sexta-feira, 5 de agosto de 2016

SANGUE, PARA ELES, SÃO MEDALHAS


Por Celso Lungaretti 


A condescendência com a bestialidade dos agentes do terrorismo de estado, paradoxalmente, inexiste em países que nem sequer foram por ela atingidos: agora é dos Estados Unidos que recebemos uma lição de como a Justiça de uma nação civilizada deve tratar bestas-feras responsáveis por crimes contra a humanidade.

O ex-militar chileno Pedro Paulo Barrientos Nuñez, que para lá emigrou em 1990 e acabou adquirindo a cidadania estadunidense, foi condenado por um tribunal da Florida a indenizar em US$ 28 milhões a família do cantor Victor Jara, por tê-lo assassinado no curso do golpe de Estado desfechado por Augusto Pinochet em setembro de 1973 (cujo saldo foi o assassinato ou desaparecimento de 3.200 opositores políticos, além de dezenas de milhares de cidadãos torturados).

A ação foi aberta pela viúva Joan, pela filha Amanda e pela enteada Manuela, com base na Lei de Proteção à Vítima de Tortura dos EUA, que permite ações civis contra torturadores.

Já no Brasil, o máximo que se obteve foi a declaração de que Carlos Alberto Brilhante Ustra havia mesmo sido um torturador, sem que isto implicasse pagamento nenhum a suas vítimas.

Segundo o serviço noticioso português RTP, foi decisivo o testemunho de um antigo subalterno de Barrientos, o soldado José Navarrete, que relatou: “Ele se vangloriara de ter matado Víctor Jara. Costumava mostrar a pistola e dizer: ‘Matei Víctor Jara com isto’.

Também depuseram dois antigos prisioneiros, que viram Jara ser reconhecido pelos militares, separado dos outros e violentamente espancado.

Um deles, Boris Navia, contou que Jara foi exibido como um troféu a outros oficiais, tendo um deles lhe esmagado a mão e partido o braço, enquanto dizia: “Nunca mais vais poder tocar guitarra”.

Finalmente, mataram-no a tiros. Seu corpo tinha 44 balas cravadas ao ser encontrado.

Durante os três dias em que esteve preso num estádio de futebol antes de ser executado, Jara escreveu um último poema, cuja versão para o português (efetuada pelo site Adital) reproduzimos:


“O SANGUE, PARA ELES, SÃO MEDALHAS”

“Somos cinco mil
nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.

Quantos seremos no total,
nas cidades e em todo o país?
Somente aqui, dez mil mãos que semeiam
e fazem andar as fábricas.

Quanta humanidade
com fome, frio, pânico, dor,
pressão moral, terror e loucura!

Seis de nós se perderam
no espaço das estrelas.

Um morto, um espancado como jamais imaginei
que se pudesse espancar um ser humano.

Os outros quatro quiseram livrar-se de todos os temores,
um saltando no vazio,
outro batendo a cabeça contra o muro,
mas todos com o olhar fixo da morte.

Que espanto causa o rosto do fascismo!

Colocam em prática seus planos com precisão arteira,
sem que nada lhes importe.

O sangue, para eles, são medalhas.
A matança é ato de heroísmo.
É este o mundo que criaste, meu Deus?

Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?!
Nestas quatro muralhas só existe um número que não cresce,
que lentamente quererá mais morte.

Mas prontamente me golpeia a consciência
e vejo esta maré sem pulsar,
mas com o pulsar das máquinas
e os militares mostrando seu rosto de parteira,
cheio de doçura.

Quantos somos em toda a pátria?
O sangue do companheiro Presidente
golpeia mais forte que bombas e metralhas.
Assim golpeará nosso punho novamente.

Como me sai mal o canto
quando tenho que cantar o espanto!
Espanto como o que vivo
como o que morro, espanto.

De ver-me entre tantos e tantos
momentos do infinito
em que o silêncio e o grito
são as metas deste canto.

O que vejo nunca vi,
o que tenho sentido e o que sinto
fará brotar o momento…”



Para ler mais sobre Victor Jara leia os textos desse Blog: “Victor Jara, A Voz Calada do Povo” de outubro de 2014 e “Golpe no Chile 40 Anos” de setembro de 2013.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

O BRASIL É CATÓLICO?


