domingo, 14 de setembro de 2014
REVOLUÇÃO FARROUPILHA, O MITO
O movimento farroupilha, como em todos os anos, sacode o estado do Rio Grande do Sul, em comemoração ao início das ações militares em 20 de setembro de 1835 (179 anos).
Envolto em lendas e mitos a Guerra dos Farrapos criou uma imagem aceita e defendida pela imensa maioria dos gaúchos. Por isso mesmo, é assunto espinhoso, já que algumas críticas necessárias para entender melhor o fato, provoca reações, no mínimo, de desconforto, inclusive, entre professores de história.
Segundo a imagem romanceada, a “Revolução Farroupilha” foi a luta e o sacrifício do povo gaúcho, unido contra o Império opressor que, sediado no Rio de Janeiro, era surdo às necessidades da Província. Uma luta inglória, do Rio Grande contra todos, em nome da liberdade, do fim da escravidão e por uma república independente.
Vamos analisar melhor esse manancial de mitos.
1. Começando pelo próprio nome. A “Revolução Farroupilha” jamais foi uma revolução. Revoluções são fenômenos transformadores, que não apenas reformam, mas, redefinem sistemas, economias, sociedades, etc. O movimento Farroupilha começou como mais uma das revoltas regenciais que se multiplicaram no período 1831-1840, tornou-se Guerra Civil com a Proclamação da República Rio-grandense, em 1836 e jamais foi vista além de uma rebelião pelo governo imperial. Além de não propor alterações sociais profundas o movimento era conservador, visto ser liderado totalmente por grandes estancieiros, a elite local, e seus aliados.
2. Sua causa principal foi o descaso com que o governo central tratava a concorrência sofrida por nossos produtos pelos produtos platinos, particularmente, o charque.
Na verdade, embora o governo dos regentes não primasse pela atenção das necessidades das elites estancieiras, o buraco era mais embaixo. A desvantagem do charque, por exemplo, devia-se ao fato de ser produzido por mão de obra assalariada no Uruguai e mão de obra escrava no Rio Grande do Sul. Na época, o trabalho escravo já não era rentável e perdia em produtividade para o trabalho assalariado, com o que, podemos concluir que, a maior responsabilidade pela desvantagem econômica era estrutural (a escravidão) e não comportamental, como sugeriam os líderes farroupilhas.
3. A guerra foi uma luta entre o Brasil contra os gaúchos.
Para essa afirmação fazer sentido, seria necessário o apoio unânime ou quase unânime da população gaúcha ao movimento. Isso jamais aconteceu. A maior parte da população do Rio Grande do Sul permaneceu fiel ao Império e indiferente aos apelos por uma união contra o Brasil. Porto Alegre, por exemplo, a capital da Província, sempre foi em sua quase totalidade inimiga dos farroupilhas. A “Bronze” (de onde vem a denominação de altos da bronze, no centro histórico), a mais famosa prostituta de Porto Alegre, era uma entusiasmada propagandista do império, e levava a defesa da manutenção da união do Rio Grande ao Brasil a todos os seus clientes.
4. O movimento era libertador, pois pretendia abolir a escravidão.
Embora alguns líderes como Antônio de Sousa Neto fossem abolicionistas convicto, o comando maior farroupilha sempre assistiu uma disputa em relação a essa idéia. No final do conflito os abolicionistas foram afastados do comando e gente como David Canabarro e Vicente da Fontoura, em segredo, negociaram de forma abominável um fim que mantivesse a escravidão na província mantendo, porém a farsa de que isso era uma exigência apenas dos imperiais. O criminoso ato de Porongos, quando os lanceiros negros, desarmados, foram dizimados, fala por si só.
5. A Guerra terminou com um tratado digno, o Tratado de Ponche Verde, em que o Império reconheceu a bravura dos farrapos e a dificuldade de vencê-los, não punindo suas lideranças e mantendo-os no exército, com a mesma patente que exercia nas forças farroupilhas.
O que aconteceu em Ponche Verde, não foi um tratado. Para se ter uma idéia, homens como Bento Gonçalves, Antônio de Sousa Neto e o próprio Duque de Caxias, jamais assinaram o documento, o que o caracteriza muito mais como um conchavo entre grupos do que um Tratado de Guerra. Além disso, o governo brasileiro sabia bem que os tempos muito próximos trariam conflitos armados com Argentina, Uruguai e Paraguai e por isso, precisava daqueles militares experientes e profundos conhecedores da região, sendo essa a causa real da manutenção da ordem militar.
