domingo, 17 de junho de 2012

UM SILÊNCIO QUE GRITAVA

O assassinato do padre Antônio Henrique Pereira, ocorrido em maio de 1969, vai abrir a pauta das investigações da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, instalada na semana passada para apurar denúncias e informações sobre pernambucanos mortos e desaparecidos durante o regime de exceção.


Auxiliar direto de Dom Hélder Câmara – que, à época os militares rotulavam de arcebispo vermelho –, o padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto foi torturado até a morte, no Recife, entre a noite e a madrugada de 26 e 27 de maio de 1969. O crime, nunca esclarecido até a prescrição do processo aberto para apurar os fatos, teve o objetivo claramente político de tentar barrar, através da violência física, o arcebispo nas suas ações e pregações em defesa da liberdade.

A macabra lógica dos torturadores era esta: se a eliminação do próprio Dom Hélder não era recomendável porque repercutiria internacionalmente, deixando o governo brasileiro em situação delicada, o caminho era o assassinato de um auxiliar direto da Arquidiocese. Desta forma, deduziam eles, o arcebispo recuaria e o crime não teria grande repercussão porque a vítima, digamos assim, era “menos importante”.


Responsável pelo setor da Arquidiocese de Olinda e Recife que prestava assistência à juventude, o padre Henrique mantinha encontros inclusive com estudantes cassados e, em várias ocasiões, recebeu ligações telefônicas com ameaças de morte. A maioria delas partidas da organização denominada Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O padre não se curvou às ameaças e pagou um alto preço por isso.

O padre Henrique foi seqüestrado na noite de 26 de maio, no bairro de Parnamirim, depois de participar de uma reunião com um grupo de jovens católicos. De acordo com uma testemunha, ele acabava de sair do local do encontro, quando foi abordado por três homens armados que o levaram em um veículo de marca Rural, de cor verde e branca. Às 10 horas do dia seguinte, o corpo seria encontrado num matagal da Cidade Universitária.

À época, o governo ainda não havia instituído formalmente a censura à imprensa, mas, mesmo assim, os jornais foram proibidos de noticiar o assassinato do padre. A notícia só foi dada pelo Boletim Arquidiocesano (um informativo mimeografado da Igreja) e lida pelos padres de todas as paróquias recifenses. Mesmo sem notícias na imprensa, cerca de 20 mil pessoas acompanharam o enterro, numa caminhada entre igreja do Espinheiro e o cemitério da Várzea.

O assassinato do padre Henrique não funcionou para calar Dom Hélder Câmara, que continuou denunciando as injustiças sociais e lutando por liberdade, mas destruiu praticamente toda a família do sacerdote. Em depoimento ao extinto semanário recifense Jornal da Cidade, a 24/07/1981, dona Isaíras Pereira da Silva, mãe do padre, narraria o que se seguiu ao crime:

“Depois de assassinarem meu filho, começaram as perseguições. Um dia depois do enterro, o meu marido foi preso e, sob ameaça de tortura, foi obrigado a relatar nomes de pessoas que vinham aqui em casa e que eram amigas de Antônio Henrique.

Adolfo, meu segundo filho, que na época havia sido aprovado no concurso de oficial da Polícia Militar, passou a exercer dentro da PM funções de servente, sendo depois transferido para a Polícia Rodoviária, coisa que não tinha nada a ver com o concurso a que foi submetido. Fizeram o possível para sujar o seu nome, até que o ex-agente Wilson Maciel o envolveu com uns roubos de imagens sacras. Passou 11 meses preso e foi absolvido por falta de provas.


Pouco tempo depois, um outro roubo de objetos sacros ocorrido em Natal foi motivo para que o meu filho ficasse mais um tempo preso. No terceiro, o da imagem do Carmo em 1979, Wilson Maciel tenta culpá-lo e, como não consegue, o ameaçou de morte. Por conta disso, teve que viver foragido com a mulher e filhos.

Justo Henrique, um outro filho, foi preso três vezes como subversivo, porque na época era seminarista e isso tinha muito a ver com o irmão. Tanto fizeram que atualmente ele vive no exterior e, por medida de segurança, não mantemos nenhuma comunicação.

Existe um quarto filho que usa nome falso por ter fugido da prisão. Sofreu torturas e, para castigá-lo, eles disseram que meu filho andava espalhando por aí que ia se vingar. Meu marido, com os aperreios, morreu com uma úlcera gástrica. E eu, eu sou o palhaço da história. Sei quem matou meu filho e nada posso fazer.”

Em 1975, o Jornal da Cidade, veículo recifense da chamada imprensa alternativa, reconstituiu o episódio assim:

"A corda aperta-lhe o pescoço e o homem dobra as pernas, semi-asfixiado e cai de joelhos. Uma pancada de faca ou canivete no rosto e o sangue escorre, grosso, molhando o dorso nu e as calças.

Os vultos, ao seu redor, começam a se tornar ainda mais difusos e ele sente um impacto na face e, certamente, não sente o segundo, à queima-roupa, pouco acima da orelha. Dois tiros de mestre, convergindo para um só ponto do cérebro. O homem estende-se em meio à pequena clareira aberta no matagal e, nos últimos estertores da morte, agarra, com a mão direita, crispada, um tufo de capim.

Passava da primeira hora da madrugada de 27 de maio de 1969 e não era chegada, ainda, a terceira hora. Os olhos do homem estavam abertos, como abertos e cheio de espanto estavam os olhos do vigia Sérgio Miranda da Silva, quando o encontrou, estirado no chão, às seis e meia da manhã.

Antes das dez, o corpo estava identificado: era do padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, 28 anos de idade, visto com vida, pela última vez, por uma testemunha, quando era obrigado a entrar numa rural verde e branca.

Em 1989, numa entrevista para a emissora de televisão estatal de Pernambuco, Dom Hélder Câmara revelaria que, além de assassinar o Padre Henrique, a ditadura militar também proibiu toda e qualquer manifestação de protesto contra aquela violência:

- Quando nós chegávamos ao cemitério, eu recebi um aviso de que, se no cemitério houvesse a menor palavra contra os militares, a palavra de ordem era reagir de vez. Aí, quando terminou o enterro, eu disse: meus irmãos, tudo o que nós poderíamos fazer aqui na terra pelo nosso irmão Padre Henrique, nós já fizemos. Vamos rezar mais um Pai Nosso e, depois, vamos fazer uma experiência que nunca foi feita aqui em nossa terra: vamos oferecer a homenagem do silêncio, vamos sair do cemitério sem uma palavra, silêncio profundo!... Nunca eu ouvi um silêncio tão impressionante. Era um silêncio que gritava.




Por Sérgio Montenegro Filho (smontenegrofilho@gmail.com)


Nenhum comentário: