sábado, 15 de novembro de 2014

MARGOT E SEUS FANTASMAS




Margot Wolk tem hoje 96 anos. Incrivelmente passa a maior parte do seu tempo sozinha, acompanhada apena de suas lembranças e de seus fantasmas.

Não está senil, ao contrário, possui uma memória privilegiada. Mas, é comum encontrá-la falando sozinha, ou em posição de quem ouve algo que mais ninguém pode ouvir.

Segundo ela mesma, isso se deve às más memórias que costumam invadir seu quarto à noite, ou mesmo, seus sonhos durante a noite e a cestas nas longas tardes solitárias.

Margot, durante dois anos e meio, teve o pior emprego que alguém poderia ter. Um trabalho ao qual seus pesadelos parecem ainda estarem atados.

No final de 1942 o apartamento em que vivia sozinha em Berlim, já que seu marido estava no exército, em alguma parte do front de guerra, foi seriamente atingido durante um bombardeio. Ferida, com medo, e profundamente desorientada, decidiu ir para a casa da mãe, na cidade polonesa de Parcz.

Foi presa e tomada como uma espécie de desertora da pátria, e sem entender bem como, viu-se integrante de um grupo com 15 outras moças que passaram a ter a terrível missão de provar a comida que seria consumida por Adolf Hitler.

O “fuller” era obcecado com a idéia que pudesse ser envenenado. Esse medo foi ampliado com a descoberta da inteligência alemã que, os britânicos, realmente, pensavam algo nesse sentido. Nunca comia sem antes a refeição ser “testada”.

Todas as manhãs era levada por um carro oficial até um edifício escolar, onde, juntamente com as colegas, provavam as refeições do ditador.

Suas memórias a fazem rir quando lembra que nunca chegou a ver Hitler de perto, mas que chegou a brincar com seu amado pastor alemão “Blondi”. Ou com a alegria dela e das companheiras a cada vez que, passada uma hora após a ingestão dos alimentos, era considerada sobrevivente, e apta a trabalhar no dia seguinte.

“A comida era sempre vegetariana” conta ela, “ele nunca comeu carne. Muito arroz, noodles, ervilhas e couve-flor”.

Mas, predominam as tristezas do tempo em que, bela, aos seus 25 anos, ter sido violentada por um oficial das SS que insistia em achar que ela fosse judia.

Chora ao lembrar que algumas das moças choravam enquanto comiam, mas que comiam tudo, sempre, sob a vigilância das SS.

Chora pelas mesmas moças já que nenhuma além dela sobreviveu à barbárie dos soldados russos ao entrarem em Berlim e as identificarem como “secretárias” do Ditador.

Antes da chegada deles, dos russos, Wolk recebeu a ajuda piedosa de um auxiliar direto de Hitler, que a ajudou a voltar para Berlim e para seu apartamento ainda semi-destruído.

Incrivelmente, os russos não esqueceram da 16° provadora e a localizaram.

Foi presa, torturada, violentada durante 14 dias por tantos homens e tantas vezes que perdeu a conta.

As marcas da violência e da tortura ainda lhe transfiguram o rosto quando lembra.

Graças às torturas por que passou teve prejudicado seriamente seus órgãos internos a ponto de nunca poder realizar o seu sonho de um dia ser mãe.

Foi abandonada mais morta que viva e se arrastando voltou pra casa destruída.

Resolveu esperar Karl, o marido, se ainda estivesse vivo. E estava.

Karl reapareceu em casa em 1946. Estivera mais de ano preso num acampamento de guerra soviético. Pesava 45 quilos, tinha ferimentos em várias partes do corpo e um olhar perdido que parecia não se fixar em nada.

O olhar de Karl nunca mais voltou ao normal e logo, ambos perceberam que jamais iriam superar os traumas da guerra. Separaram-se. Ele morreu em 1990, ainda sem fixar olhar em nada.

Margot. Bem, Margot mora sozinha.

Mas se você a visitar em Berlim, não se espante se encontrá-la chorando sentada sozinha à mesa, sentindo a comida arder como veneno.