O direito à tradição e as lendas é inalienável dos povos, mas, maior é o direito do conhecimento das verdades históricas dos fatos.
Prof. Péricles
UMA SEMANA PARA NÃO ESQUECER
por Saul Leblon
A semana termina com uma inflexão na disputa presidencial que devolve a reeleição da Presidência Dilma ao topo das apostas. A evidência mais óbvia está na convergência das pesquisas.
Mas são as decisões políticas que cavalgam os números. A elas devem ser creditadas as lições de uma semana para não esquecer --seja para orientar o passo seguinte da atual disputa, ou o futuro que vier depois dela.
Em sete dias, a candidatura progressista passou a ditar o ritmo do jogo: todos os levantamentos apontam na direção de uma vantagem ascendente de Dilma no 1º turno, com liquefação da liderança de Marina na fase final do pleito.
O empate técnico no 2º turno --43% a 42%, com Marina à frente, sinalizado pelo Ibope desta 6ª feira, deixa no ar um leve aroma de virada.
No início do mês, o Datafolha buzinava a hipótese de uma vitória esmagadora de Marina, que àquela altura abria uma vantagem de 10 pontos sobre Dilma no returno da eleição (50% x 40%).
Há uma semana, o Ibope indicava que a vantagem caíra para ainda apreciáveis sete pontos (46% a 39%).
As mudanças na superfície refletem correntezas que antecipam o rumo da marcha.
Por exemplo: a percepção positiva do governo melhorou.
Expressiva maioria dos brasileiros –cerca de 70% do eleitorado considera a administração Dilma entre regular (33%) e ótimo/bom (38%).
O percentual de ótimo e bom cresceu sete pontos desde junho.
A candidata Dilma ainda enfrenta elevada taxa de rejeição (42%). Mas a Presidenta vê sua aprovação crescer lentamente: ganhou sete pontos para somar agora robustos 48% (41% em junho).
O que falta para essa aprovação flutuante se traduzir em apoio efetivo à reeleição?
A pergunta é pertinente diante da mudança observada no humor do eleitorado, mas, sobretudo, das possibilidades abertas por novidades que vieram para ficar.
Os 11 minutos disponíveis pela coligação de Dilma no horário eleitoral abriram uma clareira em uma narrativa econômica articulada à especulação financeira, e determinada a materializar a profecia de um nação demolida, embora no limiar do pleno emprego.
O BC anunciou uma expansão do PIB de 1,5% em julho --a maior taxa dos últimos seis anos para o mês. No mesmo dia a Bovespa desabou.
O que explica o paradoxo de uma Bolsa que esfarela quando a economia se expande, e isso é reportado pelo colunismo isento como sintoma de uma economia em estado terminal?
Explica-o a perda de densidade da candidatura ostensivamente simbiótica com os interesses do mercado financeiro.
A segunda lição da semana não é estranha a essa, mas reveste-a de maior abrangência.
O fato é que a reordenação das intenções de voto em direção à Dilma dificilmente teria ocorrido não fosse a determinação política de usar essa janela de informação para transmitir uma mensagem clara ao eleitor.
Ela foi formatada, como registrou Carta Maior (leia ‘A arca de Marina e o dilúvio antipetista), depois que a direção do PT fez um balanço crítico da campanha no último dia 5, em São Paulo. Foi também quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em discurso à militância, encarou a perplexidade petista diante da desabalada liderança de Marina nas pesquisas até então.
Em duas frases, Lula esquadrejou a areia movediça ao redor e identificou um pedaço de chão firme onde instalar a alavanca para uma reação: ‘Nós ficamos economicistas; não nos faltam obras, mas política’, diagnosticou para prescrever o antídoto: ‘Temos que demarcar o campo de classe dessa disputa: é preciso levar a política à propaganda’.
A partir de então a essência radicalmente neoliberal embutida no programa de Marina Silva passou a ser floculada do espumoso caudal de 241 páginas .