Por Itamar Melo


Pedro Álvares Cabral ordenou que se erguesse um altar na praia da Coroa Vermelha, convocou seus capitães a passar das caravelas para batéis e desembarcou na faixa de areia. Era um domingo, dia do Senhor. Sob a bandeira de Cristo, cercado pela exuberante vegetação tropical, o frade franciscano Henrique Soares de Coimbra pregou o Evangelho, falou da cruz e da nova terra na qual ela acabara de chegar e entoou missa – a primeira celebrada nesta parte do mundo. Era 26 de abril de 1500. O Brasil nascia ali, sob a égide da Igreja Católica.

Durante a maior parte dos cinco séculos seguintes, o país e a religião permaneceriam indissociáveis. Como a licença papal concedida aos portugueses para explorar o Novo Mundo estava condicionada à expansão da fé, colonização e evangelização confundiam-se. Com o conquistador, vinha o padre.

O amálgama entre Brasil e catolicismo foi tal que, até a proclamação da República, em 1889, Estado e Igreja mantiveram-se fundidos no regime conhecido como padroado.

O país se fez ao redor de igrejas construídas na praça central de cada cidade ou vilarejo, aprendeu as primeiras letras em escolas geridas por padres e freiras, formou seu imaginário escutando as histórias dos personagens do Antigo e do Novo Testamento, construiu toda uma cultura baseada no alicerce dos valores católicos.

Em 1940, meio século após a separação entre Igreja e Estado, 95% dos brasileiros se declaravam seguidores do Papa.

Agora, passados 516 anos do primeiro domingo de missa, esse país não existe mais. A maior nação católica do mundo já não é tão católica assim. 

Pela primeira vez na história, talvez já nem se possa mais dizer que o Brasil é um país católico. Essa é uma transformação significativa, que vem se anunciando nas estatísticas há mais de 40 anos. Durante esse período, a proporção de membros da Igreja na população despenca cerca de 10 pontos percentuais a cada década.

Em 1980, eles ainda eram 89%. Passaram rapidamente a 83,3% (1991), 73,6% (2000) e 64,6% (2010). O próximo Censo ocorre apenas daqui a quatro anos, mas especialistas acreditam que ele vai flagrar a continuidade dessa tendência – a dúvida é apenas quanto ao tamanho do tombo.

Algumas pesquisas recentes sugerem que pode ser robusto e que a maioria católica possa estar ameaçada. O Datafolha, que mede a religiosidade do brasileiro desde 1994, detectou apenas 57% de católicos em 2013 – no levantamento anterior, em 2010, o índice foi de 63%, quase igual ao do Censo.

Na avaliação do Pew Research Center, uma instituição norte-americana, o declínio se confirma, mas em ritmo menos alucinante: em 2014, 81% dos brasileiros diziam ter sido criados como católicos, mas só 61% afirmavam ser católicos.

As pesquisas que chamam mais atenção e que permitem prever um Brasil não-católico são aquelas centradas nas faixas etárias mais baixas – grupos que serão os brasileiros de amanhã e sob cuja orientação vai ser moldada a religiosidade das próximas gerações. 

Para a maior parte desses jovens, a igreja apostólica romana dos seus pais e avós significa pouco. Levantamento feito três anos atrás pelo Instituto Data Popular apontou que só 44% dos brasileiros de 16 a 24 anos definiam-se como católicos.

Em alguns estratos, há indícios de que os crentes sejam ainda mais minoritários. 

Em 2015, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) realizou uma pesquisa, em todas as unidades da federação, com pessoas de 18 a 34 anos. A amostra não refletia o perfil exato do brasileiro, privilegiando pessoas de classes B e C e com instrução acima da média. Mesmo com esse reparo, o dado espanta: só 34,3% disseram seguir o catolicismo.

O bispo auxiliar de Porto Alegre Leomar Antônio Brustolin, que coordena a pós-graduação em Teologia da PUCRS, reconhece: o Brasil já não pode mais ser definido como um país católico. Ele avalia o encolhimento do rebanho como parte de algo mais amplo, um enfraquecimento dos valores cristãos.

