sábado, 26 de abril de 2014
CANUDOS E SEUS HERÓIS
Havia também seu Tenório. Seu Tenório era um homem forte, apesar da idade. Mantinha nos músculos a mesma bravura dos tempos em que atacava os canaviais com o facão na mão, como os turcos devem ter atacado Constantinopla. Seu Tenório não falava, nunca falava nada, mas cortava cana como ninguém, um dos melhores cortadores do sertão. Mas era coxo, porque, certa vez caiu do caminhão quando ia pra outra fazenda cortar mais cana, pois essa era sua vida, e nunca mais voltou a andar direito. Às vezes as partes se consertam errado e o corpo fica assim, virado, no caso de seu Tenório, coxo.
O menino Zeca pensava nas histórias de seu Tenório olhando seu corpo sem vida, com um rombo na cabeça capaz de caber uma mão fechada com punho e tudo.
Menino Zeca, de apenas 13 anos, seu Tenório e Zé Rufino eram os últimos defensores de Belo Monte.
Morria o sol no seu poente por trás das costas do menino Zeca, e ele, o corpo de seu Tenório e mais a direita Zé Rufino, era o que sobrara de Canudos naquele 05 de outubro de 1897.
Depois de três campanhas derrotadas e muitas baixas de homens e mais ainda no moral, as tropas da Capital finalmente rompiam as últimas fileiras de defesa entre os inimigos.
Não havia sobreviventes. Todo mundo que ficou morreu e quase todo mundo ficou naquele pedaço de chão maldito que Deus fez questão de passar olhando para o outro lado. Todo mundo do lado do santo, claro, do lado do Arraial, os homens do Conselheiro. Homens, e meninos, pensou o menino Zeca carregando o bacamarte.
Os homens fardados do exército e até mesmo os não fardados, mas que ganhavam dinheiro pra lutar estavam agora a descoberto e se aproximavam de Canudos, ou melhor, de Zé Rufino e do menino Zeca.
Tem coisa que criança não entende. Como pode alguém ganhar dinheiro pra lutar? Se pudesse, estaria longe. Se não tivesse que ficar mais velho bem ligeiro pra lutar pela vida, estaria distante dois poentes de onde estava agora. Estaria nas águas frias do açude que conheceu uma vez quando o pai mostrou.
Menino Zeca lembrou das marchas fúnebres de gente carregando o caixão, mas agora não tinha caixão e a marcha não era pro enterro, era pra matar os mortos. Pra matar de novo seu Tenório, ele e a Zé Rufino.
Eles foram os últimos.
E quando o sol redondo, imenso e vermelho se escondeu de vez, nas costas do menino Zeca, só havia fumaça e silencio.
... e nenhum sobrevivente.
Mas não foi a última vez que o Menino Zeca morreu.
No país em que meninos e cortadores de cana são bandidos e coronéis e mercenários são heróis, menino Zeca morre todos os dias, porque toda favela é um pouco Canudos e todo trabalhador é um pouco Seu Tenório, só não é coxo talvez, mas então será manco de outra coisa.
No pais de tantos Belo Montes e poucos conselheiros, poucos conselhos falam mais do que a marcha fúnebre em seu silencio de fim detarde, de sol forte e vermelho, vermelho como o sangue derramado de inocentes.
Busca-se o refrigério como sedentos buscam a água fria do açude, mas não há refrigério quando o que queima é aquela dor que não se sabe onde dói, porque fome dói no corpo todo e solidão é como febre, só que febre a gente vê no fiozinho do termômetro e solidão não aparece pois se confunde com outras dores.
Solidão se confunde com má cachaça, aquela que faz mal porque desce a garganta e liberta o mostro que a gente esconde no estômago.
Solidão se mistura com dor no peito, dor nas costas, dor nas pernas, dor em tudo até mesmo o sonho que se quebra e dói em nós, às vezes mais do que braço quebrado.
Sossega Menino Zeca, pega o caminho que vai pro oeste, atrás do sol que te aquece.
