Por Eugênio José Guilherme Aragão
O título desta nota não contém erro ortográfico. Remete a uma das frases preferidas de Rodrigo Janot em legítimo mineirês, também disseminada como “lei da nudez": "nu d'ês é bão, no meu não!".
A frase denuncia escapismo, atitude de quem não gosta de enfrentar riscos a si. Quem a escolhe como moto de vida profissional demonstra não ser um líder, no sentido próprio da palavra, alguém que sobressai por virtudes que possam ser tomadas como exemplo a ser seguido pelos outros. Nenhuma sociedade sobreviveria regulada pela “lei da nudez" e, muito menos, uma instituição.
O episódio revelado em fragmentos na noite de ontem é mais um espécime prático de aplicação da lei da nudez. Rodrigo Janot se contorceu para explicar o inexplicável e concluir: "no meu não".
Reconheceu o óbvio: as gravações de Joesley foram fabricadas em casa, por instigação da equipe do Procurador-Geral da República e sem autorização judicial. Insistiu, porém, em que, como provas, seriam íntegras, plenamente aproveitáveis. Afinal, não seria a "suposta" molecagem de Marcelo Miller, seu ex-auxiliar, que colocaria tudo a perder. "No meu não".
Nenhum penalista, ainda que iniciante, subscreveria a ressalva sobre a integridade da escuta ilegal de Michel Temer. Escutas ambientais só são lícitas, sem autorização judicial, se forem tomadas por quem, partícipe no interlóquio, queira usá-las em defesa própria. Este é o entendimento solidamente firmado pelo STF. Não foi este o caso das gravações de Joesley.
O que se tornou público ontem foi o uso de um prospectivo delator premiado como longa manus do ministério público, clandestinamente plantado no domicílio alheio, para ali extrair informações da boca de um alvo de devassa política. Sim, porque aquilo que estava em curso quando da gravação do alvo não podia ser chamado de “investigação”. Esta pressupõe fato determinado, completado no passado. Já a devassa é a busca frenética de um fato comprometedor. É o que a Força Tarefa da Lava Jato tem feito incessantemente, em Curitiba e em Brasília. Usar um prospectivo delator premiado para essa tarefa é iniciativa do melhor estilo mafioso. Lembra cena típica de filme sobre a “Cosa Nostra”, em que um pequeno batedor de carteira com sonhos de grandeza quer entrar para a organização e é submetido a teste de valentia e lealdade: obriga-se o pobre coitado a matar um policial, para mostrar do que é capaz, como um aperitivo de sua utilidade para a organização. Joesley, ao que tudo indica, foi usado como o batedor de carteira. Foi obrigado a oferecer à Procuradoria Geral da República um aperitivo para conquistar a premiação. O aperitivo era Temer.
Ninguém no grupo da Lava Jato pode dizer que não sabia dessas práticas. Muito menos o chefão.
O uso de prospectivos delatores para a escuta ambiental não autorizada tem sido recorrente. Foi assim com Bernardo, filho de Nestor Cerveró, que gravou Delcídio do Amaral; foi assim com Sérgio Machado, que gravou José Sarney, Renan Calheiros e Romero Jucá. No caso de Delcídio, a crueldade foi requintada: após ter, este, fechado negociação com a Procuradoria Geral da República, por acordo do qual constava cláusula de sigilo por três meses, deu-se que a cláusula não foi aceita pelo relator, Ministro Teori Zavascki, por não encontrar amparo legal. Por um desses acasos da vida, a gravação de Delcídio foi tornada pública logo a seguir, impedindo o senador a voltar atrás no acordo de delação.
Entre as patacoadas do acerto constava declaração do senador de que Dilma Rousseff teria, com a nomeação de Marcelo Navarro para o STJ, visado a obstar investigações contra a construtora Odebrecht. Uma hipótese sem qualquer lastro, como, agora, reconheceu a polícia federal, mas que serviu para abrir inquérito contra a Presidenta às vésperas da votação da admissibilidade do impeachment no Senado, com clara finalidade de desgastá-la perante a opinião pública.
O que causa perplexidade é o cinismo da gestão de Rodrigo Janot à frente do Ministério Público Federal, quando insiste em que sua atuação tem sido estritamente “técnica”. Façam-me rir. Já o disse alhures, o técnico é uma forma de dar roupagem de isenção a decisões que são essencialmente políticas.
O direito usa a técnica como meio de legitimar essas decisões. Mas, decidir sempre é optar. O julgador opta entre, no mínimo, duas teses: a do autor e a do réu, ambas revestidas de fundamentos jurídicos e, portanto, ambas plausíveis se sustentadas com boa técnica. A independência do juiz está no intervalo entre essas teses, que tem o nome de lide. Não pode decidir fora dela, pois seria decidir “ultra petita”, como se diz no bom jargão profissional. A opção, quando não balizada por sólida jurisprudência, é algo completamente subjetivo. E o juiz faz política ao optar. Assim também o faz o ministério público quando decide, ou não, levar um caso adiante.
Mas política não é sempre molecagem. Ela funciona como tempero necessário para preservar as instituições e a governabilidade. Pressupõe-se de quem vai decidir que tenha equilíbrio e senso de justiça, de correção, de critério – virtudes que só se adquirem com muita experiência, ao longo de anos de atuação. Por isso, não é crível tenha o Procurador-Geral da República deixado um grupo de procuradores verdes, sem seu cabedal, rolar solto. O procurador Marcelo Miller, que, pelo que se anuncia, estaria por detrás dessa “técnica” de exigir aperitivos de prospectivos delatores premiados, com meros treze anos de casa, não pode ter agido por conta própria. As informações colhidas por sua “técnica” foram usadas não só em juízo pelo chefe da instituição, mas, também, pela instituição-corporação (hoje é difícil divisar entre ambas), para fazer seu barulho e adquirir musculatura – política(neste caso, com sentido de molecagem mesmo).
Das duas uma: ou o Procurador-Geral se revelou um grande irresponsável, deixando o barco correr enquanto gente de sua equipe pintava e bordava com falta completa de ortodoxia técnica; ou então ele era parte da trama, aquiescendo com a “técnica” de Miller.
Por erro de cálculo estrutural, desabou o edifício que homiziava a política da “técnica” de Janot. Ficou exposta à curiosidade coletiva. Fez tudo errado. Confiou em quem não devia ter confiado. Omitiu-se na defesa da democracia e deixou de exercer o que a Constituição lhe atribuiu – ser "Chefe do Ministério Público da União" (art. 128). Preferiu as intrigas da politicagem interna e o discurso corporativo fácil. Revelou-se um ignorante no jogo da macropolítica. Traiu quem lhe dera a mão, não para beneficiar quem quer que seja, mas para tirar o país da polarização inaugurada com o processo do chamado “Mensalão”.
A "lei da nudez" falhou e não tem como salvar o do Rodrigo Janot.
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