“Brasil, 26 de julho de 1969
Aos meus filhos,
Vivo falando de vocês com meus companheiros, eles estão longe dos filhos
também e falam nos filhos deles. Um só é o desejo de todos nós, é que nossos filhos sejam revolucionários. O que é um revolucionário? È toda a pessoa que ama todos os povos, ama a Humanidade, tem uma imensa capacidade de amar, ama a justiça, a Igualdade. Mas ele tem de odiar também, odiar os que impedem que o revolucionário ame, porque é uma necessidade amar. Odiar aos que odeiam o povo, a Humanidade, a Justiça social. Odiar aos que dominam e exploram o povo, odiar aos que corrompem, ameaçam e alienam as mentes, aos que degradam a Humanidade, aos injustos, falsos, demagogos, covardes.
O revolucionário ama a Paz, faz a guerra como instrumento para Ter a Paz, a
Paz justa, sem exploração do homem pelo homem. O revolucionário tem que ser
capaz de todos os sacrifícios pela causa, de até se separar dos seus filhos
para libertar todos os filhos, de se separar dos pais porque outros pais
precisam dele. Quando vocês sentirem saudades de mim, lembrem-se que aqui no Brasil existem muitas crianças que passam fome, que andam descalças, sem
escolas, que sofrem e vêem seus pais sofrerem.
Lembram-se quando conversei com vocês no quarto e pedi a vocês que deixassem eu lutar para acabar com isso. Eu lembro bem que a Claudinha bateu palmas e o Cesar disse: " Muito bem, papai". Combinamos que tínhamos de ficar longe um do outro, e que guardaríamos no coração a esperança de nos encontrarmos novamente.
(...) Amem muito a mamãe, eu não posso beijá-la, todos os dias beijem
duas vezes a ela, uma vez por mim. Tenho tantas saudades de vocês, mas não
choro, não beijo fotografias, encho o peito de ar e pego firme no meu
trabalho. Penso em vocês e em todas as crianças, então ganho forças para
lutar. Quando sentirem saudades, então estudem mais, perguntem tudo que não
entenderem, perguntem sempre o porquê das coisas- perguntar e pensar- ver se é certo, se não for, falem, discutam- ver se é justo, se não for, lutem para mudar.
Sejam disciplinados, façam somente o que for certo, justo. Ser disciplinado não é ser obediente, quem obedece tudo sem pensar não presta.
Como vai o treinamento de tiro? Não se esqueçam de colocar algodão no
ouvido, e também de olhar sempre pra mira e puxar o gatilho bem devagar. Já
mandaram consertar a pistola de ar comprimido? Espero que pratiquem corrida, natação e todos os jogos. Alimente-se bem, vocês que tanto gostam de frutas devem estar satisfeitos, aí ninguém passa fome (...)
Como vai o jogo de botão? Você, Cesar, tem ensinado aos meninos? Seguem
junto 29 bolinhas de cortiça, que fiz treinando a paciência, que eu tinha
pouco, é preciso ser paciente, sem ser passivo, claro.
E você Claudinha, continua fazendo discursos? Como eu gostava, você vai ser
uma grande agitadora.
Cuidem bem dos dentes para que possam mastigar bem. Não se esqueçam de
cantar e dançar. O Cesar gosta muito de desenhar e a Claudia de pintar,
procurem praticar bastante, procurem criar, não imitem ninguém.
Não chamem ninguém de senhor porque ninguém é senhor de ninguém. Mas ouçam
os mais velhos e procurem fazer coisas melhor que eles, porque tudo que é
novo é superior ao velho. Respeitem os mais velhos, mas exijam que respeitem vocês- exijam mesmo.
Contei para os companheiros que o Cesinha usava nome de guerra e eles
acharam engraçado. Já usei o nome Cesar mas tive de mudar.
Não sei como acabar essa carta porque é como se estivesse conversando com
vocês. Espero receber uma carta de vocês, se não for possível, continuarei
pensando muito em vocês.
A maior alegria que vocês podem me dar é aproveitar muito o estudo,
preparando-se para fazer a Revolução em qualquer país. Muitos beijos para a
minha esposa querida e meus filhos, com todo amor, cheio de saudades”.
Carlos Lamarca
Militar apontado como jóia rara do exercito brasileiro, Lamarca jamais aceitou o golpe de 64 que considerava um ataque à democracia.
Desertou do exército onde era paparicado e entrou na clandestinidade levando consigo farto material militar para ser usado na guerrilha.
Lutou contra a Ditadura militar de 1969 até sua morte em 1971.
Foi o inimigo mais odiado pelos militares a ponto de até hoje seu nome provocar irritação e desconforto entre militares.
Seu nome foi raspado da Pedra em que figurava como um dos formandos do Colégio Militar de Porto Alegre.
Foi membro dirigente da VPR e morreu pouco depois de se transferir para o MR-8.
Defendia a luta de guerrilha rural como única forma de derrotar as forças armadas convencionais, mas, não obeteve o apoio esperado numa época em que a maioria das organizações apostava na guerrilha urbana.
Foi um dos líderes da embrião de Guerrilha no Vale do Ribeira (onde escapou espetacularmente de um cerco numeroso) e do famoso assalto ao Cofre do Ademar.
Doente, foi morto praticamente sem poder reagir em 17 de setembro de 1971, aos 33 anos, na zona agreste baiana, no município de Ipupiara, após cerco militar que contou com milhares de homens do exército, aeronáutica e organismos da repressão.
A mulher de Lamarca, Yara Iavelberg, fora morta dias antes, em circunstâncias não esclarecidas, em um apartamento em Salvador (BA).
Os filhos ainda guardam as cartas do pai.
Prof. Péricles
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