Deixa a guerra para os que ainda resistem aos generais, turcos, mercenários e coronéis.
São tantos Canudos, Menino Zeca, descansa com Seu Tenório, Zé Rufino e os outros 20 mil.
Observações
1. Canudos foi tomado pelo exército ao entardecer do dia 5 de outubro de 1897.
2. Não houve prisioneiros entre os resistentes e segundo Euclides da Cunha, os últimos defensores mortos foram uma criança, um velho e um coxo.
3. O comandante das forças oficiais era Antônio Moreira Cesar, de quem Antônio Conselheiro tinha sonhos desde a adolescência sem saber por que.
4. O nome “Canudos” veio de uma planta bem comum na região chamada “canudo-de-pito” muito utilizada como fumo.
5. Estima-se que cerca de 20 mil sertanejos morreram na Guerra de Canudos.
6. Canudos deveria ser destruído porque esse era o desejo dos coronéis locais irritados com a mão de obra cada vez mais cara nos canaviais, já que milhares abandonavam tudo para viver no Arraial.
7. A Igreja também exigia o fim de Canudos pois temia a perda crescente de fiéis.
8. Canudos era uma Sociedade Alternativa e sua história ainda não foi completamente contada.
Prof. Péricles
sábado, 19 de abril de 2014
MORFEU
MORFEU
Hipnos era um dos deuses capazes de interferir no espírito dos mortais. Filho de Nix, a deusa da noite, Hipnos era deus do sono e irmão de Tânato ou Thanatos, o deus da morte.
Os romanos o chamavam de Somnus, de onde vem o nosso vocábulo, sono.
Hipnos tinha os cabelos dourados, e, principalmente em Esparta, era sempre representado ao lado de seu irmão, Thanatos, que tinha os cabelos cor de prata.
Vivia num palácio, num mundo muito distante e dormia muito, sendo nisso auxiliado pelo murmúrio do rio Lete, o rio do esquecimento.
Teve muitos filhos que eram chamados de Onírios, personificações do estado profundo de letargia (estado onírico). Entre eles, Icelos, Forberto, Morfeu e apenas uma filha, Fantasia.
Antes de ser amada, Fantasia era temida, pois podia simbolizar o devaneio e a morte.
Mas, um filho extremamente popular de Hipnos, era Morfeu, o deus dos sonhos, especialmente dos sonhos eróticos.
Segundo a mitologia, ele tinha a propriedade de assumir qualquer forma humana (no grego a palavra Morfeu vinha de moldar a formar), penetrar na mente dos mortais e conduzir seus sonhos.
Morfeu era descrito por Ovídio como um homem de forma jovem, de roupas escuras (geralmente apenas uma peça enrolada ao corpo), que dormia numa cama feita de ébano numa escura caverna decorada com flores. Seus olhos eram negros como a noite “pontilhada por estrelas brilhantes”. Morfeu era bajulado pelos outros deuses pois, conhecendo seus sonhos, conhecia todas as fraquezas, erros e desejos mais secretos de seus espíritos.
Certa vez, perambulando pelos sonhos de Zeus, descobriu que o “deus dos deuses” não sonhava com a esposa Hera, e sim, com outras mulheres. Consta que foi a partir daí que Zeus passou a adula-lo como um de seus mais importantes conselheiros em assuntos complicados.
Já Homero dizia que ele vivia em Lemmos, era representado como um jovem de asas e que tocava uma flauta na frente dos homens para fazê-los dormir.
Ao pesquisar uma droga que aliviasse a dor dos ferimentos de guerra, cientistas do século XX denominaram de Morfina (em homenagem a Morfeu) uma substância que, se não curava, ao menos fazia relaxar, dormir e sonhar, as vítimas de ferimentos fatais.
Certa vez, Venus perguntou por que as pessoas sonham tanto, ao que o deus dos sonhos respondeu que são os sonhos que nos fazem vivos e, os que não sonham, na verdade, já morreram.