Na mesma chave narrativa, a Presidenta Dilma passou a dar nomes aos bois. E ao berrante, que alguns preferem chamar de educadora, embora funcione como um agregador da boiada e de tudo o mais que acompanha o tropel.
A eleição está longe de ser definida a favor do campo progressista. Há flancos preocupantes.
O Nordeste não é mais uma trincheira coesa; Dilma não terá palanques em estados onde candidatos a governo do PT estarão fora do 2º turno; a mídia e o dinheiro grosso não vão desperdiçar a chance real de vitória à bordo da desfrutável candidata que lhes oferece o carisma que nunca tiveram. Num 2º turno, a vantagem do tempo de televisão desaparece.
É tudo verdade. Mas quem relativiza o que aconteceu nos últimos cinco dias não entendeu o principal.
O PT e sua propaganda redescobriram que não se faz política sem definir o adversário, dizer o que ele representa, por que deve ser derrotado, as perdas e danos de se entregar o país ao seu corolário de poder.
Isso não é pouco.
Em dúvida, recomenda-se rever a sabatina de Dilma à equipe de colunistas do Globo, realizada na última sexta-feira.
Estava todos lá, as mais ostensivas cepas do conservadorismo midiático, em sua gordurosa peroração de sempre: o Brasil é uma cloaca entupida de corrupção e desgoverno.
Dilma deu-lhes um banho com o sabonete desfolhante da clareza técnica esfregada com a bucha da argúcia política.
Tirou o couro. E expôs a matéria bruta dos interesses por trás da santa inquisição, reduzida a um auditório gaguejante, diante da consistência e desenvoltura da entrevistada.
Confira abaixo. É o corolário encorajador de uma semana para não esquecer:
http://infograficos.oglobo.globo.com/brasil/sabatinas-o-globo-com-os-candidatos-a-presidente-1.html
domingo, 7 de setembro de 2014
UM PAÍS DE MENTIRAS - 01
O Brasil é um país que gosta de mentiras e convive culturalmente com elas.
Já ao nascer como país, na Constituição de 1824, uma grande mentira, a Monarquia é adotada como forma de governo. Quando o normal seria seguir o exemplo de todas as nações sul-americanas que adotaram a república, o Brasil nasceu real. Mas essa realeza era uma mentira. Nossa dinastia não existia, nem nobreza. Nossos condes, duques e marquesas foram todos instituídos por decretos a partir de uma idéia mentirosa criada apenas para manter a escravidão.
Como que justificando a aposta das elites na monarquia, D. Pedro, nosso primeiro imperador, em 1826, mentiu aos britânicos que acabaria com o tráfico de escravos num prazo máximo de cinco anos, e os britânicos acreditaram. Foi a famosa Lei “para inglês ver” e o tráfico só seria proibido depois de uma verdadeira guerra diplomática 44 anos depois em 1870, com a Lei Eusébio de queirós.
No segundo reinado criou-se o mito de uma nação pacífica, mas isso é apenas outra mentira, pois, se internamente os movimentos de contestação acabaram (com exceção da Praieira em 1848) essa paz se fez pelo emudecimento à força das vozes reivindicantes e não pela atenção a essas reivindicações, externamente, o Brasil interferiu militarmente por três vezes na Argentina e no Uruguai e foi o ator principal da maior guerra dessa banda do continente, a Guerra do Paraguai (1864-1870).
Antes, em 1847, uma engenhosa farsa. Criou-se o sistema parlamentarista no Brasil, sem nunca se usar a palavra parlamentarismo ou primeiro-ministro, e sim, presidente do Conselho de Ministros. No entanto, o imperador manteve seus poderes num parlamentarismo verdadeiramente às avessas.
Pelo cargo maior de Presidente do Conselho de Ministros lutavam dois partidos com nomes opostos, Partido Liberal e Partido Conservador, mas era mentirinha, pois os dois eram basicamente a mesma coisa e representavam os mesmos interesses da elite.
Em 1888 ocorre a assinatura da Lei Áurea, uma enorme mentira, pois de áurea essa Lei racista e excludente, nada tinha.
Na proclamação da República em 1889 adota-se toda uma simbologia positivista num país em que poucos setores eram realmente positivistas e uma Constituição fortemente influenciada pelos Estados Unidos que prevê o voto universal, uma grande mentira. Como pode o voto ser universal se excluía as mulheres e os analfabetos?
