domingo, 13 de abril de 2014
HERÓIS ?
Por Emilio Ivo Ulrich
Eu era um garoto nascido em São Valério do Sul, no Rio Grande do Sul. Com 11 anos fui morar em Porto Alegre com a família. Presenciei toda a movimentação, desde quando Jânio Quadros renunciou ao governo federal, e a resistência que Leonel Brizola organizou no Brasil, com base no Rio Grande do Sul. Meu pai era brizolista e acabei entrando no movimento estudantil. Me tornei presidente de grêmio, essas coisas. Estava sempre na rua, porque trabalhava na rua como jornaleiro, mas não desses de banca de jornal, desses de vender jornal na rua. Então eu acompanhava tudo, naturalmente, os fatos estavam sempre na primeira página do jornal, mas eu estava vendo, estavam na minha frente: as mobilizações, as manifestações, a pancadaria, a movimentação de tropas.
Ainda em Porto Alegre, ingressei em um movimento vinculado inicialmente a uma dissidência do Marighella, mas não participava diretamente. Mesmo assim, fui perseguido e tive de sair de Porto Alegre. A casa da minha mãe foi invadida várias vezes e tive umas três ou quatro prisões, meus irmãos também. Conheci um pessoal que tinha vindo a São Paulo para entrar na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Eles tinham feito treinamento para entrar na guerrilha com o capitão Lamarca, mas, como foi a ALN (Ação Libertadora Nacional) que fez o contato comigo, por algum tempo fiquei circulando com eles. Depois, aconteceram várias quedas e perdi o contato com a ALN. Encontrei o pessoal da VPR que me conhecia. Então, passei a dar apoio, alguma infraestrutura a eles. Me vinculei ao Yoshitami Fujimori, comandante da VPR em São Paulo e fiz panfletagem, campanha pelo voto nulo nas eleições de 1970, guardei arma. Tudo o que eu falo aqui está nos autos.
Em 20 de novembro de 70, depois de uma sucessão de quedas, fui preso. Companheiros meus que foram presos disseram sob tortura que uma das maneiras de conectar a VPR era por meio do "gaúcho", "alemão", ou seja, eu. Acabei indo preso, na baixada do Glicério. Ai começou a outra história.
Não fui surpreendido. Sabia que um dia poderia ser preso, porque todo dia ocorriam quedas e mortes. No momento em que fui preso, na rua Tutóia, no DOI-Codi, às 5h30 da manhã, passei a ser torturado, porque eles queriam que eu dissesse onde estava o Fujimori. Por conta dele, foram 15 dias de tortura. Todos os tipos de tortura descritos, pau de arara, choque elétrico, cadeira do dragão, além do espancamento.
Em 5 de dezembro, o Fujimori foi encontrado, entregue pelo famoso Cabo Anselmo. Ele foi metralhado. Quando ele chegou, 5 de dezembro à tarde, no porta-malas de uma caminhonete Veraneio, estava vivo. Metralhado, mas vivo. Dois companheiros foram lá reconhecer. Depois, foi dado como desaparecido, até que ele ‘“apareceu” clandestinamente, no cemitério da Vila Formosa.
Aquele dia, a noite inteira, houve festa no DOI-Codi. Vários companheiros dizem que todo o DOI-Codi eram financiados pelos empresários. Eu sou testemunha disso, porque no dia seguinte, às 6 horas, tomei café e o carcereiro me chamou para subir. Subir era sair da cela, atravessar o DOI-Codi e ir pra sala de tortura. No pátio, percebi o que ele queria. Havia umas tendas e estava tudo sujo. Tinha guardanapo, bandeja, papel, copo, garrafa de bebidas, cachaça, champanhe. O carcereiro me mandou limpar tudo, mas eu estava com as mãos machucadas, então fui lavar um tanque, que estava entupido por causa de vômito. Aproveitei e puxei uma conversa: “Houve uma festa aqui?” Ele: “É”. Eu: “Foi por causa do Fujimori?” Ele: “É. Acabamos com ele”. Eu: “Quem é que teve ai nessa festa?” Ai ele usou uma expressão: “Só gente graúda.”
Após a morte do Fujimori, as torturas tinham intuito de me fazer passar os contatos de outro gaúcho, chamado Laertes Dorneles Méliga. A tortura piorou ainda mais. Levei um “pau” de 15 dias pra dizer aonde estava o Laerte. Fui torturado no DOI-Codi de 20 de novembro a 20 de dezembro. Não tinha mais informações. Depois de 30 dias de tortura, fui retirado do DOI-Codi e levado por 60 dias pro DOPS do delegado Fleury. Ai foi outro tipo de tortura, ameaças, interrogatórios duas ou três vezes por semana. Cheguei bem machucado e por três vezes fui ao Hospital das Clínicas. Depois, fiquei mais seis meses no presídio de Tiradentes, já processado, já denunciado.
É difícil me recuperar depois desse fatos. Levei muito choque no ânus, no pênis, na orelha, na língua. Por conta disso, saí muito traumatizado. Levei dois, três anos para me recuperar e arrumar trabalhos. Eu até tinha condições físicas, mas me tornei um alcoólatra. Bebia principalmente à tarde e à noite. E comecei a escrever, tenho mais ou menos mil e quinhentas páginas contando o que é a tortura e como é o comportamento do torturador.
Ninguém foi punido, nem com a morte. Escrevi a poesia para que de alguma forma fique conhecido. No meu caso é uma sequela, mas é uma sequela relatada. Eu chorei muito. Primeiro, só falava chorando, hoje falo sem chorar. Já estive no Memorial da Resistência, prestei depoimento, nas comissões, sem chorar. Por meio da Comissão da Anistia fiquei sabendo da Clínica do Testemunho. Agora, sinto muito ódio dos meus torturadores, e transfiro meu ódio para o Exército brasileiro e os civis que ajudaram a bancá-los.
Sempre gostei do Exército, tinha admiração pela figura do Duque de Caxias, admirava muito os militares. Depois da 2ª guerra, havia aqueles documentários dos heróis da FEB e eu adorava ver os pracinhas desembarcando do navio depois de ter derrubado Hitler e Mussolini. Eu ficava encantando. Mas um belo dia, aqui no Brasil, os caras põem tanques na rua e começam a dar pau no povo. Ai eu falei: “sabe de uma coisa? A gurizada tem razão, vamos enfrentar esses caras.”
As pessoas, nos depoimentos para a Comissão, estão dizendo tudo o que o coronel Ustra e os outros militares fizeram, mas os militares negam, na maior cara-de-pau. Eles são tratados como heróis pelo Exército brasileiro. Heróis! Vou te falar uma coisa: o Exército brasileiro está mal de herói. Os militares da FEB são heróis. Agora, o Ustra e todos os outros que pegavam pessoas amarradas, mulheres amarradas, estupravam, espancavam crianças, esses são os heróis brasileiros?
*Emílio Ivo Ulrich tem 66 anos, é publicitário e sociólogo.
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