Olhando você chegar, provavelmente ela secará as lágrimas com a manga da camisa e dirá “são as más memórias... são as más memórias”.


Prof. Péricles

LOBO MAU E A DIREITA



Dia desses o velho e conhecido Lobo Mau apareceu na televisão.

Pior, em cadeia nacional que é transmitido para toda a floresta e que tem a maior audiência entre os animais.

Lobo Mau, com cara compenetrada, olhos profundos na câmera e um ar de “anjo vingador” anunciava que estava profundamente preocupado com as notícias que corriam acerca da caça indiscriminada que o leão estava fazendo a animais indefesos e carentes.

“Como pode”, dizia Lobo Mau, “Como pode um predador dessa natureza atacar ovelhinhas, cabritos, zebras e búfalos indefesos? Como pode um animal sanguinário atacar durante a noite e depois esconder suas patas como se nada tivesse acontecido?”.

“Não” continuou Lobo Mau, “de forma alguma iremos admitir uma coisa dessas. Estamos atentos. Exigimos investigação profunda da Polícia Florestal. Estaremos de guarda para exigir que todos os responsáveis sejam punidos, doa ao leão que doer”.

Essa imagem cabe perfeitamente a teatral aparição de Aécio Neves nos jornais televisivos buscando se cristalizar na posição de inocente e justo, senhor da ética, e representante da moral e dos bons costumes, exigindo ação exemplar no caso da Petrobras, que, logicamente, busca atingir o PT, e, especialmente a presidente Dilma Roussef.

A aposta da direita derrotada é aquela mesma que funcionou em 1964.

Criam escândalos mesmo onde nada existe, amplia suas conotações através da mídia na fórmula de Goebels de que uma mentira (ou meia verdade) repetida à exaustão torna-se uma verdade, clama aos valores tradicionais e conservadores colocando-se no lado oposto, assumindo uma postura de dono da ética.

A direita oculta o que verdadeiramente quer, reverter o resultado das urnas, numa espécie de terceiro turno, desprezando a democracia que utiliza apenas para seu próprio benefício.

Nessas horas, todo cidadão responsável, deve, antes de sair repetindo como papagaio de pirata o que “ouviu dizer” questionar o direito de imagem do Lobo Mau.

Assim como é de se perguntar quem é o Lobo Mau para exigir do leão uma postura vegetariana se ele mesmo é uma besta predadora, quem é o homem cujo aeroporto construído nas terras privadas de sua família com dinheiro público, para cobrar posturas e se pretender dono da ética e da verdade.

Prof. Péricles

domingo, 9 de novembro de 2014

ENTREGA-ME AO VENTO



A Iraniana Reyhaneh Jabbari, detida desde 2007, quando tinha 19 anos, foi enforcada no sábado, acusada de ter matado o homem que a tentara violar. A sua confissão fora obtida sob ameaças e tortura e as organizações de direitos humanos mobilizaram-se, sem êxito, para que tivesse um julgamento justo.

A carta escrita por ela em abril foi entregue a militantes pacifistas, mas só agora foi revelada.

Nela dirige-se à sua mãe, Sholeh Pakravan, que tinha pedido aos juízes para ser enforcada em vez da sua filha. Na última semana antes do enforcamento, Sholeh só pode ver a filha durante uma hora, acabando por saber da execução com apenas algumas horas de antecedência e através de uma nota escrita.

Eis a carta, tire dela as lições que melhor tocarem seu coração:

“Querida Sholeh, recebi hoje a informação de que chegou a minha vez de enfrentar a qisas [a lei de retribuição do sistema legal iraniano]. Estou magoada por não me teres deixado saber através de ti que cheguei à última página do livro da minha vida. Não achas que tenho o direito a saber? Sabes o quanto me envergonha saber que estás triste. Porque não me deixaste beijar a tua mão e a do pai?