Na arquidiocese de Porto Alegre, onde Brustolin atua, dados sobre a administração dos sacramentos oferecem um vislumbre da "descatolização" em curso. Segundo a edição de 2015 do guia do arcebispado, a quantidade de batizados, primeiras comunhões, crismas e casamentos nos 29 municípios da jurisdição é pouco expressiva e, além disso, recuou de forma acelerada.

Em 2008, foram batizadas 26,8 mil crianças. Mas o número diminui ano após ano, até chegar à marca dos 20,8 mil em 2013.

Até uma ou duas gerações atrás, ser brasileiro significava, em larga medida, crescer em um lar decorado com imagens de Cristo e dos santos, ter uma avó ou tia devota que exigia a presença semanal na missa, absorver uma série de costumes, superstições e narrativas de origem católica e ter nos sacramentos uma espécie de formação obrigatória.

O fenômeno mencionado por Chiarello é algo já documentado em uma série de pesquisas. Elas mostram que a quantidade minguante de brasileiros que se define como católica expressa opiniões e crenças frontalmente contrárias à doutrina. 

Em 2011, como parte de seu mestrado em Teologia, Edson Frizzo entrevistou 1.104 alunos de Humanismo e Cultura Religiosa, disciplina obrigatória nos cursos de graduação da PUCRS. A maior fatia (61,2%) definia-se como católica, mas a crença era de fachada.

Apenas 19,2% acreditavam na ressurreição, menos do que os crentes na encarnação (44%). No que dizia respeito a valores, revelou-se um festival de anticatolicismo: os estudantes eram a favor do divórcio (90,9%), da eutanásia (64,1%), do aborto (56,6%), da pena de morte (50,7%), do controle artificial de natalidade (72%), do sexo antes do casamento (92,9%) e da união homossexual (52,5%).

O segmento evangélico foi o que mais cresceu no país no passado recente. Em 1991, abrangia 9% da população. Em 2010, 22,2%.

A maior parte desses adeptos saiu das hostes papistas. Segundo dados do Pew Research Center, 54% dos protestantes brasileiros foram originalmente criados como católicos.

A transformação cultural também abriu caminho para a expansão dos que se declaram ateus – um tipo de posicionamento que até pouco tempo atrás era tabu no Brasil. 

Em 2008, o engenheiro civil Daniel Sottomaior, curitibano radicado em São Paulo, descobriu comunidades de ateus na internet e fundou a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), que combate a discriminação e o preconceito contra quem não tem fé.

No final de 2010, a agremiação tinha 1,7 mil sócios. Passados pouco mais de cinco anos, tem 10 vezes mais: 17,4 mil. O Rio Grande do Sul se destaca. Apesar de responder por 5,5% da população brasileira, abriga 8,4% dos filiados à Atea.

A página da entidade no Facebook acumula 485 mil fãs.




Itamar Melo é jornalista de Porto Alegre/RS

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

EM DEFESA DO GERÚNDIO E DA "IDÉIA"


O professor de história escreve no quadro quando é interrompido por uma aluna.

- Professor, a palavra ideia não tem mais acento.

- Hã?

- A palavra ideia não é mais acentuada.

- Como assim? Quer dizer que eu não tenho mais idéia e sim idêia?

- Não professor, continua ideia mas agora sem acento segundo as novas normas gramaticais.

- Mas, espera um pouco... a idéia é minha ou é tua? A minha idéia tem acento, assim ó, bem destacada, um acento em diagonal, bem forte e acima do “e” e sempre terá acento enquanto ela for minha.

- Mas...

- Não tem mas. Na verdade, esse é o motivo de toda confusão do mundo, acabo de descobrir...

- ???

- Claro, sou de uma geração que tinha idéias, e até ideais, que não é a mesma coisa, sabia? Nossas idéias eram assim mesmo, abertas, chamavam a atenção... hoje as idêias são fechadas, acanhadas, comuns... você lê um texto inteiro e não se destaca nenhuma idéia pois as ideias se misturam, se escondem nas outras palavras que não ousam ter acento... nossas idéias ousavam, transgrediam...