Na virada do século coibia-se o samba como atividade criminosa e proibiam-se os negros de jogarem futebol. Ao mesmo tempo se fazia saúde pública vacinando à força e queimando-se colchões das pessoas pobres.
Mentiras. Um país que cultiva mentiras
Prof. Péricles
quarta-feira, 3 de setembro de 2014
FLERTANDO COM A MORTE
Por Paulo Vianna
Aconteceu na tarde de sexta-feira, 23 de abril de 1982. Quem estava sentado do lado esquerdo do avião levou um grande susto: apareceu um jato militar, bem armado e com pintura de camuflagem, junto da asa do DC-10 da Varig. Foi por pouco tempo — o suficiente para provocar tumulto. De repente, o caça deu uma guinada e desapareceu. Deixou perplexidade bastante para animar a conversa a bordo naquele fim de viagem Johanesburgo-Rio.
Ao desembarcar no aeroporto do Galeão, por volta das 19h30m, cada passageiro tinha uma breve história para contar. Um deles era Leonel Brizola, então candidato ao governo do Estado do Rio. “Dava para ver o perfil do piloto”, ele disse ao GLOBO na época. Brizola (1922-2004) e seus companheiros de viagem não podiam imaginar, mas aquilo fora um flerte com a morte.
Quando o DC-10 foi captado na tela dos radares, a frota britânica navegava a dois mil quilômetros de distância das praias do Rio. Avançava na direção do arquipélago Malvinas, invadido por tropas argentinas três semanas antes.
O almirante John Forster “Sandy” Woodward comandava uma operação arriscada, a 13 mil quilômetros das bases europeias, limitada no calendário pelo início do inverno polar. E, também, limitada no tempo, porque o governo da primeira-ministra Margareth Thatcher não sobreviveria se a missão resultasse em fiasco ou numa “viagem inútil a lugar nenhum” — na definição do Bureau de Inteligência do Departamento de Estado norte-americano.
Há quatro dias a esquadra deixara a base da ilha de Ascensão, na altura de Pernambuco, e era frequentemente sobrevoada por um Boeing 707 da Aerolíneas Argentinas. Toda a estratégia de defesa da Junta Militar dependia da localização dos navios para estimativas sobre a data mais provável de chegada da frota à zona de combate.
Incomodado com as missões de “reconhecimento”, Woodward pediu mudanças nas regras de interceptação. Até então, dependia de autorização expressa de Londres para abrir fogo contra aeronaves consideradas como “ameaça”, fora da “zona de exclusão aérea”, mesmo que estivessem desarmadas. Recebeu autonomia na quinta-feira 22 de abril, quando o secretário de Defesa, John Nott, anunciou alterações no sistema de “alerta de defesa” da frota — sob o argumento de que a esquadra já se encontrava ao alcance das Força Aérea argentina.
Na manhã de sexta-feira, 23, um Boeing 707 da Aerolíneas despontou nos radares, e desapareceu — indicam os registros coletados pelo historiador militar britânico Rupert Allason, cujos livros são assinados com o pseudônimo Nigel West.
À tarde, outro alarme: aeronave suspeita a 340 quilômetros de distância, dez mil metros de altitude, em aproximação a 700 quilômetros por hora. O momento não poderia ser pior, descreveu Woodward nas memórias, porque o porta-aviões Hermes estava em meio ao reabastecimento. Preparou-se o lançamento de mísseis.
Um caça Harrier se aproximou do “alvo”. Chegou por trás; passou por cima; ficou à frente; foi para o lado esquerdo; deu uma guinada e sumiu, sem responder às tentativas de contato do comandante do DC-10, Manoel Mendes — segundo ele mesmo relatou aos passageiros curiosos, como Leonel Brizola e o então deputado maranhense Neiva Moreira.
O piloto do caça confirmara o “alvo” como jato comercial regular da companhia brasileira Varig, em voo de rotina e com as luzes de cabine devidamente acesas. Woodward calcula em 30 segundos e Allason (West) estima em 20 segundos o intervalo entre o reconhecimento pelo Harrier e a ordem para abortar o ataque.