Para viver, sonhar é preciso.
Bons sonhos, e durmam, nos braços de Morfeu.
Prof. Péricles
terça-feira, 15 de abril de 2014
O VENENO DA INVEJA
Ser pobre no período colonial, e posteriormente, na Monarquia brasileira, não era tão terrível assim, já que havia os escravos. Sim, mesquinhamente pensavam, somos pobres mais não somos escravos. Esses desgraçados sim é que vivem uma vida insuportável. Talvez isso explique porque o Brasil foi o último país a acabar com a escravidão, já que, o apoio à causa abolicionista era muito pequeno, quase nenhum, restringindo-se na maioria das vezes, aos intelectuais e abastados.
A inveja no Brasil não é por alguém que tenha mais, e sim por alguém que possa vir a ter mais do que ele mesmo tem.
É uma inveja, uma mesquinharia antropológica, que atualmente se vê, sem embustes, na parcela mais conservadora de nossa sociedade que lamenta que pobre já possa ter plano privado de saúde, escolher o melhor emprego, e, oh céus, ter carro e andar de avião.
Sobre isso o grande Ovídio, da sábia Grécia, nos deixou um relato primoroso. A história de Aglaura.
Dizia Ovídio que, certa vez o mensageiro dos deuses, Hermes, voava sobre Atenas quando viu três beldades desfilando graciosamente sobre as ruas da cidade. Eram as três filhas do rei Cécrops – Aglaura, Pandrosa e Herse.
As três eram lindas, mas Herse... Herse era simplesmente demais. A mais bela das três, com um rosto de anjo e um corpo de ninfa. A beleza magnífica de suas duas irmãs eram obscurecidas pela beleza de Herse.
A paixão foi fulminante, como costumava ser com os deuses e Hermes esqueceu de sua missão, coisa que jamais lhe acontecia, descendo até a Terra com aquela cara de bobalhão que nós homens mortais ou imortais ficamos nessas horas.
Ao se aproximar da casa, Aglaura foi a única que o percebeu e veio até a porta recebê-lo.
Hermes foi gentil pois esperava estar falando com a futura cunhada, e contou pra ela da intensidade da paixão e divina excitação que o atingira ao ver sua irmã Herse.
Aglaura se mortificou de raiva, disse que talvez em outra ocasião, se rolasse algum suborno, mas que agora não e que ele tinha mais é que ir embora.
Hermes era um Deus brando, nada irado como alguns de seus irmãos e por isso, foi embora, desapontado e se sentindo infeliz.
Sua tristeza foi percebida pela deusa Atena que procurou saber dele o que estava acontecendo e ele relatou os fatos, da paixão, da grosseria de Aglaura e de seu desapontamento.
Atena ficou fula da vida, até porque já não ia mesmo com a cara de Aglaura e resolveu agir, com aquela delicadeza das deusas gregas. Chamou a Inveja e mandou visitar a desafeta e caprichar no serviço.
A Inveja foi ao Palácio quando Aglaura dormia e soprou o seu hálito peçonhento em suas narinas, espalhando seu veneno pelo sangue, pelos ossos, pela alma da coitada.
Para maltratar um pouco mais, insuflou na mente de Aglaura as imagens, detalhadas de uma união feliz entre Herse e o deus. Beijos, sexo, sorriso, filhos, quadro a quadro na memória da mortal.
Desde o despertar daquela noite, Aglaura nunca mais teve sossego. Via a irmã e a imaginava voando nos braços de Hermes, ganhando presentes dos outros deuses, que seriam seus cunhados, sendo linda eternamente, sendo feliz e feliz e feliz...
Ela não sentia qualquer atração por Hermes, até não simpatizava com a cara dele, mas a felicidade de Herse que ele poderia proporcionar... ah, isso doía até em suas entranhas.