- Professor... quer que chamemos o diretor?

- Diretor não tem acento. Governo não tem acento. Ditadura também não. Os controladores não sonham, não ousam... mas o lúdico ousa. Proparoxítonas têm acento. Ou não tem mais?

- Sim, proparoxítonas continuam acentuadas, mas...

- E o gerúndio?

- Que tem o gerúndio professor?

- Ele ainda existe? Banca que corrige redações não gosta de gerúndios, mas o gerúndio é o verbo mais brasileiro sabia? Poderia até se chamar Genivaldo, mas se chama Gerúndio.

- Calma professor, nós já pedimos socorro...

- Nós não estamos a fazer, estamos a rir nem estamos a chorar, estamos fazendo, estamos rindo, estamos chorando (e muito) entendeu? O Gerúndio é brasileiro, é perfeito em sua descrição. O gerúndio é ação, é ativo. O gerúndio não precisa de outro para se completar, ele é completo. Ele é solteiro e feliz e não esses verbos casados e tristes.

- Olha professor, o médico chegando...

- Viu... você viu que frase linda... uma proparoxítona acompanhada de um gerúndio... isso é Brasil, você não faz idéia. Viva as idéias com acentos, viva o gerúndio... abaixo a ditadura da falsidade...

- Que falsidade professor?

- Claro, dizer idéia e escrever ideia é o que? É pensar uma coisa e fazer outra. É falsidade.

- Viva a liberdade!!

E a aula acabou.




Prof. Péricles

sábado, 30 de julho de 2016

PROCISSÃO DE ZUMBIS

Roteiro para um filme de terror brasileiro.

O ano é 2024.

A questão israelense continua grave, aliás, mais um massacre de palestinos foi recentemente perpetrado, mas não vem ao caso.

Na rádio o funk do MC Doidão está bombando, maior sucesso. Por sua completa inutilidade as letras foram abolidas da música.

O país, vive tempos de muita paz.

Nada de protestos nem de greves. Contestações e sindicatos estão proibidos.

Nas grandes cidades, uma multidão de zumbis carrega suas sombras.

A turba arrasta seus pés ao caminhar para o trabalho. São 10 horas por dia de segunda a sábado, com possibilidades de ser chamado aos domingos.

Câmeras do grande irmão Coxinha no alto dos postes, observam tudo e sempre que detectam algum zumbi se escorando na parede acionam o alerta... plim-plim...plim-plim... e o zumbi se recupera e segue seu caminho rumo ao trabalho ordeiro de cordeiro.

No centro da cidade ainda restam vestígios da grande fogueira que queimou a última bruxa, uma mulher que se atrevia a clamar por igualdade salarial entre homens e mulheres e ousou pedir respeito aos direitos femininos. Maldita! Foi execrada e estuprada por três fãs do mito antes de ser queimada. Afinal, ela pediu com aquelas roupinhas curtas.

Periodicamente, grandes telões são ligados e neles surge a cara conhecida de um apresentador de telejornal. Durante alguns minutos os zumbis olham para a imagem do apresentador e aparentemente escutam as notícias do momento dizendo que tudo foi culpa do PT e que fora do neoliberalismo não há salvação.

Nos colégios professores zumbis numa escola sem opinião ensinam histórias em que seres demoníacos como Paulo Freire, Lula, Getúlio Vargas, Brizola, Fidel Castro, Hugo Chaves, entre outros, ameaçaram um dia a instalação do paraíso na terra que hoje eles vivem.

Fala-se também na maravilha de viver num país sem funcionários públicos, os verdadeiros culpados do grande surto da corrupção que varreu o país por décadas. Afinal, para que funcionários públicos se nenhum bem mais era público desde a grande privatização do ano anterior?

Nada de empresas públicas. Tudo em nome do Tio San, dos filhos da burguesia e do espírito do capital.

Também não existe mais sistema de saúde. Numa terra de zumbis ordeiros ficar doente é crime e mesmo um zumbi pode adquirir um plano de saúde privado.