A bordo do DC-10 da Varig, 188 pessoas não sabiam, mas durante essa fração de tempo flertaram com a morte.
E o comandante Woodward escapou de um erro que, certamente, teria mudado a história da guerra no Atlântico Sul.
sábado, 30 de agosto de 2014
ALFACES SOFREM
Por Walcyr Carrasco
É muito difícil conviver com vegetarianos a maior parte do tempo. Para sair, é preciso escolher o restaurante que eles querem. Se convido para comer em casa, também impõem o menu. Só pode isso, ou aquilo. Pior, é preciso saber de que corrente a pessoa é adepta. Há quem se declare vegetariano, mas na prática come peixes e frutos do mar. Outros nem tocam em qualquer produto de origem animal, como um molho de macarrão com creme de leite. Todos, porém, têm uma tese sobre a vida, uma fronteira estabelecida – e estou sempre do lado errado.
Foi traumatizante a vez em que convidei um amigo para uma churrascaria. Sentamos, e só aí ele declarou que não comia carne, mas se satisfaria com as saladas. Tudo bem. Mas tem graça devorar espeto após espeto, enquanto, do outro lado da mesa, alguém me encara com ar de acusação?
Meu amigo Ricardo, advogado, carnívoro e bon-vivant, diz sabiamente:
– Se verdura fosse gostosa, teria rodízio.
De fato: alguém já viu rodízio de vegetais? De picanha, alcatra, maminha, sim. De pizza e sushi, também. Mas de brócolis? Diga francamente, você iria a um rodízio de brócolis? Ok, já sei a resposta. Eu também não.
O maior argumento dos vegetarianos é que animais sofrem ao ser abatidos. A angústia do boi, dizem, contamina a carne.
– E, depois, essa coisa ruim vai para dentro de você – disse um amigo com expressão sábia.
Fiz cara de preocupado e pensei num bom filé de alcatra. Frangos de granja vivem confinados e são tratados à base de hormônios. Penso até que essas aves já se tornaram uma mistura de animal com plástico, ou algo assim. São praticamente artificiais. Compartilho intimamente a infelicidade desses bichos. Mas não consigo pensar no assunto quando devoro um galetinho bem temperado. Também não penso nos pobres porcos quando chafurdo numa feijoada. E o torresmo, que delícia!
Muitos que se dizem vegetarianos comem peixes ou frutos do mar, como disse. Vamos lá, um camarão não tem vida, nenhum sentimento? Um linguado não faz sexo, não sente prazeres? Certa vez, aprendi a preparar o polvo. É preciso colocá-lo em salmoura, depois bater bem o corpo e pendurá-lo na torneira. Juro, o momento foi terrível. Polvo tem olhos e boca, e aquele me encarava, parecia dizer, mesmo sem vida:
– Por que faz isso comigo?
– Adoro sushi de polvo – disse intimamente – E a vida é assim, injusta. Vou te cozinhar, aguarde só a água ferver.
Mesmo assim, não preparei mais polvos. Principalmente depois de ler, em algum lugar, que eles se reconhecem no espelho. Isso sugere um grau de inteligência. Mas continuo a comê-los, impossível não gostar de polvo. Em sushi ou à espanhola, com molho vermelho.
Indo mais longe: já houve experiências com plantas, vegetais de todo tipo. Se tocam música clássica e suave nas proximidades, crescem harmoniosamente. Se gostam de música, é porque têm sentimentos. São vivas, afinal. Acho até a situação das plantas pior que a de muitos animais. Vegetarianos gostam de devorá-las frescas. Quanto mais vida ainda tiverem, melhor.
Pensemos do ponto de vista da alface: ela agoniza numa travessa, coberta de azeite, sal, vinagre, é espetada por um garfo e vive seus últimos momentos nos dentes de um vegetariano de consciência tranquila. A alface quer gritar, gemer e, ai, não consegue! Sofre. Da mesma forma que as flores colocadas nos vasos para enfeitar a sala – vegetarianos adoram esse ambiente florido. Mas não são flores agonizantes? Foram arrancadas do pé e, enquanto demonstrarem uma fatia de vida, no colorido das pétalas, são exibidas em vasos. Depois atiradas no lixo, com o resto das saladas, dos brócolis e abobrinhas cozidos, do chuchu, da berinjela, da cenoura, que, coitada, foi ralada.
