quarta-feira, 16 de outubro de 2013
A FILHA ESCONDIDA DE AUSCHWITZ
Por Thomas Harding
Vive na zona de Washington desde 1972. Mas ainda não contou a sua
história aos netos: o seu pai era Rudolf Höss, o Kommandant de
Auschwitz e aquele que concebeu e construiu o campo, transformando-o
numa máquina de morte capaz de assassinar duas mil pessoas numa hora.
Desde 1972 que Brigitte Höss vive discretamente numa rua arborizada e
pouco central da Virgínia do Norte.
Foi Rudolf Höss quem concebeu e construiu Auschwitz a partir de umas
casernas velhas na Polónia, transformando-as numa máquina de morte,
capaz de assassinar duas mil pessoas numa hora. No final da guerra,
1,1 milhões de judeus tinham morrido no campo, juntamente com 20 mil
ciganos e dezenas de milhares de polacos e presos políticos russos.
Como tal, o pai de Brigitte foi um dos maiores assassinos em massa da
História.
Durante cerca de 40 anos, ela manteve o seu passado longe dos olhares
públicos, e por analisar. Nem sequer partilhou a sua história com os
familiares mais próximos.
Quando o assunto Holocausto é abordado, desvia a conversa. "Se alguém
me pergunta sobre o meu pai, digo que morreu na guerra."
Mas ela acabou de fazer 80 anos e interroga-se se não está na altura
de contar aos netos o seu passado. Foi uma jovem apanhada nas
forças épicas de uma história que ela pouco conseguia entender, muito
menos ser responsabilizada por ela. Será agora a altura de digerir a
sua história familiar? Irá acabar com o medo de ser descoberta que a
perseguiu durante toda a sua vida? Ou irá levar a sua história para o
túmulo?
De acordo com os registros do pessoal das SS - que estão nos Arquivos
Nacionais em College Park -, Inge-Brigitt Höss nasceu a 18 de Agosto
de 1933, numa quinta perto do Mar Báltico. O seu pai, Rudolf, e a sua
mãe, Hedwig, conheceram-se nessa quinta, que era um paraíso para os
jovens alemães obcecados com idéias de pureza de raça e utopia rural.
Brigitte foi a terceira de cinco irmãos.
Brigitte teve uma infância extraordinária, mudando de uma quinta para
um campo de concentração a seguir a outro à medida que o pai subia na
hierarquia das SS: Dachau até aos cinco anos, Sachsenhausen entre os
cinco e os sete; e dos sete aos onze, no campo de morte mais famoso de
todos, Auschwitz.
Entre 1940 e 1944, a família Höss vivia numa vivenda de dois andares
em estuque cinzento no limiar de Auschwitz - tão perto que da janela
do andar de cima dava para ver os barracões da prisão e o velho
crematório. A mãe de Brigitte descrevia o sítio como "um paraíso":
tinham cozinheiros, amas, jardineiros, motoristas, costureiras,
cabeleireiras e mulheres de limpeza, alguns dos quais prisioneiros.
A família decorou a casa com mobília e obras de arte roubadas aos
prisioneiros quando eram selecionados para as câmaras de gás. Era uma
vida de luxo que se desenrolava a poucos passos do horror e do
tormento. Quase todos os domingos, o Kommandant levava às crianças a•verem os cavalos aos estábulos. Adoravam ir aos canis fazer festinhas
nos pastores alemães.
Em Abril de 1945, quando o fim da guerra já estava à vista, Rudolf
Höss e a família fugiram para o Norte. Separaram-se. A mulher ficou
com as crianças e refugiou-se por cima de uma antiga fábrica de açúcar
em St. Michaelisdonn, uma aldeia perto da costa. O Kommandant assumiu
a identidade de um trabalhador e escondeu-se numa quinta a 6,5
quilômetros da fronteira dinamarquesa. A família Höss ficou à espera
do momento certo para fugir para a América do Sul.
"Lembro-me de quando eles vieram a nossa casa fazer perguntas", diz,
com a voz firme. "Estava sentada à mesa com a minha irmã. Tinha cerca
de 13 anos. Os soldados britânicos não paravam de gritar: "Onde está o
teu pai? Onde está o teu pai?”Fiquei com umas dores de cabeça
terríveis. Fui lá para fora chorar, debaixo de uma árvore. Obriguei-me
a acalmar. Obriguei-me a parar de chorar, e a minha dor de cabeça
desapareceu. Mas depois disso tive sempre enxaquecas. Essas enxaquecas
pararam há alguns anos, mas, desde que recebi a sua carta, voltei a
tê-las."
O Kommandant foi a primeira pessoa com uma posição elevada na
hierarquia a admitir a extensão da chacina em Auschwitz. Foi entregue
aos americanos, que o fizeram testemunhar em Nuremberg. Depois, Höss
passou para os polacos, que o processaram e o enforcaram num cadafalso
ao lado do crematório de Auschwitz.
Na década de 1950, Brigitte conseguiu deixar a Alemanha e começar uma
vida nova em Espanha. Era uma jovem deslumbrante, com cabelo loiro
comprido, uma figura esbelta e uma atitude do tipo "não te metas
comigo". Trabalhou como modelo durante três anos com a emergente casa
de moda Balenciaga. E conheceu um engenheiro americano que trabalhava
em Madrid para uma empresa de comunicações sediada em Washington.
Casaram em 1961.
A vida de Brigitte está agora cheia de médicos, hospitais e
comprimidos. Divorciou-se do marido em 1983.
O sobrinho de Brigitte, Reiner Höss, filho de Hans Hürgen, é o único
membro da família que fez perguntas sobre o passado. Em 2009, fui com
ele a Auschwitz. A certa altura, ele vira-se para mim e diz
categoricamente: "Se eu soubesse onde o meu avô está enterrado, mijava
na campa dele."
Talvez uma das conseqüências de manter o passado em privado é que ele
fica por analisar. Brigitte diz-me que nunca visitou o Museu Nacional
do Holocausto. E, apesar de entender o valor de um museu para nos
recordar as atrocidades do passado, diz que deveria ser em Auschwitz
ou Israel e não em Washington. "Eles fazem sempre a coisa pior do que
ela é", diz. "É horrível, não suporto."
Quando lhe refiro que o seu pai confessou ser responsável pela morte
de mais de um milhão de judeus, argumenta que os britânicos
"arrancaram-lhe isso com tortura". "E o seu pai, o que recorda dele?",
pergunto.
"Era o homem mais simpático do mundo", responde. "Era muito bom para nós."
Brigitte acredita que o pai era um homem sensível e que sabia estar
envolvido em algo mau. "Tenho a certeza de que por dentro ele estava
triste", recorda. "É apenas uma sensação. A forma como ele estava em
casa, a forma como ele estava conosco, às vezes ele parecia triste
quando voltava do trabalho."
Brigitte luta por conciliar a dupla natureza do pai. "Ele tinha de ter
dois lados. Aquele que eu conhecia e o outro..."
Todas as noites a octogenária Brigitte dorme sob o olhar atento do seu
amado pai, Rudolf Höss.
Thomas Harding é autor de Hanns and Rudolf: The True Story of the
German Jew Who Tracked Down and Caught the Kommandant of Auschwitz
(Simon & Schuster Hardcover, Setembro de 2013).
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