Um mundo sem doentes e sem gays, lésbicas nem outras loucuras como negros metidos a besta pensando em fazer curso superior.

À noite, após o trabalho de 10 horas, antes de voltar para a cripta, os zumbis se reúnem nos grandes templos, onde pastores explicam que a zumbizisse é vontade do senhor e que todos devem estar atentos às ameaças dos comunistas, anarquistas e esquerdistas em geral que comem criancinhas e no passado só criavam coisas inúteis como utopias de igualdade e fraternidade e outras coisas impossíveis.

Depois do culto que termina com o hino dos Estados Unidos, a turma segue seu caminho silencioso, arrastando seus pés numa procissão de zumbis, com um sorriso bestial no rosto.


Prof. Péricles

quinta-feira, 28 de julho de 2016

LEMBRE DE MUNIQUE


Por Sheila Sacks,

Em outubro de 2016, encerrados os Jogos Olímpicos do Rio (de 5 a 21 de agosto), uma solenidade marcará o engajamento da Alemanha e do Comitê Olímpico Internacional (COI) ao projeto memorial que insere os 11 desportistas israelenses (cinco atletas e seis treinadores) assassinados durante a Olimpíada de Munique, em 1972, no panteão histórico dos mártires olímpicos.

A construção de 2,3 milhões de dólares está sendo erguida entre a Vila Olímpica, local do atentado, e o estádio olímpico de Munique, e sua instalação contou com o apoio financeiro do governo alemão, do COI, da Confederação alemã de Esportes Olímpicos da Fundação para o Desenvolvimento Global de Esportes e de outras organizações internacionais.

Passaram-se mais de quatro décadas para que o COI e seus dirigentes reconhecessem efetivamente o tamanho da tragédia que se abateu em Munique e o peso de seu legado em termos de responsabilidade moral e pública. 

Desde então, a mensagem é clara: aos governos de países que sediam os Jogos não é dada a possibilidade de falhar ou se omitir, sobretudo no quesito da segurança, sob pena de comprometer, de forma indelével, o ideal olímpico que anima milhares de atletas e visitantes nesse que é o maior espetáculo contemporâneo de confraternização entre povos e nações.

Por isso, entende-se a manifesta preocupação do diretor do Departamento de Contraterrorismo da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), Luiz Alberto Sallaberry, diante do aumento de brasileiros seguidores do Estado Islâmico (EI).

Ele atribui o fato ao “mecanismo da internet” e “às facilidades migratórias do Brasil”.

Em meados de abril, em uma Feira Internacional de Segurança Pública ocorrida no Rio de Janeiro, Sallaberry confirmou que a probabilidade do Brasil ser alvo de ataques terroristas.

Muito antes do curta (29 minutos) “Munique 72 e Além” outro documentário já abordava o sequestro e massacre dos atletas israelenses sob uma ótica jornalística mais investigativa. Produzido em 1999, “Um dia em setembro” (On Day in September), do escocês Kevin Macdonald, traz uma entrevista inédita com Jamal Al-Gashey, o único dos oito terroristas que provavelmente ainda continua vivo, escondido em algum lugar da Jordânia.

Com o rosto encoberto, Al-Gashey diz: “Estou orgulhoso do que fiz em Munique porque ajudou bastante a causa palestina. Antes de Munique o mundo não tinha ideia de nossa luta". Os terroristas exigiam a libertação de 234 presos em Israel.

Premiado com o Oscar de melhor documentário de 2000, o filme reúne entrevistas com membros do Mossad, o serviço secreto de Israel, e com os parentes dos atletas mortos.

Na ocasião da premiação, Macdonald justificou de maneira contundente o motivo que o levou a realizar o filme: “De alguma forma o massacre de Munique foi uma transgressão inominável, a destruição de um ideal de paz e fraternidade”.

Seu produtor, John Battsek, foi mais adiante: “A investigação para o documentário revelou uma história de mistério, conspiração, tragédia, inépcia e terror”.

Estima-se que 900 milhões de pessoas em mais de 100 países assistiram pela TV o ataque ao alojamento dos atletas, na Vila Olímpica, na madrugada de 5 de setembro de 1972, e o seu desenrolar trágico que durou 18 horas.