Não sou a favor do sofrimento, mas, enquanto não puder viver de raios de sol, também preciso sobreviver – e, sem comida, não dá. Já que é assim, prefiro comer bem!
Só me pergunto: por que os vegetarianos sofrem pelos animais, e não pelos vegetais, que também têm sensibilidade? Acho uma falta de lógica. Tudo faz parte de uma cadeia alimentar. Talvez eu também, algum dia, se a Terra for invadida por extraterrestres canibais. Ou se for a um safári na África, der tudo errado e virar comida de leão.
Apesar dessa falta de lógica, vegetarianos se consideram melhores que o resto da humanidade. Mais corretos, mais bondosos. Ser vegetariano torna realmente alguém melhor?
Sei não... Afinal, Hitler era vegetariano.
quarta-feira, 27 de agosto de 2014
O LOUCO DO ORELHÃO
Ele falava alto, e gesticulava. E sorria também. Mais que isso, gargalhava.
Chamava atenção sua aparência.
Calça de brim esfarrapada e muito suja. Blusa marrom, também muito suja e algo que um dia foi um casaco por cima da blusa.
Um autêntico morador de rua. E falava alegremente ao telefone, soltando gargalhadas contagiando os passantes.
O que mais chamava a atenção, no entanto, era que sua mão, distraidamente, repousava sobre o gancho do “orelhão” (aqui, em Porto Alegre são chamados assim os telefones públicos).
Isso mostrava que, na verdade, ele não falava com ninguém. Ou, pelo menos, com ninguém naquela ligação telefônica.
Das coisas que dizia, uma expressão era muito repetida: “eu vou voltar, eu vou voltar, prometo”.
Todos continuaram seus caminhos, mas, muitos levaram dali inquietantes indagações.
Com quem ele pensava estar falando? Onde seria a outra extensão da ligação?
Para onde voltar?
Por que voltar lhe fazia rir e, se isso era tão bom, a quanto tempo estava fora?
Louco, resmungou uma senhora.
Na verdade, muitas vezes em nossas vidas repetimos, de outras formas, o gesto do louco do orelhão.
Muitas vezes nos iludimos que somos ouvidos.
Ansiamos que nossa voz impregnada de nossas crenças e experiências chegue até alguém que realmente se importe com nossos valores e nossas verdades.
Tudo aquilo em que acreditamos carrega um pouco de nós e quando somos ouvidos, de certa forma, somos acolhidos.
Nessa vida louca e bandida lutamos pra manter nossa lucidez, mas não são poucas as vezes em que enlouquecemos e sentimos vontade de pegar um “orelhão” imaginário, fazer uma ligação sem retorno, e aos berros e risos, prometer que vamos voltar.
Prometer, não exatamente para alguém, mas, para nós mesmos.
Ou mesmo gritar com todas as forças, “Yarburne” uma palavra árabe intraduzível para o português que significa a esperança que se tem de morrer antes da pessoa amada, porque seria incapaz de prosseguir vivendo sem ela.
Para a geração que ousou botar o pé na estrada levando na bagagem a proposta de paz e amor e que acreditou na possibilidade de criar um mundo melhor, mais justo e fraterno a opção foi cruel: voltar ao ponto de partida, adulto e sem seus sonhos ou permanecer com eles sem poder voltar. Nesse caso, a loucura sempre será o melhor refúgio.
Para a geração de loucos brasileiros que teve a coragem de lutar contra o fascismo em nome da liberdade, muitos dos caminhos não tiveram fim e a família de muitos ainda espera sua volta ou, ao menos, uma ligação de algum lugar, de um ponto sem linha ou de um túmulo sem lápide.
Nem sempre retornamos a tempo. Nem sempre alguém nos espera. Muitas vezes ninguém atende nossa ligação e nossa mão, desligando ou não a conexão, não faz a menor diferença.
“Vou voltar sim, me espera que estou chegando!”, gritamos e rimos de nós mesmos.
“Eu viajei nas noites sem estrelas, escalei viadutos, gritei mais alto que as buzinas e me perdi nas curvas urbanas. Me perdi, me perderam, mas me achei, e estou de volta.”
“Vou voltar sim, me espera que estou chegando!”
Prof. péricles
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