No dia que Hermes se encheu de coragem e voltou ao Palácio, Aglaura estava tão desesperada que simplesmente se deitou diante da porta para impedir sua passagem. O deus tentou afastá-la, com palavras doces, mas ela declarou que iria ficar ali para sempre; Hermes, impaciente (até ele podia perder a paciência) respondeu que concordava - e tocou-a com seu bastão mágico. Imediatamente, Aglaura percebeu que estava perdendo os movimentos. Um frio mortal foi tomando todo o seu corpo; ela sentiu o peito virar pedra, e suas feições também se enrijeceram e ela ficou ali, como uma estátua inútil, que nem ao menos era de pedra branca, mas de uma pedra escurecida pela chama negra da inveja.
A classe média brasileira, nesses tempos de ódio mal dissimulada à Bolsa Família, e aos programas sociais do governo que ao começar combatendo a fome acabou por tirar milhões da linha da miséria, não se felicita pela alegria de seus irmãos brasileiros, e nega-se a participa do que seria uma festa de inclusão. Temem a perda de uma camada "inferior" que lhe tire o equilíbrio.
As mentes reacionárias preferem se deitar diante da marcha dos acontecimentos, criando obstáculos, sem perceber que, como Aglaura, podem se tornar pedra, como pedra ameaça ficar seu coração
Prof. Péricles
domingo, 13 de abril de 2014
HERÓIS ?
Por Emilio Ivo Ulrich
Eu era um garoto nascido em São Valério do Sul, no Rio Grande do Sul. Com 11 anos fui morar em Porto Alegre com a família. Presenciei toda a movimentação, desde quando Jânio Quadros renunciou ao governo federal, e a resistência que Leonel Brizola organizou no Brasil, com base no Rio Grande do Sul. Meu pai era brizolista e acabei entrando no movimento estudantil. Me tornei presidente de grêmio, essas coisas. Estava sempre na rua, porque trabalhava na rua como jornaleiro, mas não desses de banca de jornal, desses de vender jornal na rua. Então eu acompanhava tudo, naturalmente, os fatos estavam sempre na primeira página do jornal, mas eu estava vendo, estavam na minha frente: as mobilizações, as manifestações, a pancadaria, a movimentação de tropas.
Ainda em Porto Alegre, ingressei em um movimento vinculado inicialmente a uma dissidência do Marighella, mas não participava diretamente. Mesmo assim, fui perseguido e tive de sair de Porto Alegre. A casa da minha mãe foi invadida várias vezes e tive umas três ou quatro prisões, meus irmãos também. Conheci um pessoal que tinha vindo a São Paulo para entrar na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Eles tinham feito treinamento para entrar na guerrilha com o capitão Lamarca, mas, como foi a ALN (Ação Libertadora Nacional) que fez o contato comigo, por algum tempo fiquei circulando com eles. Depois, aconteceram várias quedas e perdi o contato com a ALN. Encontrei o pessoal da VPR que me conhecia. Então, passei a dar apoio, alguma infraestrutura a eles. Me vinculei ao Yoshitami Fujimori, comandante da VPR em São Paulo e fiz panfletagem, campanha pelo voto nulo nas eleições de 1970, guardei arma. Tudo o que eu falo aqui está nos autos.
Em 20 de novembro de 70, depois de uma sucessão de quedas, fui preso. Companheiros meus que foram presos disseram sob tortura que uma das maneiras de conectar a VPR era por meio do "gaúcho", "alemão", ou seja, eu. Acabei indo preso, na baixada do Glicério. Ai começou a outra história.
Não fui surpreendido. Sabia que um dia poderia ser preso, porque todo dia ocorriam quedas e mortes. No momento em que fui preso, na rua Tutóia, no DOI-Codi, às 5h30 da manhã, passei a ser torturado, porque eles queriam que eu dissesse onde estava o Fujimori. Por conta dele, foram 15 dias de tortura. Todos os tipos de tortura descritos, pau de arara, choque elétrico, cadeira do dragão, além do espancamento.