Cinco dos oito integrantes do grupo terrorista Setembro Negro invadiram o quarto onde dormia a equipe israelense e assassinaram dois atletas no confronto inicial, sendo que o halterofilista Yossef Romano foi torturado e castrado. 

Os outros nove desportistas foram levados pelos terroristas como reféns para um aeroporto militar nos arredores de Munique e perderam a vida em uma tentativa fracassada de resgate conduzida pela polícia alemã. Um policial e cinco terroristas também morreram.

Três terroristas foram detidos e em pouco menos de dois meses foram libertados em uma troca que envolveu o sequestro de um avião da Lufthansa.

Para Steven Ungerleider, membro do Comitê Olímpico dos EUA e um dos produtores de “Munique 72 e Além”, o atentado de Munique “foi o primeiro ato de terror moderno e não se justifica que esse trauma horrendo seja relegado a uma simples notinha histórica de rodapé”.

De Munique à Rio-2016, lá se vão mais de 40 anos e dez Jogos nas cidades-sede de Montreal (1976), Moscou (1980), Los Angeles (1984), Seul (1988), Barcelona (1992), Atlanta (1996), Sydney (2000), Atenas (2004), Pequim (2008) e Londres (2012).

Durante esse tempo, pedidos foram feitos por familiares dos atletas israelenses para que o COI promovesse um minuto de silêncio na abertura ou no encerramento de uma das Olimpíadas para lembrar as vítimas. Porém, a alegação de que esse tipo de homenagem poderia abalar os atletas ou provocar constrangimento às delegações dos países árabes pontuou as negativas sucessivas emitidas pelo COI.

Mas, para a Olimpíada do Rio – que vai receber 10.500 atletas de 206 países e será vista por mais de 3 bilhões de espectadores ao redor do mundo – o atual presidente do COI, o alemão e ex-esgrimista olímpico Thomas Bach, parece ter encontrado uma solução diplomática. Ele anunciou que haverá um minuto de silêncio na solenidade de encerramento dos Jogos, “para permitir que todos no estádio, bem como aqueles que estão assistindo em casa, lembrem dos entes queridos que já faleceram.”

Antes, no dia 14, em parceria com o Comitê Rio-2016, o COI finalmente irá homenagear os 11 atletas mortos em uma cerimônia na Vila Olímpica da Barra da Tijuca, sinalizando um considerável diferencial de humanismo, generosidade, tolerância e boa vontade que já distingue a Rio-2016 antes mesmo de seu início, das demais Olimpíadas, e em especial da de Munique com a sua terrível história de fanatismo e barbárie.





Sheila Sacks, jornalista tem artigos publicados nos sites Observatório da Imprensa e Rio Total. Desde 2009 mantém o blog “Viajantes do tempo”.



segunda-feira, 25 de julho de 2016

COMO ASSIM, ESCOLA SEM IDEOLOGIA?




Por Marcelo Rubens Paiva


A escola sem um professor de história de esquerda é como uma escola sem
pátio, sem recreio, sem livros, sem lanchonete, sem ideias. É como um
professor de educação física sem uma quadra de esportes, ou uma quadra
sem redes, ou crianças sem bola.


O professor de história tem que ser de esquerda. Tem que contestar os regimes, o sistema, sugerir o novo, o diferente. Tem que expor injustiças sociais, procurar a indignação dos seus alunos, extrair a bondade humana, o altruísmo.

Como abordar o absolutismo, a escravidão, o colonialismo, a Revolução Industrial, os levantes operários do começo do século passado, Hitler e Mussolini, as Grandes Guerras, a Guerra Fria, o liberalismo econômico, sem a leitura da luta de classes, uma visão da esquerda?

A minha do colegial era a Zilda, inesquecível, que dava textos de Max Webber, do mundo segmentado do trabalho. Ela era sarcástica com a disparidade econômica e a concentração de renda do Brasil. Das quais nossas famílias, da elite paulistana, eram produtoras.