O mundo permitiu-me viver durante 19 anos. Aquela noite assustadora foi a noite em que eu deveria ter sido morta. O meu corpo seria atirado para um qualquer canto da cidade, e dias depois, a polícia chamar-te-ia ao departamento de medicina legal para me identificar e também saberias que fui violada. O assassino nunca seria encontrado pois nós não temos a riqueza e o poder deles. Tu irias continuar a tua vida em sofrimento e envergonhada, e poucos anos depois morrerias desse sofrimento e nada mais haveria a dizer.

No entanto, esse golpe amaldiçoado alterou o rumo da história. O meu corpo não foi atirado para um lado qualquer, mas sim para a sepultura que é a Evin Prison. Mas entrega-te ao destino e não te queixes. Sabes melhor do que ninguém que a morte não é o fim da vida.

Ensinaste-me que cada um de nós vem a este mundo para ganhar experiência e aprender uma lição e que cada pessoa que nasce tem uma responsabilidade depositada nos seus ombros. Aprendi que, por vezes, temos de lutar.

Quando me apresentei em tribunal aparentei ser uma assassina a sangue-frio e uma criminosa implacável. Não verti lágrimas. Não implorei. Não me desmanchei a chorar pois confiava na lei.

Mas, este país, pelo qual cultivaste um amor em mim, nunca me quis e ninguém me apoiou quando, perante as investidas do interrogador, eu gritava e ouvia as palavras mais obscenos. Quando o meu último indício de beleza desapareceu, ao cortar o meu cabelo, fui recompensada: 11 dias na solitária.

Querida Sholeh (mãe), não chores pelo que estás a ouvir. No primeiro dia na esquadra, um agente velho e não casado, magoou-me por causa das minhas unhas e eu percebi que a beleza não é desejável nesta era. A beleza das aparências, dos pensamentos e dos desejos, uma caligrafia bela, a beleza do olhar e da visão e até a beleza de uma voz agradável.

Minha querida mãe, a minha ideologia mudou e tu não és responsável por isso. As minhas palavras não têm fim e dei tudo a alguém para que, quando for executada
sem a tua presença e conhecimento, te seja dado a ti. Deixo-te muito material manuscrito como herança.

No entanto, antes da minha morte quero algo de ti, algo que tens de me dar com todo o teu poder, custe o que custar. Na verdade, isto é a única coisa que eu quero deste mundo, deste país e de ti. Sei que precisas de tempo para isto.

Posto isto, vou-te revelar parte do meu testamento mais cedo. Por favor, não chores e presta atenção. Quero que vás ao tribunal e lhes faças o meu pedido.

Não posso escrever tal carta, a partir da prisão, que fosse aprovada pelo diretor; mais uma vez terás de sofrer por mim.

Minha mãe bondosa, querida Sholeh, mais querida para mim que a minha própria vida, eu não quero apodrecer debaixo do solo. Não quero que os meus olhos ou o meu jovem coração se transformem em pó. Implora para que, assim que eu seja enforcada, o meu coração, rins, olhos, ossos e tudo o que possa ser transplantado, possa ser retirado do meu corpo e dado a alguém em necessidade, como uma doação.

Não quero que o destinatário saiba quem sou, que me envie um ramo de flores ou até que reze por mim.

Do fundo do meu coração te digo que não desejo ter uma sepultura onde tu venhas chorar e sofrer. Não quero que vistas roupas pretas por mim. Faz o teu melhor para esquecer os meus dias difíceis.

Entrega-me ao vento para me levar.

O mundo não nos amou. Não quis o meu destino. E agora entrego-me a ele e abraço a morte pois no tribunal de Deus eu vou acusar os inspetores, vou acusar o inspetor Shamlou, vou acusar o juiz e os juízes do Supremo Tribunal que me espancaram quando e que não se absteram de me intimidar.

No tribunal do criador eu vou acusar o Dr. Favandi, vou acusar Qassem Shabani e todos aqueles que, por ignorância ou pelas suas mentiras, fizeram-me mal, passaram por cima dos meus direitos e que não tiveram em conta o fato de que, por vezes, o que aparenta ser realidade não é.

Querida Sholeh de coração mole, no outro mundo tu e eu seremos quem acusa e os outros, os acusados. Veremos qual é a vontade de Deus. Quero abraçar-te até que a morte chegue.