Em 5 de dezembro, o Fujimori foi encontrado, entregue pelo famoso Cabo Anselmo. Ele foi metralhado. Quando ele chegou, 5 de dezembro à tarde, no porta-malas de uma caminhonete Veraneio, estava vivo. Metralhado, mas vivo. Dois companheiros foram lá reconhecer. Depois, foi dado como desaparecido, até que ele ‘“apareceu” clandestinamente, no cemitério da Vila Formosa.
Aquele dia, a noite inteira, houve festa no DOI-Codi. Vários companheiros dizem que todo o DOI-Codi eram financiados pelos empresários. Eu sou testemunha disso, porque no dia seguinte, às 6 horas, tomei café e o carcereiro me chamou para subir. Subir era sair da cela, atravessar o DOI-Codi e ir pra sala de tortura. No pátio, percebi o que ele queria. Havia umas tendas e estava tudo sujo. Tinha guardanapo, bandeja, papel, copo, garrafa de bebidas, cachaça, champanhe. O carcereiro me mandou limpar tudo, mas eu estava com as mãos machucadas, então fui lavar um tanque, que estava entupido por causa de vômito. Aproveitei e puxei uma conversa: “Houve uma festa aqui?” Ele: “É”. Eu: “Foi por causa do Fujimori?” Ele: “É. Acabamos com ele”. Eu: “Quem é que teve ai nessa festa?” Ai ele usou uma expressão: “Só gente graúda.”
Após a morte do Fujimori, as torturas tinham intuito de me fazer passar os contatos de outro gaúcho, chamado Laertes Dorneles Méliga. A tortura piorou ainda mais. Levei um “pau” de 15 dias pra dizer aonde estava o Laerte. Fui torturado no DOI-Codi de 20 de novembro a 20 de dezembro. Não tinha mais informações. Depois de 30 dias de tortura, fui retirado do DOI-Codi e levado por 60 dias pro DOPS do delegado Fleury. Ai foi outro tipo de tortura, ameaças, interrogatórios duas ou três vezes por semana. Cheguei bem machucado e por três vezes fui ao Hospital das Clínicas. Depois, fiquei mais seis meses no presídio de Tiradentes, já processado, já denunciado.
É difícil me recuperar depois desse fatos. Levei muito choque no ânus, no pênis, na orelha, na língua. Por conta disso, saí muito traumatizado. Levei dois, três anos para me recuperar e arrumar trabalhos. Eu até tinha condições físicas, mas me tornei um alcoólatra. Bebia principalmente à tarde e à noite. E comecei a escrever, tenho mais ou menos mil e quinhentas páginas contando o que é a tortura e como é o comportamento do torturador.
Ninguém foi punido, nem com a morte. Escrevi a poesia para que de alguma forma fique conhecido. No meu caso é uma sequela, mas é uma sequela relatada. Eu chorei muito. Primeiro, só falava chorando, hoje falo sem chorar. Já estive no Memorial da Resistência, prestei depoimento, nas comissões, sem chorar. Por meio da Comissão da Anistia fiquei sabendo da Clínica do Testemunho. Agora, sinto muito ódio dos meus torturadores, e transfiro meu ódio para o Exército brasileiro e os civis que ajudaram a bancá-los.
Sempre gostei do Exército, tinha admiração pela figura do Duque de Caxias, admirava muito os militares. Depois da 2ª guerra, havia aqueles documentários dos heróis da FEB e eu adorava ver os pracinhas desembarcando do navio depois de ter derrubado Hitler e Mussolini. Eu ficava encantando. Mas um belo dia, aqui no Brasil, os caras põem tanques na rua e começam a dar pau no povo. Ai eu falei: “sabe de uma coisa? A gurizada tem razão, vamos enfrentar esses caras.”
As pessoas, nos depoimentos para a Comissão, estão dizendo tudo o que o coronel Ustra e os outros militares fizeram, mas os militares negam, na maior cara-de-pau. Eles são tratados como heróis pelo Exército brasileiro. Heróis! Vou te falar uma coisa: o Exército brasileiro está mal de herói. Os militares da FEB são heróis. Agora, o Ustra e todos os outros que pegavam pessoas amarradas, mulheres amarradas, estupravam, espancavam crianças, esses são os heróis brasileiros?