Em seguida veio o professor Beno (Benauro). Foi preso e torturado pelo DOI-Codi, na leva de repressão ao PCB de 1975, que matou Herzog e Manoel Fiel Filho. Benauro era do Partidão, como nosso professor Faro (José Salvador), também preso no colégio. Eu tinha 16 anos quando os vimos pelas janelas da escola, escoltados por agentes.

Outro professor, Luiz Roncari, de português, também fora preso. Não sei se era do PCB. Tinha um tique nos olhos. O chamávamos de Luiz Pisca-Pisca. Diziam que era sequela da tortura. Acho que era apenas um tique nervoso. Dava aulas sentado em cima da mesa. Um ato revolucionário.

Era muito bom ter professores ativistas e revolucionários me educando. Era libertador.

Não tem como fugir. O professor legal é o de esquerda, como o de biologia precisa ser divertido, darwinista e doidão, para manter sua turma ligada e ajudar a traçar um organograma genético da nossa família. A base do seu pensamento tem de ser a teoria da evolução. Ou vai dizer que Adão e Eva nos fizeram?

O de química precisa encontrar referências nos elementos que temos em
casa, provar que nossa cozinha é a extensão do seu laboratório, sugerir
fazer dos temperos, experiências.


O professor de física precisa explicar Newton e Einstein, o chuveiro elétrico e a teoria da relatividade e gravitacional, calcular nossas viagens de carro, trem e foguete, mostrar a insignificância humana diante do colossal universo, mostrar imagens do Hubble, buracos negros, supernovas, a relação energia e massa, o tempo curvo. Nosso professor de física tem que ser fã de Jornadas nas Estrelas.

Precisa indicar como autores obrigatório Arthur Clarke, Philip Dick, George Orwell. E dar os primeiros axiomas da mecânica quântica.

O professor de filosofia precisa ensinar Platão, Sócrates e Aristóteles, ao estilo socrático, caminhando até o pátio, instalando-se debaixo de uma árvore, sem deixar de passar pela poesia de Heráclito, a teoria de tudo de Parmênides, a dialética de Zenão. Pula para Hegel e Kant, atravessa o niilismo de Nietzsche e chega na vida sem sentido dos
existencialistas. Deixa Marx e Engels para o professor de história barbudo, de sandália, desleixado e apaixonante.

O professor de português precisa ser um poeta delirante, louco, que declama em grego e latim, Rimbaud e Joyce, Shakespeare e Cummings, que procura transmitir a emoção das palavras, o jogo do inconsciente com a leitura, a busca pela razão de ser, os conflitos humanos, que fala de alegria e dor, de morte e prazer, de beleza e sombra, de
invenção-fingimento.

O de geografia precisa falar de rios, penínsulas, lagos, mares, oceanos, polos, degelo, picos, trópicos, aquecimento, Equador, florestas, chuvas, tornados, furacões, terremotos, vulcões, ilhas, continentes, mas também de terras indígenas, garimpo ilegal, posseiros, imigração, geopolítica, fronteiras desenhadas pelos colonialistas, diferenças entre xiitas e
sunitas, mostrar rotas de transação de mercadorias e comerciais, guerra pelo ouro, pelo diamante, pelo petróleo, seca, fome, campos férteis, Civilização.

A missão deles é criar reflexões, comparações, provar contradições. Provocar. Espalhar as cartas de diferentes naipes ideológicos. Buscar pontos de vista.

O paradoxo do movimento Escola sem Partido está na justificativa e seu programa: "Diante dessa realidade - conhecida por experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos -, entendemos que é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções."

Mas como nasceriam as convicções dos pais que se criariam num mundo de escolas sem ideologia? E que doutrina defenderiam gerações futuras?

A escola não cria o filho, dá instrumentos. O papel dela é mostrar os pensamentos discordantes que existem entre nós. O argumento de escola sem ideologia é uma anomalia de Estado Nação.

Uma escola precisa acompanhar os avanços teóricos mundiais, o futuro, melhorar, o que deve ser reformulado. Um professor conservador proporia manter as coisas como estão. Não sairíamos nunca, então, das cavernas.


Marcelo Rubens Paiva é escritor, dramaturgo e jornalista.