Amo-te.”

Tradução da carta por Francisco Ferreira


sábado, 8 de novembro de 2014

DIFERENÇAS QUE ENCORAJAM



Embora não seja um pensamento unânime, cresce o número de brasileiros que entendem estar havendo um planejamento para golpear o mandado da recém eleita presidenta Dilma Roussef.

Segundo alguns, já existe, nos subterrâneos do poder, um projeto de conspiração.

Essa conspiração seria alimentada, externamente por empresas supranacionais interessadas na exploração dos lucros do pré-sal brasileiro e por organizações norte-americanas que temem o surgimento de novas hegemonias e, internamente por sócios desses interesses externos além das forças políticas mais sectárias do país – o grande latifúndio e o grande capital, assustado com o crescimento político de seus “subalternos”.

No texto anterior, vimos algumas semelhanças de hoje com o período pré-golpe de 1964 e, ficamos alarmados em perceber que não são poucos esses sinais. Isso, que não nos detivemos mais tempo na análise que poderia incluir uma crise na Petrobras em janeiro de 64 e ainda, o desejo do presidente João Goulart de criar um programa de bolsa família nos moldes que existia na França.

Entretanto, existem diferenças nos dois contextos, interno e externo, que, nos permitem o otimismo de acreditar que o final não será o mesmo.

A começar pelo contexto internacional. Embora hoje, haja um movimento forte vindo do exterior que busque frear o avanço das esquerdas na América Latina, não existe, nem de perto, a urgência assustadora dos tempos da Guerra Fria. Em 1962 Estados Unidos e União Soviética quase deflagraram a terceira Guerra Mundial com a crise dos mísseis em Cuba. Era recente a oficialização do sistema socialista na ilha de Fidel e os nervos estavam em pandarecos em Washington. Por isso, um fazendeiro, articulador e de centro, como Jango, era visto por lá como um “perigoso comunista”. Hoje, o cenário mundial não permitiria o mesmo apoio das potencias capitalistas, particularmente da Europa, a um golpe no Brasil.

Outra grande diferença é a própria situação econômica do Brasil. Enquanto nos anos 60 o Brasil atravessava uma grave crise inflacionária que se iniciara no governo JK e se ampliava por seu atrelamento ao capital privado internacional, hoje, o Brasil passa por uma situação econômica, que, apesar de não ser confortável, está longe de ser crítica. O crescimento econômico dos últimos anos, por menor que seja, é significativo diante da estagnação econômica os países ricos e da recessão vivida por alguns países importantes da economia mundial. A inflação, como sempre, exige atenção, mas, não se percebe sinais de descontrole.
O Brasil hoje atraí mão-de-obra, o que é muito representativo em se tratando de estabilidade econômica. E, o mais importante, apresentamos índices de desemprego abaixo de 5% o que é considerado pela ONU como emprego pleno.

Nosso povo também mudou muito desde 64.

Se naquela época havia a lembrança de uma ditadura que “tinha sido boa para o trabalhador” que foi o Estado Novo Varguista (1937-1945), hoje, temos a recordação dolorosa da Ditadura Militar e de seus crimes contra a liberdade, a dignidade e os direitos humanos.

Embora os reacionários de ontem sobrevivam na mesma mentalidade dos reacionários de hoje, não é de se acreditar que a maioria do povo brasileiro possa apoiar um golpe, e estamos nos referindo também aos eleitores da oposição ao atual governo.

Finalmente, mas não por fim, é de se lembrar que na década de 60 o conhecimento sobre a própria situação era bastante restrita, sendo o Brasil, um país ainda de características rurais e com meios acanhados de divulgação das idéias políticas e de chamamento ao debate. Atualmente, vivemos tempos de internet onde a informação se divulga e se expande com a velocidade de um clic. As mentiras e malícias, por isso, são mais difíceis de serem desmascaradas.

Sem sombra de dúvidas, existem fumaças no ar. Mas, podemos acreditar que o ranço autoritário se deva muito mais à perda de uma eleição disputadíssima e a perdedores pouco afeitos à democracia.

