As polacas estão ressuscitando.
Párias em vida, abandonadas por 30 anos no gueto em que se enterraram judias, em Cubatão, elas começam a renascer dos túmulos restaurados até junho pela Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo, já personagens de quatro livros; estrelas de três projetos teatrais; tema de monografia, tese e conferências.
As polacas do “povo da Bíblia” estavam confinadas ao Deuteronômio: “Não haverá dentre as filhas de Israel quem se prostitua no serviço do templo, nem dentre os filhos de Israel haverá quem o faça” (23:17).
Um “aluvião de Messalinas” invadiu o Rio de Janeiro em 1872. “A horda de judias russas, alemãs e austríacas começou a aparecer na roda cortesã, nos teatros de última classe, nas ruas mais concorridas, mulheres de ademanes desembaraçados, rostos formosos, trajando com luxo e levando presa no olhar a atenção dos transeuntes que as observavam”, como registrou Os Cáftens, um folheto de Clímaco dos Reis.
Elas “paravam nas esquinas, nos corredores e jardins dos teatros, em toda parte e, com uma desenvoltura até então desconhecida, distribuíam bilhetes com seus nomes e moradias…” O Estado de 25 de julho de 1879.
A Província de São Paulo, publicou a notícia de que “duas alegres raparigas deliberaram dar algumas voltas na cidade em um elegante carrinho particular de passeio, tirado por um cavallo, e guiado por uma dellas, de nacionalidade russa, ao que ouvimos contar, e entendida naquellas façanhas hyppicas”.
Nas ruas da Liberdade (“ironias do acaso!”), as duas foram presas e levadas ao chefe da polícia, que as libertou “provando que aqui no Brazil, como na Rússia, é permitido à mulher guiar um carro particular”.
“Abre-se a porta e aparece a mulher, vestindo camisa de cores berrantes”, ele continua. “O freguês que foi despachado passa sem lhe dizer palavra; e o próximo entra, a porta se fecha.” Atônito, conclui: “Tão incrível é o número de fregueses recebidos num único dia que, antes de o revelar, necessário se faz dizer que ele foi confirmado pelas autoridades, pela sociedade judaica de socorros Ezras Noshim e pelos investigadores da Liga das Nações.”
Historiadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Margareth Rago “morreu de medo” ao penetrar no mundo misterioso das polacas e de seus rufiões para o livro Os Prazeres da Noite: Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo, 1890-1930 (Paz e Terra, 1991).
“Fui assustada por gente da comunidade judaica que não queria desenterrar o assunto.” Perguntavam-lhe: “Mas por que você quer mexer com isso?”
Ao saber agora das obras de restauro no cemitério de Cubatão, ela se mostra curiosa e irônica: “Redenção?”
Seguindo o rastro deixado há 50 anos no livro Le Chemin (O Caminho) de Buenos Aires, pelo poeta e famoso repórter Albert Londres, queimado como um arquivo num suspeito incêndio de um navio em 1932, ela identifica no Brasil os tentáculos dos poderosos “maquereaux”, os gigolôs franceses, e dos “polaks”, traficantes de judias das aldeias pobres do Leste Europeu.
Quando perseguidos na Argentina, os rufiones refugiavam-se nas filiais paulista ou carioca, onde mantinham até “escolas de prostituição”.
As máfias francesa e polaca importariam para a América do Sul cerca de 1.200 mulheres por ano, embarcadas nos portos de Gênova, Marselha, Anvers e Hamburgo.
Mas “dificilmente saberemos quantas vieram por vontade própria, ou iludidas com promessas de casamento e perspectivas estimulantes de enriquecimento”
Nos bordéis distinguiam-se as estrangeiras, “embora as raras estatísticas disponíveis registrem uma porcentagem superior de brasileiras”.
Madame O, de 80 anos, testemunhou a belle époque paulista como costureira francesa. E nunca encontrava brasileiras nos bordéis.
“Por quê?”, perguntou-lhe Rago, numa entrevista em 1989. “Porque elas não eram disso no meu tempo”, respondeu. “Quando cheguei ao Brasil, não havia mulheres (brasileiras) não… tudo francesas e polacas, muitas.”
Os judeus brasileiros não queimaram as “curves” (prostitutas, em iídiche) de Santos, do Rio e de São Paulo. Mas lhes reservaram, “impuras”, o mesmo chão dos suicidas que ousam findar a vida dada, e então só tirada por Deus: junto aos muros dos cemitérios.
“Die linke”, esquerdistas, marginalizadas, ou “as outras”, na tradução do jornalista Alberto Dines, as “curves” abriram seus próprios cemitérios, rezaram em sinagogas próprias e congregaram-se em sociedades de assistência mútua. Viveram e morreram judias. Mais do que esquecidas, expiaram. Abolidas, perpetuaram-se.
Eternas polacas.
OBS. Para saber mais sobre o assunto leia o texto "POLACAS" de março/2015, aqui no Blog.
Moisés Rabinovici, jornalista e grande repórter, correspondente durante muitos anos do Estadão em Israel, redator da Agência Estado, diretor dez anos do Diário do Comércio de São Paulo, até o fechamento da edição papel do jornal pela Associação Comercial de São Paulo.
Moisés Rabinovici, jornalista e grande repórter, correspondente durante muitos anos do Estadão em Israel, redator da Agência Estado, diretor dez anos do Diário do Comércio de São Paulo, até o fechamento da edição papel do jornal pela Associação Comercial de São Paulo.
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