*Emílio Ivo Ulrich tem 66 anos, é publicitário e sociólogo.
sábado, 12 de abril de 2014
MACACO CHAPADO
Existem mais mistérios sobre a humanidade do que nossa vil hipocrisia pode supor.
Veja o caso das teorias sobre nossa ancestralidade e o que nos fez ser como somos.
Ha milhares e milhares de anos atrás, nossos ancestrais eram tão inseguros diante das ameaças que, simplesmente, viviam em cima das árvores.
O australoptecos áureos simplesmente abominava a presença de predadores naturais, e diante de insípida capacidade de pensar, preferia a segurança de fortes galhos acima do solo.
Claro, isso trazia problemas pontuais.
Fazer xixi não era muito difícil para as classes dominantes, que desde aqueles tempos viviam em patamares mais altos. Difícil era para os mais pobres, muitos galhos abaixo.
Sonambulismo era doença fatal, e o marido, simplesmente não tinha como dormir no outro galho.
Um dia, porém, se achando grandinho, nossos tataratatara ancestrais arriscaram uma decidinha no chão. Tipo assim, num momento em que o macharedo achou que era hora de mostrar coragem para justificar a subjugação das fêmeas.
O grande lance, o real maior segredo da humanidade foi justamente, segundo o filósofo norte-americano Terence McKenna, nesse supremo momento de chegada ao solo.
Segundo ele, nossos meninos esfomeados e cansados do mesmo menu de frutinhas e folhas verdes das copas, passaram a comer tudo que estivesse em volta, e um coisa que estava em volta em profusão era um cogumelo tenro e macio, ensopado de psilocibina, uma substância altamente alucinógena.
Para nosso autor filósofo, o caráter alucinógeno influiu de forma decisiva na evolução humana.
De carrapato das árvores, criatura trêmula e medrosa, o homem se tornou o o maior predador da Terra.
Acredita ele que, a substância psicoativa tenha aprimorado as habilidades cognitivas de nossos antepassados e os ajudado a falar, a pensar e a desenvolver habilidades de lógica.
Em seguida, ele controlaria e diversificaria sua dieta, abandonando os cogumelos, que, entretanto, foram fundamentais para seguir em frente.
O australoptecos, segundo essa teoria, chamada nos meios acadêmicos de “Teoria do Macaco Chapado”, desenvolveu-se em tamanha velocidade que pulamos alguns degraus da escala evolutiva, deixando um mistério a ser desvendado.
Talvez isso explique por que o homem teime em construir sociedades distorcidas e irreais, onde a maioria é excluída da riqueza produzida.
Construindo e destruindo na mesma proporção. Sonhando e perdendo sonhos, o homem segue sua estrada de incoerências e contradições, ameaçando destruir a própria terra, algo como derrubar aquela árvore protetora.
Muito distante do Deus que ele mesmo tanto gosta de se imaginar e muito mais próximo de um macaco chapado a civilização humana cada vez mais se parece com um sonho colorido, mas, de despertar muito louco.
Prof. Péricles
quarta-feira, 9 de abril de 2014
FAÇA POR MIM PAPAI
Porto Alegre. Rua Riachuelo número 1355, mas o 1 e o 3 caíram, deixando os dois 5 sozinhos. Prédio velho de quatro andares contando com o térreo. Cada andar com 8 janelas cobertas por persianas de duas folhas que se abrem para fora. Prédio enrugado pelo tempo de onde se entra ou se saí através de uma porta de ferro trabalhada em detalhes como apenas as construções de sua época costumam ser. No centro da porta a frase “Casa do Estudante Universitário, Abrigando Estudantes de todo o mundo”.
Podemos conhecer uma cidade por suas histórias cujos segredos são guardados a sete chaves por prédios como esse da rua Riachuelo, antigamente chamada de rua da ponte.