As diferenças com o passado são reais e nos permitem encarar futuro com ânimo e coragem. Animados pela alegria da construção de uma sociedade mais justa e com a coragem dos que sabem que as forças conservadoras e do atraso não podem jamais serem subestimadas, mas que, jamais, conseguirão impedir o avanço da história.

Prof. Péricles

domingo, 2 de novembro de 2014

SEMELHANÇAS PERIGOSAS




Em 1964 a presidência era exercida por João Goulart, democraticamente eleito para o cargo de vice-presidente, em 1960 e legalmente empossado com a renúncia do presidente em agosto de 1961.

Hoje o cargo de presidente é exercido por Dilma Roussef, democraticamente eleita em 2010 e reeleita em 2014.

Em 1964 as forças conservadoras e golpistas eram lideradas no Brasil, por partidos travestidos de democratas, como a UDN, mas que, na verdade conspiravam contra a democracia. Suas lideranças populistas contavam com políticos como Carlos Lacerda, vulgo, o Corvo, um notório conspirador e alimentador de golpes, além de Ademar de Barros, governador de São Paulo, Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais e outros.

Hoje, as forças conservadoras e reacionárias não encontram em nenhum partido ou liderança pessoal, capacidade de vitória nas urnas, e são lideradas pela própria mídia que no uso de concessões públicas assumiram o papel de oposição ao governo instituído.

Em 1964 os interesses externos e seus aliados internos temiam perder privilégios a partir do reconhecido nacionalismo de Jango que, havia conseguido um grande triunfo ao aprovar no Congresso a Lei que criava embaraços ao envio dos lucros das multinacionais ao exterior, exigindo que esse capital ficasse no Brasil por um tempo mínimo estabelecido.

Atualmente, o capital supranacional sofre com os limites impostos à exploração do pré-sal brasileiro e sonha com os astronômicos lucros que poderiam angariar sem esses limites.

Em 1965 haveria eleição para presidente e os golpistas temiam que João Gourlart fosse lançado candidato o que seria fatal para a candidatura de Lacerda.

Atualmente o país saiu de um disputado processo em que as forças conservadoras, mais uma vez foram derrotadas e temem a volta de Lula em 2018 o que, praticamente decretaria nova derrota desses grupos.

Em 1964, os reacionários organizaram as “Marchas da Família Com Deus pela Pátria”, movimentos de forte apelo a valores tradicionais que pretendiam contrastar com o suposto “comunismo” do presidente da república, exemplificado por esses movimentos, com as Reformas de Base, defendidas por Jango.

Atualmente essas mesmas forças buscam criar movimentos que defendam os mesmo valores “patrióticos” contra uma esquerdização do governo, exemplificado em seus programas sociais, como o Bolsa Família.

Em 1964, o presidente não agiu de forma firme contra esses grupos acreditando na fidelidade do governo, garantida pelo Ministro da Guerra Assis Brasil, e foi derrubado em 31 de março daquele ano. Não resistiu ao golpe, e preferiu o exílio. O país mergulhou num movimento militar que se anunciava “democrático”, mas que se tornou ditadura e se radicalizou em 1968, mergulhando o país em 20 anos de trevas onde prisões ilegais, torturas, mortes e todo tipo de violência do estado foi permitida.

Hoje, não se percebe do governo, disposição para radicalizar a democracia e ir fundo no desmascaramento de golpistas que seguem impunes formulando suas teorias de conspiração.

As semelhanças são muitas. O final será o mesmo?

Para que serve a história se não para impedir que se recorra aos mesmos erros?

Fique atento. A história, somos nós.


Prof. Péricles
















sexta-feira, 31 de outubro de 2014

VICTOR JARA, A VOZ CALADA DO POVO


Por Nashla Dahás

Segundo o historiador Gabriel Salazar, desde que o Chile iniciou sua vida independente, o "baixo povo" já estava preso, proibido de manifestar-se nas ruas e praças públicas. O carnaval, chamado la challa, foi excomungado justo quando essas pessoas não tinham trabalho estável nem reconhecimento social como cidadãos; a população mestiça passava por processo de estigmatização e desterramento, todos classificados como vagabundos.

