sábado, 26 de abril de 2014
CANUDOS E SEUS HERÓIS
Havia também seu Tenório. Seu Tenório era um homem forte, apesar da idade. Mantinha nos músculos a mesma bravura dos tempos em que atacava os canaviais com o facão na mão, como os turcos devem ter atacado Constantinopla. Seu Tenório não falava, nunca falava nada, mas cortava cana como ninguém, um dos melhores cortadores do sertão. Mas era coxo, porque, certa vez caiu do caminhão quando ia pra outra fazenda cortar mais cana, pois essa era sua vida, e nunca mais voltou a andar direito. Às vezes as partes se consertam errado e o corpo fica assim, virado, no caso de seu Tenório, coxo.
O menino Zeca pensava nas histórias de seu Tenório olhando seu corpo sem vida, com um rombo na cabeça capaz de caber uma mão fechada com punho e tudo.
Menino Zeca, de apenas 13 anos, seu Tenório e Zé Rufino eram os últimos defensores de Belo Monte.
Morria o sol no seu poente por trás das costas do menino Zeca, e ele, o corpo de seu Tenório e mais a direita Zé Rufino, era o que sobrara de Canudos naquele 05 de outubro de 1897.
Depois de três campanhas derrotadas e muitas baixas de homens e mais ainda no moral, as tropas da Capital finalmente rompiam as últimas fileiras de defesa entre os inimigos.
Não havia sobreviventes. Todo mundo que ficou morreu e quase todo mundo ficou naquele pedaço de chão maldito que Deus fez questão de passar olhando para o outro lado. Todo mundo do lado do santo, claro, do lado do Arraial, os homens do Conselheiro. Homens, e meninos, pensou o menino Zeca carregando o bacamarte.
Os homens fardados do exército e até mesmo os não fardados, mas que ganhavam dinheiro pra lutar estavam agora a descoberto e se aproximavam de Canudos, ou melhor, de Zé Rufino e do menino Zeca.
Tem coisa que criança não entende. Como pode alguém ganhar dinheiro pra lutar? Se pudesse, estaria longe. Se não tivesse que ficar mais velho bem ligeiro pra lutar pela vida, estaria distante dois poentes de onde estava agora. Estaria nas águas frias do açude que conheceu uma vez quando o pai mostrou.
Menino Zeca lembrou das marchas fúnebres de gente carregando o caixão, mas agora não tinha caixão e a marcha não era pro enterro, era pra matar os mortos. Pra matar de novo seu Tenório, ele e a Zé Rufino.
Eles foram os últimos.
E quando o sol redondo, imenso e vermelho se escondeu de vez, nas costas do menino Zeca, só havia fumaça e silencio.
... e nenhum sobrevivente.
Mas não foi a última vez que o Menino Zeca morreu.
No país em que meninos e cortadores de cana são bandidos e coronéis e mercenários são heróis, menino Zeca morre todos os dias, porque toda favela é um pouco Canudos e todo trabalhador é um pouco Seu Tenório, só não é coxo talvez, mas então será manco de outra coisa.
No pais de tantos Belo Montes e poucos conselheiros, poucos conselhos falam mais do que a marcha fúnebre em seu silencio de fim detarde, de sol forte e vermelho, vermelho como o sangue derramado de inocentes.
Busca-se o refrigério como sedentos buscam a água fria do açude, mas não há refrigério quando o que queima é aquela dor que não se sabe onde dói, porque fome dói no corpo todo e solidão é como febre, só que febre a gente vê no fiozinho do termômetro e solidão não aparece pois se confunde com outras dores.
Solidão se confunde com má cachaça, aquela que faz mal porque desce a garganta e liberta o mostro que a gente esconde no estômago.
Solidão se mistura com dor no peito, dor nas costas, dor nas pernas, dor em tudo até mesmo o sonho que se quebra e dói em nós, às vezes mais do que braço quebrado.
Sossega Menino Zeca, pega o caminho que vai pro oeste, atrás do sol que te aquece.
Deixa a guerra para os que ainda resistem aos generais, turcos, mercenários e coronéis.
São tantos Canudos, Menino Zeca, descansa com Seu Tenório, Zé Rufino e os outros 20 mil.
Observações
1. Canudos foi tomado pelo exército ao entardecer do dia 5 de outubro de 1897.
2. Não houve prisioneiros entre os resistentes e segundo Euclides da Cunha, os últimos defensores mortos foram uma criança, um velho e um coxo.
3. O comandante das forças oficiais era Antônio Moreira Cesar, de quem Antônio Conselheiro tinha sonhos desde a adolescência sem saber por que.
4. O nome “Canudos” veio de uma planta bem comum na região chamada “canudo-de-pito” muito utilizada como fumo.
5. Estima-se que cerca de 20 mil sertanejos morreram na Guerra de Canudos.
6. Canudos deveria ser destruído porque esse era o desejo dos coronéis locais irritados com a mão de obra cada vez mais cara nos canaviais, já que milhares abandonavam tudo para viver no Arraial.
7. A Igreja também exigia o fim de Canudos pois temia a perda crescente de fiéis.
8. Canudos era uma Sociedade Alternativa e sua história ainda não foi completamente contada.
Prof. Péricles
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