. A película estabelece uma sensível relação entre dois aspectos do Deserto de Atacama: o fato de, pelo clima seco, ser um dos melhores locais para observação do céu (a região abriga o mais potente complexo astronômico do mundo) e o fato de ter sido usado como cemitério clandestino de presos políticos.
Guzmán mostra que os astrônomos, amparados pela transparência do ar, exploram galáxias longínquas e perscrutam o passado por meio dos telescópios e dos anos-luz que separam a Terra dos corpos celestes.
Ao mesmo tempo, outros indivíduos fazem investigação análoga e procuram vestígios de parentes mortos há mais de 40 anos, aproveitando a secura do solo que conserva os restos de seres vivos.
No deserto de 105 mil quilômetros quadrados, mulheres cavam a areia em busca de fragmentos de ossos. Procuram o que quer que seja de familiares desaparecidos. E o resultado não é improvável: durante a filmagem, encontraram mais um corpo, mumificado pelo solo árido.
Dias depois do golpe, Pinochet criou uma comissão para “acelerar os processos, padronizar critérios na administração da Justiça e instruir militares provinciais sobre como tratar os opositores”, eufemismo que significava executar oponentes do regime.
Essa comissão, posteriormente chamada Caravana da Morte, percorreu o país. No norte, onde ficam Calama e Atacama, 71 presos políticos foram executados com especial crueldade, para que morressem lentamente, e enterrados em covas coletivas, sem identificação.
No lugar de uma dessas covas, de onde os cadáveres haviam sido exumados com escavadeiras e jogados no mar ou enterrados alhures, para nunca serem encontrados, ergueu-se em 2004 o memorial mostrado por Manuel. O monumento, evidentemente, não integra os roteiros turísticos.
O memorial é uma construção circular no meio da paisagem árida do deserto. Tem 34 colunas, cada uma a representar uma vítima da cidade. Concebido pela Associação de Familiares de Executados Políticos e Presos Desaparecidos de Calama, foi inaugurado em 19 de outubro de 2004, exatamente 31 anos depois do assassinato coletivo. É dedicado a todos os perseguidos da região. Flores e inscrições em mármore, inclusive um texto de Pablo Neruda, lembram os desaparecidos.
Em destaque, uma placa de metal com as seguintes palavras, em tradução livre:
Parque para preservação da memória histórica
Neste lugar, nesta sepultura, sob o solo seco do Deserto de Atacama, foram enterrados durante o governo militar os corpos de 26 homens executados em 19 de outubro de 1973 por uma comitiva do Exército do Chile denominada “Caravana da Morte”.
Depois dos assassinatos, os familiares iniciamos no deserto uma busca que ainda não terminou. Os corpos foram removidos deste sítio em data desconhecida, e o destino final deles é incerto. Porém, em julho de 1990, foi encontrada esta sepultura, onde foram resgatados pequenos fragmentos ósseos que permitiram identificar alguns dos nossos. As 34 colunas representam as vítimas desaparecidas nesta cidade durante a ditadura.
Este parque foi erigido em memória daqueles a quem foram arrebatadas as vidas na luta por seus ideais, e para que o legado de seus espíritos e a lembrança imorredoura de seu sacrifício permaneçam na consciência coletiva de Calama.
A ditadura de Pinochet durou de 1973 a 1990, e oficialmente reprimiu mais de 30 mil opositores, entre mortos, desaparecidos e torturados. O número pode ser maior, pois é possível que muitos, por medo ou desinformação, não tenham se manifestado na comissão que investigou os crimes.
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