Seguiu-se a repressão moral policial, ou a opressão pela via do mercado (exclusão), que, gradualmente, foram extinguindo as formas de expressão cultural popular. Diz Salazar que até 1890 essas expressões teriam mesmo desaparecido.

Na década de 1910, porém, um intervalo de meio século nesse quadro de repressão das festividades populares foi possível por conta da criação das "casas asiladas", ou prostíbulos onde a "classe trabalhadora buscou refúgio para reavivar e celebrar o 'carnaval' de sua identidade, reacendendo no sangue do corpo a historicidade da alma".

Mas após 1973, e até os dias atuais, esse refúgio foi desmantelado pela repressão cultural da ditadura e, depois, do neoliberalismo. Exilada por completo do espaço público, a festa popular estaria agora em qualquer parte, em qualquer lugar, e de qualquer modo, a propósito de qualquer coisa, com mais violência que alegria, com muito mais agressividade do que liberação.

Foi nesse intervalo, porém, que Victor Jara se tornou conhecido.

Diretor de teatro e professor universitário; viu suas canções ganharem a forma de representações do sentimento popular chileno e foi acolhido nas áreas mais pobres do país. Sempre acompanhado de um violão, circulam hoje versões sobre sua morte que incluem um capítulo em que os militares arrancam as suas unhas e depois cortam partes da ponta de seus dedos para que ele nunca mais possa tocar. "Victor tocava com a pele dos dedos e não com as unhas, tinha uma técnica própria e continuou tocando e desafiando a ditadura a calar o nosso povo", contam alguns.

Dizem outros que ele teve as duas mãos quebradas e posteriormente decepadas. Joan Jara, a viúva do cantor, afirma que o oficial que coordenava a sessão de tortura ainda teria mandado sadicamente que ele cantasse depois disso. Jara teria levantado e cantado "Venceremos", um dos hinos dos movimentos revolucionários chilenos e das mobilizações dos anos 70.

Amigos que estiveram com ele no campo de concentração do Estádio Nacional, por sua vez, dizem que ele foi um dos primeiros a serem espancados publicamente, e depois seu corpo só tornaria a ser visto morto numa das primeiras levas de corpos que saíram do estádio no dia 16 de setembro de 1973, menos de uma semana após o golpe civil-militar que levou o general Augusto Pinochet ao poder.

Mitos, depoimentos, memórias individuais e coletivas; esses fragmentos de histórias do golpe e da ditadura, são hoje elementos de uma crise moral republicana que, a cada dia, experimenta formas de lidar com essas lembranças.

Onde foi parar o "mal estar interno" sobre os qual as músicas de Victor Jara falavam e ou traduziam; ou a ira que caracterizou grupos políticos como o Movimiento de Izquierda Revolucionario, a unir teorias e fuzis em nome de um projeto de nação alternativo ao que se vivia?

Perguntando-nos hoje se algo como a “Unidade Federativa das Nações Latino Americanas sob o regime socialista” defendida por alguns movimentos políticos chilenos nos anos 60 e 70 era possível, a resposta tenderá a ser negativa e a ideia provavelmente parecerá muito mais velha do que realmente é.

Talvez isso decorra do empenho, em parte bem sucedido, das ditaduras latino-americanas em construir uma memória desqualificadora do pré-golpe, em eliminar os seus vestígios humanos e institucionais. Ou ainda, talvez resulte do efeito que o fracasso das guerrilhas causou em alguns de seus líderes, convertidos voluntariamente nas décadas seguintes, ou, talvez, sob tortura, em novos adeptos das democracias capitalistas.

Não convém, entretanto, aprofundar-nos nestas questões, mas denunciar e, se possível, conceituar a ação do terrorismo de Estado, e a dor pelos mortos, o temor e a passividade gerados pela violência golpista, não apenas no Chile, mas também no Brasil.