Aparício Corá de Almeida nasceu em 1906, filho de família abastada, em quarai/RS. Sempre quis ser advogado, por isso, aos 17 anos veio completar seus estudos fundamentais no Colégio Militar de Porto Alegre.
Brilhante orador destacou-se na faculdade de Direito como um líder natural entre os estudantes.
Sempre foi muito preocupado com os outros rapazes de sua idade que, ao contrário dele, eram de famílias humildes e, por isso, vinham para a capital estudar sem as melhores condições financeiras.
Encabeçou inúmeras ações de assistência social e, finalmente, fundou, em 25 de agosto de 1930, a Casa do Estudante de Direito, que ficava na rua Duque de Caxias.
Engajado nas lutas populares daqueles tempos atribulados tornou-se socialista e participou com dinamismo, talento e coragem extraordinária dos movimentos da Revolução de 30 que prometiam novos tempos de liberdade.
Para sua decepção os ventos revolucionários inclinam-se para a direita, com Getúlio Vargas nomeando o General Flores da Cunha, homem reconhecidamente conservador, para governador do estado.
Não diminui sua determinação. Foi preso, apanhou muito, mas seguiu nas suas convicções socialistas e em sua luta.
Em 1935 a Esquerda tenta se opor ao crescente fascismo brasileiro dos integralistas, criando a Aliança Nacional Libertadora, cujo objetivo era impedir que o extremismo chegasse ao poder no Brasil na figura de Plínio Salgado, como chegara à Alemanha, em 1933, com Adolf Hitler.
Numa festa emocionante no Teatro São Pedro, milhares de pessoas aclamaram a Aliança e os aliancistas. Aparício Corá de Almeida foi aclamado primeiro secretário no estado, Dionélio Machado na presidência. Luis Carlos Prestes, o cavaleiro da Esperança seu presidente nacional.
No final daquele ano os comunistas acreditando que Vargas daria um golpe colocando os Integralistas no poder, tentaram dar um golpe primeiro, mas falharam completamente.
Prestes e as principais lideranças caem na clandestinidade. Centenas de comunistas são presos em todo Brasil, a ANL é extinta.
No Rio Grande do Sul ocorreram várias prisões. Dionélio foi preso e torturado.
Mas, o pior, perguntem ao prédio antigo, aconteceu com Aparício Corá.
Na manhã de 13 de outubro de 1935 seu corpo sem vida, foi encontrado numa rua transversal da Voluntários da Pátria, com um enorme ferimento de arma de fogo num dos ouvidos.
Nas investigações da polícia que incluiu testemunhas que posteriormente alegaram nada ter visto, e relatos de pessoas inexistentes, a versão final de que, brincando com o próprio revólver, a vítima disparara contra si mesmo, acidentalmente.
O costumeiro assassinato político acobertado por falso acidente ou falso suicídio.
Aparício Corá de Almeida morreu com 29 anos, no apogeu de seu talento e de sua juventude.
Seu pai, Israel Almeida e a mãe Maria Antônia Corá nunca aceitaram as explicações da polícia, nem se conformaram com a perda do filho amado.
Israel instalou a Casa do Estudante nesse prédio da Rua Riachuelo 1355 que o filho há tempos idealizara como suporte de seu sonho, e o doou inteiro, para a Faculdade do Rio Grande do Sul, com a condição que ele fosse mantido, para sempre como Casa do Estudante, abrigo de jovens que do interior deslocam-se para a capital em busca do sonho de fazer a faculdade.
Até sua morte em 25 de junho de 1961, quando seus amigos empresários lhe perguntavam como podia se desfazer de um bem tão valioso, Israel respondia ser essa a vontade de seu filho. Na última vez que nos vimos, explicava ele, com olhos marejados, sorria ao antever o que seria a Casa do Estudante, e suas últimas palavras, a porta de sua casa, foram, “faça por mim papai”.
Prof. Péricles
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